“Vocês acreditam em Deus? Vocês acreditam em milagre?”
As duas perguntas poderiam abrir a pregação de um pastor. Na quinta-feira (4), abriram o discurso do presidente da República, diz o colunista Bernardo Mello Franco, do jornal O Globo.
Lula foi a Arcoverde, no interior de Pernambuco, inaugurar uma elevatória de água. Diante da plateia sertaneja, descreveu a transposição do São Francisco como uma obra divina, diz o colunista.
“Então, qual foi o primeiro milagre? O primeiro milagre é a gente estar vivendo o que a gente está vivendo hoje aqui”, afirmou.
O presidente recordou a infância no agreste, quando buscava água num açude barrento. Lembrou doenças causadas pela falta de saneamento, como a esquistossomose. Criticou a demora para a canalização do rio, prometida desde o Império.
“Esse é um milagre que aconteceu com um cara que viveu a seca”, disse. Em seguida, ele definiu sua própria eleição como um “ato de fé” dos brasileiros. “Isso só pode ser feito porque Deus existe. O homem lá de cima falou: ‘Eu vou ajudar o nordestino através de um nordestino’. E cá estou eu”, empolgou-se.
Em 17 minutos no palanque, Lula falou 16 vezes em “milagre”, 11 vezes em “Deus” e cinco vezes em “fé”. O discurso coincidiu com uma guinada na comunicação oficial. O governo lançou uma ofensiva publicitária com o slogan “Fé no Brasil”. Uma tentativa explícita de melhorar sua avaliação entre os evangélicos.
O mote não é novo, diz Bernardo Mello Franco em sua publicação. Já embalou as campanhas presidenciais de Guilherme Afif, em 1989, e Anthony Garotinho, em 2002. Os dois candidatos apostaram na religiosidade dos eleitores. Um amargou o sexto lugar, com 4% dos votos. Outro terminou em terceiro, com 17%.
Pesquisas mostram que Lula encontra mais resistência entre os evangélicos. É natural que o governo busque se aproximar do segmento. O problema é acreditar que a solução esteja na propaganda — e na reciclagem de um slogan de eleições passadas.
Não basta falar em Deus para atrair a simpatia dos fiéis. Evangélicos vão ao supermercado, fazem feira, pagam boletos. Sentiram a alta no preço do arroz e do feijão, que elevou a cesta básica e apertou o orçamento das camadas mais pobres. Combater a inflação de alimentos e retomar o trabalho de base seria mais útil que apelar ao marketing religioso.
Lula ainda enfrenta outro problema: a aliança do bolsonarismo com as grandes igrejas e seus representantes no Congresso. Além de investir na retórica conservadora, o capitão agradou o setor com vantagens terrenas, como cargos e isenções fiscais. Em contrapartida, os pastores reforçaram a demonização da esquerda em geral e do PT em particular.
No fim de 2023, o presidente admitiu que a sigla não consegue “chegar aos evangélicos”. “Precisamos aprender a construir um discurso para falar com essa gente”, desabafou. No mês passado, ele acrescentou que a religiosidade não pode ser explorada como instrumento político. Faltou combinar com os responsáveis pela propaganda oficial.
Lula parece convencido de que o caminho para recuperar popularidade é falar a língua dos fiéis. O risco é exagerar na dose e soar artificial, como se viu em Arcoverde.