“Evidentemente, nós, que somos cumpridores de acordo, vamos encaminhar o voto ‘sim’, mas eu faço questão de registrar isto: nós estamos cometendo um crime contra a credibilidade do país”, profetizou o senador Jaques Wagner, do PT da Bahia, na votação de ontem da PEC dos Precatórios.
Poucas frases podem ser mais esquizofrênicas e mais emblemáticas do que a oposição chancelou nesta quinta-feira: um cheque em branco para Jair Bolsonaro sair das cordas em que está desde a pandemia e entabular um discurso social para as eleições de 2022.
Essa frase e a votação de ontem certamente serão objeto de estudo se o presidente conseguir recuperar fôlego após o início do Auxílio Brasil, um benefício que ataca um flagelo grave e oferece uma transferência necessária de renda, mas empurrando montanha abaixo uma bola de neve fiscal de efeito explosivo para todos, principalmente os mais necessitados.
E Bolsonaro está enfunando as velas para redirecionar toda a sua campanha com esse propósito. Sua live semanal nesta quinta-feira foi ao lado do ministro da Cidadania, João Roma. Parecia aquele quadro em que Silvio Santos tirava um maço de notas do bolso e perguntava para um auditório lotado: “Quem quer dinheiro?”.
Bateu bumbo com o Auxílio Brasil, o Auxílio Gás e a tarifa social da energia elétrica, disse que zerou impostos sobre os combustíveis. Faturou em cima do Pix Saque e do Pix Troco como se fossem medidas de governo, dizendo que o Brasil está “tirando” bilhões dos bancos. É o Bolsonaro pai dos pobres, homem do povo, com o discurso prontinho para 2022.
Recessão técnica? Nem um pio. Os problemas, como sempre, foram terceirizados para os governadores e para o Supremo Tribunal Federal, a quem empurrou a responsabilidade pelo preço dos combustíveis.
João Roma, empolgado com o Pix que acabara de receber do Congresso, tascou um slogan para o chefe: “O senhor hoje venceu a burocracia para ajudar os mais necessitados”.
O capitão nesta semana ingressou no PL, depois de algumas rusgas. Pavimentando o caminho partidário, também deverá em breve fechar alianças com o PP e, talvez, com o Republicanos. Menos um obstáculo.
A oposição, Lula e PT à frente, parece acreditar que Bolsonaro chegará fraco ao segundo turno graças às dificuldades econômicas e ao desgaste da pandemia. Não parece levar em conta que o Orçamento agora praticamente liberado pela PEC dos Precatórios, sem limites de uso de emendas e com o teto implodido, tem um imenso poder de fogo num ano eleitoral.
Também não leva em conta que a pandemia — assim esperamos todos nós — poderá estar debelada no momento das eleições e que isso poderá fazer com que a revolta diante dos vários crimes perpetrados pelo presidente e seus assessores no enfrentamento da Covid-19 também tenha arrefecido.
O raciocínio que pautou a forma bovina como o Senado chancelou uma das mais indefensáveis propostas legislativas já formuladas, a muitas vezes remendada PEC dos Precatórios, parece ter sido que pegaria mal não viabilizar o Auxílio Brasil.
Não foram poucas as vozes que se levantaram para provar que não era necessário dar calote nos precatórios nem arrombar o teto para pagar o benefício. Bastava derrotar a medida do governo — o que seria, ademais, uma sinalização de que o país não está disposto a abrir mão de qualquer princípio de saúde fiscal — e colocar em seu lugar uma outra, que focasse única e exclusivamente no Auxílio, indicando outras fontes de receita para viabilizá-lo, mexendo, por exemplo, nas sagradas emendas ao Orçamento.
Foi uma semana benfazeja para Bolsonaro, que ganhou um partido, emplacou mais um aliado no Supremo Tribunal Federal e ganhou de bandeja da oposição um discurso social para tentar crescer nas intenções de voto. Apostar que o capitão está morto e que em 2022 será fácil vencê-lo pode se mostrar um erro crucial.
Por Vera Magalhães / O Globo