Ao anunciar no sábado que o Brasil não irá prender Vladimir Putin se ele viajar ao país para a cúpula do G20, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva violaria o Estatuto de Roma, que cria o Tribunal Penal Internacional.
A entidade, em março deste ano, pediu a prisão do presidente da Rússia, após a divulgação das investigações que concluíram que o russo cometeu crimes de guerra durante a invasão da Ucrânia, em específico diante da deportação de crianças. O gesto, porém, foi denunciado como um ato político por parte da diplomacia internacional.
Putin não será preso na Rússia, já que o país não reconhece a jurisdição da Corte. Mas autoridades como a do Brasil e de qualquer outro país membro do tribunal teriam a obrigação de prendê-lo se ele pisar em território nacional, segundo um ministro do Supremo Tribunal Federal brasileiro consultado pelo UOL.
Além dos russos, os governos dos EUA e da China tampouco ratificaram o tratado que cria a corte e não reconhecem sua jurisdição. Quando o tribunal iniciou uma investigação sobre as ações de tropas americanas, o então presidente Donald Trump adotou sanções drásticas contra os procuradores e funcionários da corte.
O caso do brasileiro é diferente, por conta de o país ter optado por aderir ao tratado e coloca o Brasil em uma saia-justa. Se quiser ser um mediador da guerra e canal para uma negociação, não poderá prender Putin.
Mas, pela lei, a questão da não conformidade do Brasil poderia ser levada, em última instância, até mesmo ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, numa queixa formal com implicações diplomáticas e de reputação.
Para observadores, o brasileiro também ameaça minar qualquer cooperação futura em relação ao ex-presidente Jair Bolsonaro, caso eventualmente ele seja indiciado pela mesma corte. O ex-líder brasileiro foi denunciado por sua gestão da pandemia e por ações contra indígenas. A procuradoria em Haia ainda avalia o caso. Mas, caso opte por abrir investigações formais, pedirá a colaboração do estado brasileiro.
Assim, uma recusa em agir contra Putin, para pessoas próximas ao tribunal, criaria um mal-estar nos demais casos envolvendo o Brasil, entre eles o de Bolsonaro.
Prisão ampliaria tensão internacional
Ao mesmo tempo, diplomatas brasileiros do mais alto escalão consideram que uma prisão de Putin seria desastrosa para a estabilidade internacional e enterraria qualquer chance de paz. O mandado estipulado contra o russo foi considerado por chancelarias de países emergentes como um erro e politizado.
O problema, porém, é que o Brasil ratificou o tratado, o que significa que é obrigado a cumprir com as determinações da corte.
Consta no artigo 59 do Estatuto da corte que:
1. Um Estado Parte que tenha recebido um pedido de prisão provisória ou de prisão e entrega deverá imediatamente tomar medidas para prender a pessoa em questão, de acordo com suas leis e com as disposições da Parte 9.
2. A pessoa presa deverá ser levada prontamente à autoridade judicial competente do Estado de custódia que determinará, de acordo com a legislação desse Estado, que:
(a) O mandado se aplica a essa pessoa;
(b) a pessoa foi presa de acordo com o processo adequado; e
(c) os direitos da pessoa foram respeitados.
Numa entrevista à imprensa indiana e que foi ao ar no sábado pela noite, Lula afirmou que, se Putin viajar ao Brasil, não seria detido e que nenhum país teria o direito de dizer o que o governo deve fazer.
O que ocorre, porém, é que isso não se trata de uma decisão de um governo estrangeiro. E sim de um organismo criado também pelo Brasil.
Existem acusações e dúvidas sobre a intenção do TPI com o mandado de prisão contra a Putin. Mas ignora-lo seria violar as regras.
Brasil poderia ser levado ao Conselho de Segurança da ONU
De acordo com as regras, a decisão do Brasil de não cumprir a ordem poderia ser levada ao Conselho de Segurança da ONU. Diz o artigo 87 do Estatuto de Roma:
Quando um Estado Parte deixar de atender a uma solicitação de cooperação do Tribunal contrária às disposições do presente Estatuto, impedindo assim que o Tribunal exerça suas funções e poderes nos termos do presente Estatuto, o Tribunal poderá fazer uma constatação nesse sentido e encaminhar a questão à Assembleia dos Estados Partes ou, quando o Conselho de Segurança encaminhar a questão ao Tribunal, ao Conselho de Segurança.
No caso específico de Putin, não seria uma ação direta ao Conselho da ONU. Antes, teria de passar pela Assembleia dos Estados Partes que, por sua vez, poderia decidir encaminhar ao próprio órgão máximo da ONU. Ou simplesmente lidar em suas próprias instâncias.
O que ocorreria se Putin receber convite para ir ao Brasil?
Uma vez confirmada a ida de Putin, Haia entrará em contato com as autoridades brasileiras para solicitar a prisão. O único espaço que o governo teria seria de consultar o tribunal para determinar e organizar de que forma a detenção deveria ocorrer.
Haia já denunciou governo que não colaborou
De fato, o debate sobre a imunidade de chefes de estado foi intensa nos últimos anos, mesmo depois da criação da corte. Um dos casos mais polêmicos foi a viagem do sudanês Omar Al Bashir para a Jordânia. O presidente africano havia sido condenado pelo Tribunal que, então, pedia aos governos que o prendessem caso ele pisasse em seu território.
A Jordânia ignorou o pedido para permitir que Bashir participasse de uma cúpula, em 2017. O caso, porém, foi denunciado e Haia concluiu que o governo jordaniano violou as regras ao não agir contra o sudanês.
O que disse a decisão da corte?
Constatou-se que a Jordânia, um Estado Parte do Estatuto de Roma do TPI desde 2002, não cumpriu suas obrigações ao não prender o Sr. Omar Al-Bashir (em todos os momentos relevantes o Presidente da República do Sudão (“Sudão”)) e entregá-lo ao TPI enquanto ele estava em território jordaniano participando da Cúpula da Liga dos Estados Árabes em 29 de março de 2017.
A Câmara de Recursos considerou que o artigo 27(2) do Estatuto de Roma do TPI, que estipula que as imunidades não são um impedimento para o exercício da jurisdição, reflete o status do direito internacional.
Concluiu que não há imunidade de Chefe de Estado nos termos do direito internacional em relação a um tribunal internacional
Para observadores, a decisão sobre Bashir “pacificou” o debate e ficou estabelecido que não existe imunidade que permita ignorar os mandados de prisão.
Por esse motivo, Putin evitou viajar até a África do Sul para a cúpula do Brics. Os sul-africanos também fazem parte da corte em Haia e teriam a obrigação de deter o presidente russo.