O recente surto de febre maculosa na região de Campinas, no interior de São Paulo, chamou a atenção para a alta taxa de mortalidade da doença: segundo dados do Ministério da Saúde, um terço dos indivíduos contaminados na última década morreu.
O quadro, transmitido principalmente por picadas de carrapatos-estrela (Amblyomma sculptum), é causado por algumas bactérias do gênero Rickettsia — mais especificamente as espécies Rickettsia rickettsii e Rickettsia parkeri.
Mas o que explica essa proporção tão alta de mortes relacionadas à febre maculosa?
Há pelo menos cinco fatores por trás desse cenário, segundo publicações científicas e especialistas ouvidos pela BBC News Brasil:
- o comportamento do agente transmissor;
- a agressividade do patógeno;
- a demora no diagnóstico;
- a evolução rápida dos sintomas;
- e algumas mudanças ambientais.
O que dizem os números
De acordo com portarias publicadas pelo Ministério da Saúde, a febre maculosa é uma doença de notificação obrigatória — o que significa que todos os casos detectados devem ser informados aos órgãos de vigilância do Brasil.
Isso permite conhecer o histórico da enfermidade — e como ela vem se comportando nos últimos anos.
As estatísticas do último boletim epidemiológico publicado pelo governo federal, compiladas pela BBC News Brasil, mostram que, entre 2012 e 2022, foram notificados 2.209 casos e 753 mortes por febre maculosa no país.
Esses eventos se concentram principalmente nas regiões Sudeste e Sul — as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste têm menos de dez infecções e óbitos provocados pelas bactérias Rickettsia registradas por ano.
Esses dados permitem inferir uma mortalidade por febre maculosa de 34% na última década.
O médico Marcelo Simão Ferreira, professor titular de Infectologia da Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais, explica que existem três grandes polos de febre maculosa no país.
“Os casos se concentram principalmente no interior de São Paulo, na região de Campinas, Jundiaí e Piracicaba; no Rio de Janeiro, na serra de Petrópolis e Teresópolis; e em Minas Gerais, no entorno de Belo Horizonte e Contagem.”
O Ministério da Saúde também informou que o Estado de São Paulo — o epicentro do surto atual — registrou 12 casos da doença em 2023. Desses, quatro indivíduos se recuperaram, seis morreram e dois continuam em investigação.
No país todo, são 53 casos e oito óbitos neste ano, mas é provável que os números sejam atualizados e se modifiquem ao longo dos próximos meses.
O médico Marcos Vinícius da Silva, responsável pelo Ambulatório de Doenças Tropicais e Zoonoses do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo, pondera que a febre maculosa é uma doença com muita subnotificação.
“O que vemos nos hospitais é apenas a ponta do iceberg. Há os casos leves, que passam como uma alergia e nem são avaliados adequadamente”, diz ele.
E, mesmo entre os casos mais graves que aparecem nos boletins epidemiológicos e nas manchetes, há muita confusão com outros problemas de saúde — como explicamos a seguir.
1. Transmissor sorrateiro
A temporada de outono-inverno é o período de maior incidência de carrapatos. É nessa época que eles se reproduzem e que surgem as larvas, conhecidas popularmente como micuins.
Esse “filhote” de carrapato é bem pequeno e difícil de detectar. Ele pode se grudar ao corpo e permanecer ali por um tempo antes de ser removido.
Caso ele carregue o patógeno por trás da moléstia, a junção de todos esses fatores aumenta o risco de transmissão.
2. Patógeno agressivo
Marcelo Simão Ferreira, que é ex-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia, também pontua que as bactérias Rickettsia causadoras da febre maculosa têm um comportamento bem agressivo quando invadem o corpo humano.
“Elas infectam as células que constituem as paredes dos vasos sanguíneos”, diz.
“Geralmente, o micro-organismo começa a afetar pequenos vasos, mas logo as lesões se espalham para a pele e outros órgãos, como o fígado, os rins, o coração e até o sistema nervoso central.”
O quadro piora rapidamente e gera uma sepse — uma inflamação sistêmica em que o corpo deixa de funcionar como o esperado.
3. Demora no diagnóstico
O segundo motivo por trás da alta mortalidade tem a ver com as manifestações mais comuns da febre maculosa.
O grande problema é que eles são bem parecidos ao que acontece com outras doenças infecciosas relativamente frequentes, como dengue, leptospirose e meningite.
Essa similaridade de sintomas entre doenças infecciosas pode atrasar o diagnóstico correto — como a febre maculosa é mais rara, os profissionais de saúde tendem a suspeitar de outras doenças em primeiro lugar.
“É muito comum que o paciente chegue ao pronto-socorro com febre e isso cria uma suspeita automática de dengue, já que é essa é uma condição por trás de grandes epidemias no país”, descreve Ferreira.
O Ministério da Saúde diz que os principais sintomas da febre maculosa incluem:
- Febre;
- Dor de cabeça intensa;
- Náusea e vômitos;
- Diarreia;
- Dor abdominal;
- Dor muscular constante;
- Inchaço e vermelhidão na palma das mãos e na sola dos pés;
- Gangrena nos dedos e nas orelhas;
- Paralisia dos membros que se inicia pelas pernas e vai subindo até os pulmões, o que pode provocar graves problemas respiratórios.
Silva, que também é consultor de zoonoses do Ministério da Saúde, detalha que essas manifestações costumam começar sem nenhuma característica especial.
“Os sintomas da febre maculosa são inespecíficos. Geralmente a pessoa tem febre alta, dor de cabeça, mal-estar, falta de apetite…”, lista o médico e professor da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Um dos sinais mais marcantes da enfermidade surge logo na sequência para cerca de 80% dos acometidos: manchas ou erupções na região dos punhos ou dos tornozelos.
Eles estão relacionados à lesão nas paredes dos vasos sanguíneos, como explicado no tópico anterior.
A recomendação dos especialistas, então, é ficar atento a esses sintomas — e avisar o profissional de saúde se você visitou alguma região onde os carrapatos são mais comuns (como áreas de mata) ou teve contato próximo com animais que podem carregar esse artrópode (caso de capivara, gambás, cavalos, bois, cachorros…).
4. ‘Evolução fulminante’
Com o atraso na detecção da febre maculosa, perde-se uma janela de oportunidade valiosa para iniciar o tratamento adequado.
O diagnóstico dessa doença, aliás, não espera nem o resultado de exames laboratoriais.
“Se a pessoa apresenta sintomas sugestivos e esteve em regiões de mata com presença de carrapatos ou animais que carregam esses artrópodes, o tratamento deve ser iniciado no máximo em 48 ou 72 horas”, indica Ferreira.
Normalmente, o laudo dos testes pode demorar dias ou semanas para ficar pronto.
“Falamos de uma doença com evolução fulminante. Se esperarmos o resultado dos exames, nós perdemos o paciente”, complementa o médico.
Nos primeiros dois ou três dias após o início dos incômodos, a doença pode ser tratada com antibióticos que atuam especificamente contra essa bactéria, como a doxiciclina e o cloranfenicol.
Os especialistas reforçam que, se usadas no momento correto, essas medicações têm uma boa eficácia e permitem a cura na maioria das vezes.
Conforme os estragos progridem pelo corpo, porém, o risco de sequelas (como amputações de membros por causa da gangrena) ou de morte aumenta exponencialmente.
Os fármacos para tratar a febre maculosa estão amplamente disponíveis na rede pública e o Ministério da Saúde afirma ter um estoque estratégico de doses, que podem ser enviadas aos Estados que precisarem.
5. Mudanças no meio ambiente
O quinto e último fator que ajuda a entender a alta mortalidade por febre maculosa observada no Brasil tem a ver com o contato próximo com reservas naturais e animais silvestres.
“Cada vez que você mexemos com a natureza, não sabemos onde a bomba vai estourar. Os desequilíbrios ambientais alteram as cadeias de transmissão de doenças, de modo que não temos certeza sobre o que pode acontecer”, alerta Silva.
O infectologista lembra que, em muitas regiões do interior paulista, foram construídos condomínios que ficam próximos a áreas de mata.
“Nesses locais, também é comum ver a proliferação das capivaras, que carregam os carrapatos”, observa.
Silva acrescenta que algumas aves também transportam esse artrópode de um lugar para o outro. “E pode acontecer de o carrapato parar num quintal, picar um cachorro e depois ser transmitido para uma pessoa”, exemplifica.
A boa notícia é que existem algumas estratégias para diminuir o risco de ter contato com o carrapato e se infectar com o patógeno.
“Se você for visitar uma zona de mata, principalmente das regiões onde a febre maculosa é mais comum, vale tomar todo cuidado possível”, sugere Ferreira.
O primeiro ponto de atenção está no vestuário. Use botas de cano alto e coloque a barra da calça para dentro do calçado — se for o caso, você pode até passar fitas adesivas nas canelas para vedar possíveis aberturas na área do tornozelo.
Isso impede que os carrapatos entrem pelas pernas e “escalem” o corpo. Geralmente, eles se instalam em regiões mais quentes e com boa oferta de sangue, como os glúteos, o períneo, a virilha e o abdômen.
“Usar peças brancas ou claras é outra dica, pois isso facilita na hora de identificar e eliminar os carrapatos”, adiciona Silva.
Vale ainda passar produtos repelentes feitos com icaridina, que também funcionam para afastar esses artrópodes.
Se você for picado por um carrapato, a remoção dele deve ser feita com bastante cuidado. Silva recomenda o uso de pinças de sobrancelha para essa tarefa. “É preciso removê-lo inteiro, sem esmagá-lo”, orienta o médico.
Por fim, caso você apresente os sintomas de febre maculosa e esteve numa área endêmica nas últimas semanas, vale visitar o pronto-socorro o mais rápido possível e relatar o caso em detalhes para o profissional de saúde durante a consulta.