Em novembro de 2022, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), estava em Nova York para participar de uma conferência jurídica. Durante uma caminhada, foi abordado por um turista brasileiro que, de celular em punho, passou a instigá-lo. O ministro estava acompanhado do colega Alexandre Moraes, reagiu e houve bate-boca. O vídeo foi postado na internet, teve milhões de visualizações e contribuiu para acirrar ainda mais os ânimos e ampliar as hostilidades que mais tarde culminariam nos terríveis ataques de 8 de janeiro. Depois disso, o esquema de segurança dos ministros foi reforçado, alguns deles passaram a ser acompanhados em tempo integral por uma escolta armada, viagens dentro e fora do país seguem rígidos protocolos e uma equipe de especialistas em ambiente digital monitora todas as redes sociais, atenta a qualquer publicação que possa representar algum tipo de perigo.
Na última sexta-feira (20) Barroso esteve em Nova York, onde participou de um evento da ONU sobre liberdade de expressão. Dessa vez, não houve registros de incidentes, mas isso não significa que a civilidade voltou a imperar. Mesmo com as punições exemplares depois do 8 de Janeiro — 1 400 pessoas presas e 200 condenadas a penas que variam de 17 a 22 anos de prisão —, os ministros continuam recebendo ameaças. Foram mais de 1 000 ocorrências desde então, uma média de três por dia. Desse total, 138 foram classificadas como de “risco real ou potencial”, e seus autores estão sendo formalmente investigados pela Polícia Federal — alguns, inclusive, já indiciados e presos. Robson Bonin, da revista Veja, teve acesso a um calhamaço de mais de 150 páginas que relata casos de tentativa de intimidação e ameaças de morte, estupro e atentados contra os magistrados e a Corte. As apurações revelam que a maioria dessas postagens criminosas é feita por irresponsáveis em busca de um clique em suas redes ou de projeção em seus respectivos círculos sociais. Há também pessoas que demonstram evidentes sinais de desequilíbrio mental. Por isso, todo o cuidado é pouco.
No dia 31 de janeiro do ano passado, menos de um mês após a destruição do prédio do Supremo, por exemplo, um homem ateou fogo a si próprio enquanto gritava: “Morte ao Xandão”. Nos relatórios a que a revista teve acesso, ele é identificado como Alexandre Leite de Andrade, de 58 anos de idade, morador de uma cidade no interior de São Paulo, militar da reserva, e levava nos bolsos papéis com imagens de mártires e anotações desconexas sobre os ministros do Supremo. Mensagens e vídeos encontrados nas redes sociais do militar aposentado após o incidente revelam que ele planejava ir a Brasília fazer um protesto contra o tribunal, mas teria desistido, segundo escreveu, porque seu “xará”, o ministro Alexandre de Moraes, proibiu a manifestação. Não foi possível saber exatamente o que Andrade realmente pretendia. Com 90% do corpo queimado, ele morreu no hospital, antes de prestar depoimento à polícia.
Entre os integrantes do Supremo, o ministro Alexandre de Moraes, que conduz as investigações sobre o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus aliados, é evidentemente o mais visado. Naquele mesmo mês, mais uma investigação foi aberta contra um também ex-militar do Exército, que gravou um vídeo prometendo “comer o coração” do ministro. “Você um dia vai me conhecer. E eu vou olhar dentro do teu olho. E o meu desejo vai ser puxar teu coração e comer vivo”, disse Gleydson Ferreira, 35 anos, de Itaituba, no Pará. A partir de uma varredura em e-mails e na chamada deep web, a polícia descobriu que Ferreira tinha três endereços diferentes — um numa favela no Distrito Federal e dois no Pará —, era garimpeiro, tinha treinamento militar e respondia a processos por briga de rua, desacato e ameaça, o que levou os investigadores a classificarem o risco de uma ação contra Moraes como “alto”.
Em um caso mais bizarro, um homem procurou uma delegacia em Brasília e exigiu a prisão de Alexandre de Moraes, afirmando que “estava disposto a matar ou morrer” para atingir esse objetivo. Os policiais não levaram o potencial da ameaça muito a sério, talvez pelo fato de Marcus Estevão de Santana Melo, de 32 anos, ser um cadeirante. O rapaz, porém, saiu da delegacia e foi direto para a sede do STF. Sem precisar passar pelos detectores de metal, por causa da cadeira de rodas, ele conseguiu entrar no prédio e protocolar um documento. Depois, seguiu em direção à Praça dos Três Poderes, onde se levantou, trocou de roupa e saiu caminhando até um ponto de táxi. A PF também abriu um inquérito para apurar esse caso. Nas redes sociais, o falso cadeirante descreveu sua “aventura”: “Sou o homem que veio a Brasília de cadeira de rodas, impetrou um pedido de prisão do Alexandre de Moraes e saiu de lá ileso para a honra e glória de Deus”. Pode ter sido uma simples estupidez? Pode. Mas os investigadores não descartaram de pronto a possibilidade de o sujeito estar envolvido, por exemplo, no planejamento de um atentado.
No final de 2023, um alerta vermelho (o mais sensível) foi emitido pelo setor encarregado do monitoramento das ameaças pelas redes sociais. Na época, Jair Bolsonaro estava no epicentro da investigação que apurava a venda de joias que ele recebeu de presente durante o seu governo e circularam boatos de que o ex-presidente poderia ser preso preventivamente. Foi nesse contexto que Luiz Antônio Dornelas Lopes gravou e postou um vídeo com a seguinte ameaça: “Tenho quase 60 anos de idade, fui cabo temporário da 9ª Ciacom, na Vila Militar no Rio de Janeiro. Estou aqui fazendo um pacto: se prenderem Jair Messias Bolsonaro, eu me ofereço como bomba humana. Explodo, morro com aqueles fdp. Se quiserem me prender, estou nem aí”. E ainda detalha como seria a execução do possível atentado: “Podem me envolver com granada, mina terrestre, com o que quiser. Eu abraço aquele Alexandre de Moraes e levo ele para o inferno comigo”.
Embora predominantes, as ameaças não se limitam a Alexandre de Moraes. No levantamento da Polícia Federal há publicações que também envolvem os ministros Gilmar Mendes, Cármen Lúcia e Flávio Dino, que tomou posse em fevereiro. Dias antes da posse, aliás, um homem identificado como Alessandro Oliveira, 56 anos, foi preso depois de postar um vídeo em que declara ter “medo de ir em Brasília na posse desse dinossauro”, por não descartar a possibilidade de “encher ele de tiro”. Em outra ameaça, João Pedro Rodrigues, 29 anos, brasileiro com cidadania americana, virou alvo de um inquérito após postar um vídeo em que aparece treinando num estande de tiro em Utah, nos Estados Unidos, mirando fotos de Moraes, Dino e do presidente Lula. A imagem, amplamente replicada nas redes sociais, foi considerada como um crime grave por supostamente estimular violência contra os integrantes da Corte. A PF incluiu o atirador na lista de procurados pela Interpol.
As redes sociais e os meios digitais são basicamente o canal por onde esses alucinados se comunicam e procuram mobilizar apoio para suas insanidades. Outro que entrou na lista de investigados no exterior é um brasileiro que luta como voluntário na guerra da Ucrânia. Alex Silva defendeu nas redes que os atiradores esportivos do Brasil fossem ao Supremo armados para um ato na Praça dos Três Poderes. A investida tinha, segundo ele, o objetivo de “ucranizar o Brasil”, expressão que, de acordo com os investigadores, era usada pela ativista de extrema direita Sara Winter e pelo ex-deputado Daniel Silveira, que está preso — dois bolsonaristas que lideraram campanhas de ataque ao Supremo. Recentemente, os e-mails do STF foram inundados de mensagens enviadas por um usuário ainda não identificado que “decretava” a morte de três ministros.
Graças a esse ambiente conturbado, nos últimos seis anos o tribunal investiu mais de 300 milhões de reais para criar um setor de inteligência e uma divisão policial exclusiva, com equipamento próprio, que inclui fuzis, balas de borracha, algemas, granadas, bombas de efeito moral, carros blindados e escudos à prova de bala. Além do aparato bélico, o tribunal investiu 8 milhões de reais em sistema de monitoramento por inteligência artificial das áreas internas e externas. Esse equipamento é capaz de identificar em segundos pessoas procuradas ou que tenham algum registro criminal. Em paralelo, há estudos para blindar as janelas de todos os gabinetes. O ideal, claro, é que nada disso fosse necessário. Mas, infelizmente, é — e faz bem o STF em acionar a Polícia federal, para apurar e punir exemplarmente quem faz esse tipo de ameaça.
Publicado na revista Veja de 27 de setembro de 2024, edição nº 2912