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sábado 29 de junho de 2019 às 08:24h

O novo obscurantismo

CURIOSIDADES


Terraplanismo, negação das mudanças climáticas, movimentos antivacina. Entenda por que, apesar de tantos avanços na ciência, vivemos numa época tão propícia à ignorância.
Obscurantismo é a prática de deliberadamente impedir que os fatos ou os detalhes de algum assunto se tornem conhecidos. Mais especificamente, há duas denotações históricas e intelectuais comuns de “obscurantismo”: deliberadamente restringir o acesso do povo ao conhecimento.
O aquecimento global é uma farsa, de acordo com o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Em 30 de maio, ele declarou que o aumento registrado na temperatura média da Terra seria uma consequência do fato de que ruas, estacionamentos e outras superfícies asfaltadas foram construídos nas redondezas de estações meteorológicas que antes ficavam em áreas de vegetação nativa, mais frescas. Como o asfalto absorve mais calor, os termômetros estariam apenas registrando a acentuada urbanização que ocorreu desde o início do século 20.

A hipótese de Araújo foi refutada em 2011 por um estudo da Universidade da Califórnia em Berkeley. De 37 mil estações meteorológicas analisadas, 16 mil ficam em zonas perfeitamente rurais. E os dados de dois terços delas – rurais ou urbanas – indicam aumento de temperatura. Para não falar nas medições feitas por satélites, que estão em órbita, longe do asfalto.

Infelizmente, não são só membros do governo que preferem ignorar evidências científicas: os eleitores também. 46% dos brasileiros não concordam com a afirmação de que a espécie humana compartilha um ancestral comum com os chimpanzés. 89% defendem que o criacionismo seja ensinado nas escolas.

Uma pesquisa indicou que 4,5% dos pais se recusam a vacinar suas crianças, e outros 16,5% têm receio, ou não acham que a imunização tenha qualquer importância para a saúde de seus filhos. Entre os jovens, esse número sobe para 23%. O SUS oferece terapias sem eficácia comprovada. Picaretas publicam livros de autoajuda que distorcem a física quântica para fins motivacionais. Água sanitária é vendida como cura para o autismo.

Tal crise de confiança na ciência não corresponde ao quanto nossas vidas dependem dela. Cada vez que você toma um analgésico, pede um Uber ou liga a TV, você está se beneficiando do trabalho de centenas de cientistas (o GPS só existe por causa da Teoria da Relatividade de Einstein). Mesmo assim, extremistas dos dois lados do espectro político negam abertamente as evidências científicas sempre que elas não correspondem às suas visões de mundo.

As consequências dessa atitude são velhas conhecidas: em 1984, de George Orwell, o protagonista é torturado por agentes de um regime totalitário até se convencer de que 2 + 2 é igual a 5. Os exemplos não vêm só da ficção.

Na União Soviética da década de 1930, o camponês Trofim Lysenko, alçado a guru científico de Stalin, propôs a hipótese de que sementes aprenderiam a lidar com o frio se expostas a ele (de maneira análoga à ideia atribuída a Lamarck, de que o pescoço da girafa cresce porque ela se estica para alcançar árvores altas). Ele negava a genética e a evolução por seleção natural.

Por influência de Lysenko, Stalin declarou a teoria de Darwin ilegal. Na prática, sua doutrina contribuiu para uma agricultura ineficaz, que prolongou surtos de fome na URSS e na China. Fica a lição: basear políticas públicas em impressões pessoais, e não em ciência de verdade, é um jeito eficaz de jogar dinheiro no lixo, reforçar preconceitos, desacelerar a economia e piorar a qualidade de vida.

Como navegar, então por mundo em que as impressões falam mais altos que os fatos? Fazer uma pesquisa no Google é como adentrar uma sala com um milhão de vozes urrando versões contraditórias sobre um fato. Em meio à bagunça, é natural que você ouça só as vozes que reforçam suas pré-concepções: é o viés de confirmação. Quando somos bombardeados por contradições, ficamos anestesiados ao valor da verdade.
“As pessoas sentem que o ataque às suas convicções é pessoal, que sua identidade está sob ameaça”, afirma Michael P. Lynch, filósofo da Universidade de Connecticut e autor do livro In Praise of Reason (“Um elogio à razão”, sem tradução no Brasil).

O jeito mais fácil de lidar com o ruído ensurdecedor é se abraçar às suas crenças e não soltá-las mais. E a internet é ótima em personalizar nossa experiência: seus algoritmos nos enterra em bolhas onde todos pregam para os convertidos. A ciência é a melhor ferramenta para combater esse mar de incerteza, e é imprescindível entender por quê.

O método científico se baseia na noção de falseabilidade, introduzida pelo filósofo Karl Popper em 1934. Ela é simples: você começa levantando uma hipótese – por exemplo, a de que todo esquilo tem rabo. Essa hipótese só pode ser considerada válida cientificamente se for possível refutá-la – isto é, se for possível encontrar um esquilo que não tenha rabo. Sabemos que isso é possível; basta procurar um.

 

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