No ultimo mês de 2024, tribunais estaduais e ramos do Ministério Público tiraram proveito das sobras em caixa para aprovar benefícios extras para magistrados que elevam os salários em até R$ 463 mil líquidos, ou R$ 524 mil brutos. No total, só nos Tribunais de Justiça, em dezembro, foram pagos valores que somam pelo menos R$ 1,5 bilhão, conforme dados divulgados no Painel de Remuneração dos Magistrados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Os valores excluem as estimativas com o pagamento de 13º salário.
A prática de conceder benefícios, vantagens e penduricalhos no final do ano tem se repetido. Em alguns casos, as medidas autorizadas nesses meses têm validade durante o ano todo. Esses gastos são conhecidos como “dezembrada”, como explica a diretora-executiva da Transparência Brasil, Juliana Sakai.
“É muito comum na gestão pública ter a ‘dezembrada’, que é: o orçamento não foi executado o ano inteiro, por mau planejamento muitas vezes, aí chega no final do ano e os magistrados têm a oportunidade de executá-lo e isso (distribuição de penduricalhos) é feito”, afirmou.
Como mostrou o Estadão, um dos casos mais recentes de “dezembrada” ocorreu no Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ-AL), onde a cúpula da instituição aprovou nos últimos dias de trabalho do ano passado um pacote de medidas que reconhece o direito de juízes e desembargadores ganharem até R$ 438 mil cada a título de valores retroativos do Adicional por Tempo de Serviço (ATS), penduricalho também conhecido como quinquênio.
O conjunto de benesses incluiu o pagamento de um mês de vantagens relativas à licença prêmio em 2025, caso haja disponibilidade financeira. A Corte de Alagoas ainda autorizou que R$ 15 milhões do Fundo Especial de Modernização do Poder Judiciário (Funjuris) sejam usados para o pagamento de “auxílios e outras vantagens, desde que caracterizadas como ‘outras despesas correntes’”.
A Corte argumenta que “todas as medidas adotadas relacionadas a pagamentos de vantagens e benefícios a magistrados e servidores estão rigorosamente fundamentadas na legalidade, sendo reconhecidas como devidas e autorizadas pelo CNJ”.
O professor de economia da Fundação Dom Cabral e autor do livro “O País dos Privilégios”, Bruno Carazza, explica que a não execução das sobras orçamentárias implica na devolução desses recursos aos governos, o que contribuiria para a melhoria das contas públicas.
“Todo o esforço que o governo tem para colocar as contas públicas em dia não atinge os órgãos do Judiciário e do Legislativo”, afirmou Carazza. “Como há liberalidade de lidar com os seus orçamentos sem cortar despesas, toda sobra que eles (Judiciário, Ministério Público e Legislativo) acumulam ao longo do ano é torrado com benesses salariais para zerar os recursos do orçamento anual”, completou.
Esse cenário foi visto no mês de dezembro no Ministério Público de Santa Catarina (MP-SC). A instituição autorizou pagamento de gratificações natalinas, indenizações de férias (60 dias por ano) e folgas (uma a cada três dias trabalhados) a um grupo de 29 procuradores e promotores. A combinação de benefícios rendeu mais de R$ 151 mil líquidos a cada um dos beneficiados.
O Estadão mostrou em reportagem publicada recentemente que as folhas salariais de alguns promotores e procuradores nem sequer tiveram descontos pelo abate-teto, regra que, em tese, limitaria os proventos dos funcionários públicos ao valor do salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal (R$ 44 mil).
O MP-SC diz que “a remuneração segue o ordenamento jurídico vigente, com o subsídio observando o limite imposto pelo teto constitucional – exceto as verbas indenizatórias, devidamente autorizadas”.
O procurador catarinense recordista em valores recebidos no mês de dezembro somou R$ 203 mil líquidos em seu contracheque, dos quais R$ 141,8 mil foram verbas indenizatórias, sobre as quais não incide o imposto de renda. O salário-base desse membro do MP-SC é de R$ 39,7 mil.
Caso semelhante ocorreu no Tribunal de Justiça de Rondônia (TJ-RO). A Corte pagou mais de R$ 400 mil livres de impostos a sete juízes no último mês de 2024. Um desses magistrados, cujo salário-base é de R$ 35,8 mil, recebeu um salário bruto de R$ 524 mil em dezembro, o que rendeu, após o descontos de impostos que incidem sobre a folha de pagamento, um total de R$ 463 mil limpos na conta corrente do magistrado.
Desses R$ 486 mil, R$ 279,4 mil são relativos ao pagamento do adicional por tempo de serviço (ATS). Também foram pagos sob o guarda-chuva “direitos eventuais” R$ 64 mil a título de abono natalino e R$ 141,5 mil de juros e atualização monetária relacionados ao ATS. O TJ-RO não comentou o caso.
No Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJ-MS), os magistrados ganharam até R$ 250 mil líquidos em dezembro, o que representa quase oito vezes mais do que o teto do funcionalismo público. Também no final do ano, a então presidente da Corte sul-mato grossense, desembargadora Clarice Claudino da Silva, decidiu pagar R$ 10 mil a todos os magistrados e R$ 8 mil aos servidores a título de vale-alimentação, penduricalho logo intitulado “vale peru”. O tribunal não se manifestou ao ser procurado.
O ministro Mauro Campbell Marques, corregedor do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão que fiscaliza o Poder Judiciário, mandou suspender o pagamento por considerar o valor exorbitante. O benefício, no entanto, caiu na conta dos magistrados e servidores, mesmo após a decisão do ministro. Com a repercussão, o tribunal recuou e mandou servidores e magistrados devolveram o dinheiro.
Em Minas Gerais, 32 magistrados tiveram contracheques acima de R$ 300 mil ao longo do ano, sendo que 29 deles receberam essas cifras no mês de dezembro. Nesse mês, os magistrados de Minas Gerais receberam, em média, R$ 214 mil. O valor é da remuneração líquida, ou seja, o que efetivamente caiu na conta após descontos. A Corte não comentou.
Os contracheques foram inflados por “verbas complementares” – indenizações, direitos pessoais e direitos eventuais. As verbas indenizatórias, como adicional por tempo de serviço, e vantagens eventuais, a exemplo do reembolso por férias atrasadas, são contadas fora do teto, o que abre caminho para os chamados “supersalários”. Esses auxílios também não sofrem incidência de imposto de renda.
O coordenador de advocacy da plataforma Justas, Felippe Angeli, destaca o fato de que os benefícios pagos pelo Judiciário e pelo Ministério Público no final de ano são isentos de imposto por terem caráter indenizatório. O fato de figurarem como indenização no orçamento também ajuda a explicar o motivo de serem pagos sempre no final do ano ou no início do ano seguinte.
“Grande parte desses valores são compostos por verbas indenizatórias e, muitas vezes, é preciso acumular algum período (para recebê-los)”, analisou. “Culturalmente, na sociedade brasileira em geral, há uma concentração de benefícios, no setor público e privado, no final de ano”, completou.