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O presidente da Argentina, Alberto Fernández. AP - Natacha Pisarenko
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quinta-feira 21 de julho de 2022 às 17:48h

Argentina: “O desafio deste governo será sobreviver até o final do ano”, adverte cientista político

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Márcio Resende: Quanto a política deteriorou esta crise econômica e quanto a economia agrava a governabilidade política do país?

Lucas Romero: No cenário atual da Argentina, podemos dizer que os problemas são originalmente mais políticos do que econômicos, mesmo quando temos um contexto econômico muito complexo, desafiador e preocupante. Temos um problema econômico grave, sobretudo de sustentabilidade da dívida. Logicamente, a crise de dívida se relaciona com as reservas do Banco Central [argentino].

Se a Argentina fosse um barco navegando à deriva no meio da tempestade, essa tempestade seria a crise econômica, e estar à deriva se traduziria em um governo que passa a sensação de não ter um rumo. Mas o que mais preocupa é não sabermos o estado de saúde do capitão.

Por “estado de saúde do capitão” não me refiro ao estado de saúde do presidente, mas da coalizão de governo. Não sabemos qual é seu estado para enfrentar a deriva e a tempestade. Por isso, a crise é antes mais política do que econômica.

MR: O núcleo do problema passa pelo cumprimento, ou não, do acordo com o FMI, fechado em março. Por que esse é o ponto central, se o acordo é considerado suave por não exigir nem reformas estruturais nem metas ousadas?

LR: Porque marca o único rumo que o governo tinha até a renúncia do então ministro da Economia, Martín Guzmán [em 2 de julho]. A renúncia de Guzmán é a ratificação de que dentro da coalizão não há consenso sobre o rumo político. A pergunta depois da saída de Guzmán é se a coalizão chegará a um acordo para tirar o barco desta situação. Houve acordo sobre o nome da substituta, Silvina Batakis, mas resta saber se há acordo sobre o fundo da questão: o programa financeiro com o FMI. A crise é política, mas a economia representa os sinais vitais do paciente. O problema aqui é o paciente que não quer fazer o tratamento. E o tratamento é cumprir o acordo com o FMI.

O cientista político Lucas Romero, diretor da Synopsis Consultores.
O cientista político Lucas Romero, diretor da Synopsis Consultores. © Foto: Arquivo Pessoal

Cristina Kirchner está realmente contra ao acordo com o FMI ou se trata de uma encenação para manter suas históricas bandeiras contrárias ao equilíbrio fiscal?

Cristina Kirchner não quer uma moratória com o FMI, mas desconfia politicamente do fundo. Ela acredita que qualquer exigência do FMI tem objetivos políticos, como que este governo termine este mandato em dezembro de 2023 sem chances de continuar em um segundo mandato. Kirchner acredita que este acordo, mesmo sendo folgado, é um condicionante para o governo por exigir um esforço, por exemplo, em termos de déficit fiscal.

[O acordo exige um déficit fiscal primário de 2,5% do PIB, enquanto o nível atual está entre 3,5% e 3,7%.]

A nova ministra da Economia, Silvina Batakis, anunciou que vai perseguir o equilíbrio fiscal e cumprir com o FMI. Quanto disso é possível, se a líder da coalizão de governo é contra o acordo?

Cristina Kirchner não quer corrigir o déficit fiscal. Então o problema é em que condições esta coalizão se compromete em cumprir esse programa. É uma coalizão que ficou sem capital político. A legitimidade popular, isto é, o apoio dos argentinos a este governo está em níveis dramaticamente baixos. Somente 17% aprovam o desempenho do governo, de acordo com a nossa última sondagem de junho. Então, não é irrelevante que Cristina Kirchner fique contra o acordo. A política argentina precisa ser arrumada para oferecer soluções à economia.

O acordo que o FMI fechou é “light” porque tem como principal objetivo permitir que este governo chegue ao final do mandato, em dezembro de 2023, e que deixe as contas administráveis para o próximo governo. O FMI precisa que este acordo funcione. Por isso, provavelmente tenha flexibilidade para relaxar algumas metas ou conceder alguns “waivers” [perdões], mas o fundo já avisou que a meta de déficit fiscal primário de 2,5% não será modificada. Essa é a meta política. É a meta que o FMI vai usar para medir o compromisso político do governo com o programa.

A mais difícil, na opinião dos economistas, é a de acumular reservas. O Banco Central não conseguiu acumular reservas durante o primeiro semestre, período sazonal durante o qual o BC acumula reservas. Terminou o primeiro semestre sem acumular reservas. E agora enfrenta o semestre mais difícil, quando costuma haver perda de reservas, porque há mais demanda do que oferta de dólares.

Por que Cristina Kirchner desconfia do FMI?

O que o FMI quer é que este governo não deixe para o próximo a economia em piores condições da que está. Isso é inegociável. O FMI quer que este governo corrija os desequilíbrios. E aqui vamos ao problema de fundo: Cristina Kirchner e FMI não se entendem. O presidente Alberto Fernández não tem nada a ver com essa disputa. É um presidente irrelevante que não conduz a coalizão, que não tem capital político, que perdeu a legitimidade popular. O problema argentino é entre Cristina Kirchner e o FMI. E a sensação é a de que não chegarão a um acordo.

Kirchner acredita que o FMI a prejudicará politicamente. Que todo esse acordo a levará irremediavelmente a uma derrota eleitoral. O raciocínio dela é o seguinte: “ficarei um ano e meio aliviando a tarefa do próximo presidente e me desgastando politicamente. O que eu ganho com isso?”

E qual será a consequência dessa disputa?

Enquanto Cristina Kirchner vir o acordo como uma armadilha, não haverá possibilidade de que esta coalizão possa implementar com algum sucesso este programa financeiro. As tensões políticas vão continuar e isto pode terminar em algo que talvez o FMI não ache tão ruim: que a correção seja feita pelo mercado à força, especialmente a correção na taxa de câmbio. O FMI observa com muita preocupação o atraso na taxa de câmbio.

É isso que provoca que a Argentina não possa acumular reservas no Banco Central. Se o mercado forçar uma desvalorização brusca, será uma forma de corrigir algo que o FMI pede.

E quais os efeitos de uma desvalorização descontrolada em um país em que o dólar é a referência para os preços?

Em termos políticos, seria definitivamente o fim do governo. Uma desvalorização brusca da taxa de câmbio oficial com um Banco Central sem reservas pode elevar a inflação à casa dos três dígitos. Isso seria o fim deste governo. Adequar o processo político às dificuldades econômicas significa modificar o calendário eleitoral. Não digo que vá acontecer. Digo que, se acontecer nessas condições, não descartamos um cenário em que a crise econômica se aprofunda e gere um desenlace desse tipo [renúncia] e a necessidade de antecipar eleições.

E como aconteceria esse desenlace?

Se Alberto Fernández renunciar por ficar entre a espada e a parede, isto é, entre o FMI e Cristina Kirchner, o mais provável é que Cristina Kirchner renuncie imediatamente. Não há condições políticas para que ela governe. E ela provavelmente não quer governar. O mais provável nesse cenário é que convoque eleições e, se ela perder, ela se livra de um problema. Já não terá mais a obrigação de fazer um ajuste. Será a oposição a responsável pelo ajuste e Kirchner passará à oposição.

Vai questionar o ajuste, vai criticar as reformas e vai agitar todas as bandeiras com o objetivo de voltar em 2027. Cristina Kirchner tem, como poucos, um pensamento estratégico de médio e longo prazos. Ela já planeja como voltar em 2027. E a forma de voltar é não deixar soluções ao próximo governo. Precisa deixar problemas.

Quais problemas ela poderia deixar, se o FMI monitora as contas públicas?

Cristina Kirchner quer instalar um salário básico universal, quer uma cobertura para 7 milhões de pessoas em condições de vulnerabilidade. Isso é mais gasto público. Também está impulsionando uma moratória previdenciária para incorporar beneficiários ao regime de seguro social que não contribuíram e que não podem se aposentar. O programa político de Kirchner hoje é entregar benefícios à população. E se isso tiver custo fiscal, será problema do próximo governo.

Quando seria esse ponto de inflexão na crise em que uma desvalorização poderia levar a uma turbulência política? Fala-se muito em setembro, pelos vencimentos de dívida…

Setembro e outubro são os dois meses críticos em termos de mercado cambial. Isso é histórico na Argentina. Nos últimos dez anos, os meses mais complicados foram setembro e outubro. Estamos em um momento de extrema tensão pré-cambial, quando poderia acontecer uma desvalorização abrupta. Hoje, para o governo, a prioridade é recompor o mercado da dívida em pesos. Foi o que entrou em crise em 8 de junho e que levou o ministro Martín Guzmán à renúncia.

Os que emprestavam pesos começaram a desconfiar de que o governo pode dar o calote. Por outro lado, há um aumento da inflação. Os economistas calculam uma inflação entre 6% e 10% em um único mês. Isso vai gerar mais conflito social. A dinâmica vai em crescimento entre agosto e outubro. Se o governo sobreviver até depois de dezembro, poderíamos acreditar que chega até o final do mandato um ano depois. O problema será sobreviver aos próximos meses, especialmente agosto, setembro e outubro.

A ameaça de renúncia de Alberto Fernández no dia 3 de julho, quando o país estava sem ministro da Economia, foi verdadeira ou foi para condicionar Cristina Kirchner?

Acredito que tenha sido uma reação para condicionar Cristina Kirchner. Mas não imagino um segundo episódio de renúncia no Ministério da Economia. Silvina Batakis é a última chance que esta coalizão tem para demonstrar que tem vontade política de resolver o problema. Se Batakis renunciar, acredito que seria o desenlace de Alberto Fernández.

Por que Alberto Fernández se submete a Cristina Kirchner?

Porque o presidente não tem recursos políticos para se impor. Quando Cristina Kirchner o escolheu como candidato a presidente, avaliou, entre outras particularidades, que ele seria um presidente sem poder político. Não tem nenhum recurso para se impor ao poder político dela. Kirchner tem o controle político de toda a coalizão. Todo o poder eleitoral é dela. Alberto Fernández não tem nada. Perdeu tudo. Os dirigentes da coalizão não estão dispostos a defendê-lo para enfrentar Cristina Kirchner. O presidente pode querer cumprir com o FMI, mas não tem poder político para impor essa vontade.

E Cristina Kirchner governa ou só veta?

Nenhum dos dois governa. E isso é ainda pior do que alguma das duas alternativas. Ela tem poder de veto. Tem capacidade de impedir.

O que é crucial para acalmar os mercados?

O que estamos todos esperando é que Cristina Kirchner se pronuncie em apoio à ministra da Economia. Até agora ela não disse nada, mas pessoas que são da sua confiança política e aliados do ‘kirchnerismo’ já começaram a questionar a ministra e a organizar passeatas de protestos contra a postura da ministra de querer cumprir com o FMI.

A situação não vai melhorar enquanto não houver sinais claros por parte de Kirchner de que está comprometida com os anúncios da ministra Silvina Batakis. É a prova de que há compromisso político com esse rumo. A Argentina precisa do compromisso de Kirchner com o programa do FMI. E isso ainda não aconteceu. Pelo contrário, vemos sinais de que não está de acordo.

Kirchner não se pronunciou a favor do FMI, mas vemos atores que começam a se manifestar em protesto ao acordo com o fundo. Essas passeatas são conduzidas por aliados dela. Isso é Cristina Kirchner falando por meio dessas manifestações?

Podemos interpretar tranquilamente que sim, que é Kirchner falando por meio dos protestos, porque são atores de muita confiança política dela e não fariam coisas que ela não gostaria. Ela usa o próprio conflito social que emerge da rua para questionar o rumo [do acordo com o FMI]. Kirchner procura que seja a própria realidade social que fale por ela. Resta ver se esse conflito social vai aumentar. Além de todo o problema econômico e financeiro que a Argentina tem, começa a surgir a dívida social. Isso significa mais complicação para este processo.

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