Ele admite que nunca pensou que chegaria a esse ponto. Prestes a completar 36 anos, idade que o habilita a se sentar na cadeira presidencial no Palácio La Moneda a partir de 11 de março, Gabriel Boric Font fuma um cigarro atrás do outro poucas horas antes de anunciar seu gabinete.
A equipe ao seu lado no governo, que promete profundas transformações sociais, é provavelmente a mais diversa que o país já viu: mais mulheres do que homens, metade oriunda de escolas públicas, membros de sua coligação política; são um símbolo de um Chile que se afasta das elites sociais que governam o país desde o retorno à democracia, nos anos 1990.
“Em um momento em que o mundo muda vertiginosamente, o Chile também precisa mudar e se adaptar. Representamos a força de uma época”, disse Boric à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC), na primeira entrevista a um veículo estrangeira após vencer as eleições presidenciais.
Foram quase duas horas de conversa em que ele falou não apenas de uma “nova ordem” para o Chile, mas também de sua relação com a esquerda latino-americana – inclusive com ex-presidente Lula, com quem diz planejar colaborar caso o brasileiro se eleja -, suas referências políticas ao redor do mundo e a violência vista durante a revolta social no país.
BBC News Mundo – O que o sr. acha que representa e o que lhe permitiu chegar ao Palácio La Moneda?
Gabriel Boric – Acredito que representamos uma energia geracional de transformação que aprendeu ao longo do caminho a valorizar a história que nos constitui. Representamos o ar puro, a juventude, a novidade, mas com consciência da cadeia histórica dos processos. Também representamos que o status quo, ou o conservadorismo, é a pior coisa que pode acontecer ao Chile neste momento.
Num momento em que o mundo está mudando rapidamente, o Chile também precisa mudar e se adaptar. Representamos a força de uma era.
BBC News Mundo – O sr. acaba de anunciar um gabinete com 10 homens e 14 mulheres…
Boric – Que alegria poder falar isso nos dias de hoje. O fato de termos conseguido isso se deve à luta de milhares de mulheres que, por muito tempo, empurraram as barreiras do que era considerado possível, e agora com a última onda feminista ainda mais.
Mas não somos os primeiros a fazer isso. A presidente (Michelle) Bachelet em seu primeiro mandato fez um esforço para ter um gabinete conjunto, e as forças do conservadorismo rapidamente a cortaram.
BBC News Mundo – Por que diz isso?
Boric – Porque teve que mudar. O primeiro gabinete apresentado tinha paridade e ninguém repete o prato, disse; e na primeira mudança de gabinete, ela teve que fazer mudanças por causa de pressões que iam além do que era seu desejo genuíno. Hoje nós trazemos essa experiência também. Não quero nos apresentar como pioneiros, mas estamos colhendo um legado que vai muito além de nós.
BBC News Mundo – E com ministros e ministros que vêm de diferentes realidades educacionais… Qual é a sinalização que o sr. quer dar?
Boric – Que o Chile é diverso, e que a diversidade também deve ser expressa em suas instituições e em sua política. Por muito tempo, a elite chilena foi excessivamente consanguínea e não conseguia enxergar além de seus próprios narizes. Como parte de uma elite, acredito que temos o dever e a responsabilidade de sair de nossos círculos de conforto e pensar em um Chile mais abrangente.
BBC News Mundo – Entre seus ministros há um professor na pasta de Educação que foi formado em escola pública…
Boric – Isso mesmo, em San Miguel, na mesma escola de Los Prisioneros (uma das principais bandas de rock do Chile). Pareceu-nos que este foi um gesto importante, para além da competência e vocação profissional de Marco Ávila. Creio que foi um gesto necessário para o setor.
Por muito tempo tivemos acadêmicos sem sala de aula, engenheiros comerciais dirigindo a educação em nosso país. Acredito que era preciso um choque de sala de aula, que é onde as desigualdades e os desafios da experiência educacional se expressam com mais clareza. Isso não pode ser reforma sem sala de aula, sem meninos e meninas, não pode ser reforma sem professores.
BBC News Mundo – E uma mulher de 35 anos, a ex-presidente da Faculdade de Medicina, Izkia Siches, no Ministério do Interior…
Boric – Que coragem tem Izkia Siches. Mas isso vem sendo amplamente demonstrado há muito tempo. É uma liderança reconhecida pela sociedade chilena pelo papel que desempenhou nos momentos mais difíceis em que a pandemia nos atingiu.
De opiniões firmes, mas ao mesmo tempo aberta a ouvir e convocar de forma transversal para um bem comum acima dos interesses pessoais. Acho que ela conseguiu dar sentido a uma faculdade de medicina que, por muito tempo, só defendia os interesses de um setor muito pequeno. E a partir daí falou com a sociedade.
Não tenho dúvidas de que desempenhará um excelente papel no comando do Ministério do Interior e Segurança Pública, o que é um tremendo desafio, porque é um ministério que tem sido tradicionalmente conturbado. Izkia também está muito interessada em aceitar este desafio e confio plenamente nela.
BBC News Mundo – Que critérios o sr. utilizou para escolher a sua equipe de ministros?
Boric – Os critérios que tivemos em vista foram, por um lado, que teria que ser um gabinete paritário, ou com mais mulheres que homens; que incorporaria a diversidade de realidades, incluindo a presença da educação pública, tanto acerca da formação escolar como universitária; um gabinete que conseguisse ser uma síntese de gerações, por um lado a nossa geração que emergiu na vida pública em 2006 e tem crescido a partir de lutas sociais, mas também outra que administrou o Estado por muito tempo e tem experiências valiosas das quais queremos aprender.
E também um gabinete que representasse a amplitude social que conseguimos reunir na vitória de 19 de dezembro na base da coligação Apruebo Dignidad, mas que vai além dela, com os partidos políticos que nos deram seu apoio no segundo turno e têm representação parlamentar. Além, também, das organizações sociais e das pessoas independentes que mobilizaram e fizeram a diferença com as mulheres.
BBC News Mundo – A sinalização da escolha do atual presidente do Banco Central para administrar o Ministério da Fazenda foi aplaudido por empresários e investidores. Quanto lhe custou convencer o Partido Comunista desta nomeação?
Boric – As nomeações, de todos os cargos, eram discutidas em termos de pessoas com os partidos. Eles me deram total liberdade para designar o gabinete, confinados aos critérios que eu tinha para formar nossa equipe de trabalho. E nisso eu aprecio o nível da visão que todas as partes tiveram.
BBC News Mundo – Foi uma decisão coletiva?
Boric – Foi uma decisão coletiva. Discuti no início do processo com o Apruebo Dignidad a possibilidade de incorporar independentes e militantes de partidos políticos que não faziam parte da coalizão, e eles me deram total liberdade para isso, algo que usei adequadamente.
Além disso, acredito que no caso de Mario Marcel em particular, ele tem uma trajetória e experiência no Estado, na diretoria de orçamento, no Banco Central e também no exterior, no Banco Mundial, na OCDE. Essa trajetória histórica é inquestionável, e que é também uma garantia de seriedade para as reformas que temos de impulsionar, que vão ser difíceis e que vão exigir um amplo consenso. Elas precisavam, penso eu, desta garantia de que uma pessoa como Mario Marcel pode dar, além de suas firmes convicções progressistas, já que ele se define como social-democrata.
BBC News Mundo – O sr. sempre responde no plural, em circunstâncias em que todas as perguntas foram feitas ao sr., provavelmente porque toma suas decisões negociando com o resto de sua equipe. Estou me referindo a essa lógica de assembleia que usa com seu grupo para tomar decisões, que pode ser bem democrática, mas o sr. acha que poderá ser eficiente na hora de tomar decisões?
Boric – Há muito mito em torno das assembleias. Toda organização requer algum tipo de ordem. E o desafio que temos como governo é gerar uma nova ordem.
Eu diria que o problema no Chile hoje é que essa ordem não existe. O contrato social foi quebrado. E, do meu ponto de vista, pelas elites. Portanto, para recuperar a ordem são necessárias novas formas e não repetir as mesmas do passado.
BBC News Mundo – De que maneira o contrato social foi quebrado?
Boric – Quando vemos que, durante a pandemia, por exemplo, as principais riquezas do Chile aumentaram substancialmente seu capital, enquanto a pobreza e a extrema pobreza cresceram pela primeira vez em décadas.
Quando vemos o nível de precariedade e vulnerabilidade que a classe média tem em relação às pessoas mais ricas deste país, o lugar onde se nasce continua a determinar de forma muito substantiva ou preditiva o lugar onde se vai morrer.
Por isso a promessa de igualdade, além do fato de que sem dúvida houve maior acesso a bens básicos, ampliação de matrículas, redução da pobreza… Acredito que a promessa de igualdade e inclusão não foi cumprida e, portanto, esse pacto social está quebrado e precisamos construir um novo.
BBC News Mundo – O sr. pode definir essa “nova ordem”?
Boric – O que aspiramos é poder construir uma sociedade colaborativa, na qual alguns de seus membros não sejam abandonados ou discriminados pelas condições de vida em que tiveram que viver, e na qual o Estado também seja capaz de garantir os direitos sociais de forma universal. independentemente de onde você nasceu, a etnia da qual você vem ou a da cor de sua pele. Isso requer reformas estruturais.
Sabemos que essas coisas não podem ser alcançadas da noite para o dia, sabemos que certamente nosso governo vai construir sobre o que foi construído no Chile nos últimos 30 anos, mas também vamos ter uma virada em relação à lógica política neoliberal de cada um por si na sociedade. Isso é algo que temos que acabar.
Não podemos passar de “não esperávamos” para “nada aconteceu aqui”. No Chile, ainda existe um mal-estar profundo que ainda não foi resolvido em questões sociais. Há muita precariedade.
ESTILO DE GOVERNAR
BBC News Mundo – O sr. é um homem de dúvidas ou de certezas?
Boric – Sou um homem mais de dúvidas do que de certezas. É importante acompanhar as convicções que tenho com a possibilidade de duvidar delas, para melhorar. As pessoas que são muito seguras de si me geram um certo distanciamento.
BBC News Mundo – Haverá muitas vezes em que o sr. terá que tomar decisões difíceis sozinho. Quanto estresse essas circunstâncias têm sobre o sr.?
Boric – É super difícil. Não será a primeira vez, você tem que ser muito claro sobre suas convicções e princípios e agir sempre em coerência com eles. Às vezes isso significa ir contra o que pode ser mais popular em um determinado momento ou o que as pessoas mais próximas te dizem. Há algo impossível de se medir, que é a intuição em política, quando se tem convicções firmes não se vai ziguezagueando pela vida. Isso te permite ter uma trajetória previsível nesse sentido.
BBC News Mundo – Quais são as habilidades e competências que um presidente deve ter atualmente?
Boric – Venho formando a convicção de que um bom presidente não é aquele que está mais ocupado, não é aquele que tem mais papéis a sua volta. Um bom presidente é aquele que tem capacidade de ouvir, estar aberto a novas ideias mesmo que não venham de seu círculo mais íntimo. Um presidente que tem capacidade de refletir e convocar.
Sempre disse que a radicalidade da nossa proposta não está em quão forte as defendemos, em quão esdrúxulas são as intervenções, mas sim pela capacidade de convocação e pelo significado que dão às pessoas.
Primeiro você se torna classe dominante antes de ser classe dirigente. Você primeiro faz mudanças culturais antes de ter a chance de dirigi-las. E acho que nossa geração fez exatamente isso.
BBC News Mundo – Você adotou uma nova forma de relacionamento com as pessoas, muito horizontal, próxima, afetuosa, as pessoas lhe contam seus problemas, você as ouve e anota. Não tem medo de gerar expectativas impossíveis de cumprir?
Boric – É uma preocupação, mas também sempre digo às pessoas nessas conversas que não vou conseguir cumprir tudo. E há uma sabedoria popular maior do que supõem as elites.
As pessoas sabem que isso vai ser difícil, sabem que as mudanças não virão da noite para o dia, mas querem que tentemos e que sejamos honestos ao tentar. Uma das coisas que importa para mim é contar a eles sobre os obstáculos que estamos enfrentando e por que há certas coisas que fazemos e outras que não podemos fazer.
E também para envolvê-los no processo de governo, para que eles se sintam parte dele, e nós vamos lá juntos, moldando expectativas com base na realidade. A realidade é mais teimosa do que qualquer ideologia.
BBC News Mundo – E quais são suas expectativas?
Boric – Minha expectativa é que ao final de nosso mandato tenhamos um Chile que se encontre, onde colaboramos mais do que competimos; um Chile que se faz ouvir, e sobretudo um Chile mais justo no sentido de que as enormes desigualdades que hoje marcam o lugar de origem e o lugar da morte se diluem em função da trajetória de vida e das possibilidades que cada um tem como pessoa. E que essas possibilidades sejam cada vez mais iguais.
BBC News Mundo – Não é fácil assumir este país… O que está disposto a perder?
Boric – Essa pergunta é boa porque na política sempre perguntam o que você quer fazer, mas não do que você está disposto a desistir. O que importa para mim é melhorar as condições de vida de forma sustentável e sustentável a tempo para quem habita o nosso país. É preciso, portanto, ter mais do que limites rígidos.
Estou disposto a conversar muito e me preocupo mais em chegar ao porto do que apenas seguir o caminho que tracei para mim no início. Temos um roteiro, mas se descobrirmos que há um precipício no caminho, encontraremos uma maneira de atravessá-lo, mesmo que isso torne a estrada um pouco mais longa.
BBC News Mundo – O sr. disse em muitas ocasiões que quer ser um presidente que no final de seu mandato tenha menos poder do que quando começou. Ao que o sr. se refere especificamente?
Boric – Isso tem a ver de onde eu venho. Sou de Magalhães, nascido e criado nas margens do Estreito e desde que me lembro ouço a palavra descentralização sem que ela tenha tido grandes efeitos na vida cotidiana das pessoas. As decisões acabam sendo tomadas por uma elite de classe alta de Santiago, acima das realidades que se vivem nas comunas, nos bairros. E a figura presidencial está no topo disso.
De fato, a quantidade de expectativas que existem tem a ver com a idealização da figura presidencial que vai muito além das minhas características. É algo que aconteceu muitas vezes na história do Chile. Assim, espero, e isso estará na vanguarda do processo constitucional, que possamos construir um país em que sejamos democráticos, onde uma pessoa não detenha tanto poder e onde o poder seja também mais transparente, não apenas em termos da Presidência da República, mas também dos famosos poderes fáticos que a exercem sem mediar qualquer tipo de decisão ou deliberação democrática.
Sendo mais específico, espero que no final de nosso mandato tenhamos um Chile descentralizado, que nos bairros, nas comunas, nas regiões se possa decidir seu futuro mais do que a partir do Palácio La Moneda ou de um bairro rico de Santiago.
BBC News Mundo – Prefere ser chamado de presidente ou apenas de Gabriel?
Boric – É um desafio, mas tenho entendido que é importante assimilar a instituição presidencial. Porque hoje estou assumindo uma instituição que já existe. Por isso, sem perder a minha essência, acredito que seja importante o que foi construído e o que vem depois. Nesse sentido, penso que nesse momento eu deva se tratado como a instituição que represento.
BBC News Mundo – O sr. passa a sensação de que é muito importante para si demonstrar afeto.
Boric – É que em um país tão agredido ultimamente, tão dividido, é importante que nos amemos de novo. Para mim, a preocupação com a saúde mental foi fundamental no meu desenvolvimento nos últimos anos, e entender que, como chilenos, nos falta afeto. E se alguém pode contribuir um pouco para dar isso, me parece uma boa hora.
Agora, ouvir tem muito de reparar. Quando você ouve uma pessoa, mesmo que não consiga resolver o problema dela, você começa a gerar um vínculo diferente, ciente, insisto, de que provavelmente nem todos os problemas serão resolvidos. Mas vai se tendo um termômetro diferente. Se você se cercar apenas das mesmas pessoas que são iguais a você, da mesma classe social que você, ou que pensam igual a você, você acaba em uma bolha que distorce a realidade. E esse é um problema endêmico da política que temos que tentar mudar.
Não estou dizendo que somos mais virtuosos, ou moralmente limpos, mas que, aprendendo, e vou insistir muito nessa ideia, a partir dos erros e acertos do passado, devemos mudar e melhorar.
Há uma frase que citei recentemente em um discurso e de que gosto muito. É do compositor Gustav Mahler, que diz que “a tradição não consiste no culto às cinzas, mas na preservação do fogo” e que, de uma forma forma, também é um leitmotiv.
BBC News Mundo – Há também muitos que o temem, ou melhor, que não confiam em seu discurso de chamamento… “Lobinho disfarçado de cordeiro”, comentam alguns. O que o sr. representa que pode gerar medo em parte da elite?
Boric – Parte da elite é muito egocêntrica, isso ainda é muito inato. Por viverem em uma posição privilegiada por tanto tempo, qualquer mudança gera a incerteza que a maioria dos chilenos vive no dia a dia. E isso gera rejeição. Uma rejeição um tanto atávica.
Espero, por um lado, que as elites deixem de ter medo de nós. Não espero que concordem comigo, mas espero que parem de ter medo de nós.
Mas essa desconfiança não é uma crítica infundada, porque de alguma forma se passou de um político de frases e ações às vezes impetuosas para um político acolhedor, moderado…
No caminho da política, que se cruza com o da vida, há sempre aprendizados, e na minha construção política prefiro ser barro do que pedra. As experiências ou ações nas quais alguns se baseiam para fazer esses julgamentos também são o que me moldou. Porque errando é que eu consegui aprender. Então eu não veria isso como um problema, mas como parte de um processo de aprendizagem.
BBC News Mundo – Outra dúvida é a capacidade de seu setor, muito millennial para alguns, de garantir a governabilidade do país…
Boric – Essa crítica de que somos muito millennials [nascidos entre 1980 e 1996] é como se tivéssemos dito uma vez que os baby boomers [nascidos entre 1946 e 1964] nunca poderiam ter assumido o poder quando são eles que governam o Chile nos últimos 30 anos.
Essa crítica fica aquém da perspectiva histórica quando se vê o que as gerações anteriores foram. No “Balanço Patriótico”, (Vicente) Huidobro em 1920 disse muito claramente sobre os primeiros anos da República, tudo de grande no Chile foi feito pelos jovens: (um dos líderes da independência chilena José Miguel) Carrera aos 26, (outro líder da independência chilena Bernardo) O’Higgins aos 36, (o guerrilheiro da independência chilena) Manuel Rodríguez aos 24… Você tem que olhar para a história e ver que não é um fenômeno novo. Não é preciso ter tanto medo disso.
BBC News Mundo – Sua vitória nas eleições representa o triunfo de uma ideia de sociedade ou do olhar de uma nova geração?
Boris – Como tudo em coisas assim, é múltiplo. Tem a ver com o surgimento de uma nova geração, com a necessidade de renovação, com a ideia de uma sociedade que se opõe claramente ao que o atual governo apresentou e à candidatura com que nos deparamos no segundo turno. É o oposto do gestor 24 horas por dia, 7 dias por semana, o self-made man que estudou apenas em universidades estrangeiras, mas também tem a ver com conhecer bem a trajetória do Chile.
BBC News Mundo – Parece que sua vitória se deve mais a seu capital político pessoal e pouco a ver com a formação de uma frente ampla ou com sua identidade comunista. Como o Partido Comunista contribui para o seu governo?
Boric – Muito. Nossa aliança é a Aprovar Dignidade, mas chamamos ao gabinete partidos que fazem parte de outra tradição. Devemos conseguir desmistificar os medos contra o Partido Comunista chileno. Tivemos diferenças táticas e outras mais em determinados momentos.
O dia 15 de novembro [data da assinatura do acordo que prevê uma Convenção Constitucional – órgão encarregado de redigir uma nova Constituição -.e que o Partido Comunista não assinou] é o mais visível, mas o Partido Comunista hoje está comprometido com a implementação do nosso programa. Além disso, foi um partido que, no Chile, foi profundamente democrático e que esteve do lado das lutas sociais e dos oprimidos, e isso é algo que também me inspira.
BBC News Mundo – Dois anos após a eclosão de uma crise social, como você entende o que aconteceu então?
Boric – Acho que foi um momento de muita frustração com as promessas da meritocracia que não estavam sendo cumpridas. E havia uma consciência coletiva de que isso não estava acontecendo em diferentes partes do país.
E esse encontro levou a uma mobilização fora dos canais institucionais que, por sua vez, uniu raiva e esperança. Espero que o que prevaleça nisso seja a esperança.
Paralelamente a isso, enquanto discutimos as regras do futuro, temos que ser capazes de resolver os problemas específicos das pessoas, que foram particularmente afetadas pela pandemia.
BBC News Mundo – Existe a possibilidade de um governo de esquerda comedido e reformista?
Boric – Discordo da obsessão da elite em nos moderar nosso discurso e de nos rotular. É mais um complexo deles do que nosso. Temos uma direção e vamos caminhar rumo a ela. E essa direção é criar um Estado que consagre os direitos sociais universais, com pleno respeito aos direitos humanos, que descentralize o poder, que assuma os desafios ambientais, da crise climática.
BBC News Mundo – Não estamos falando de moderação, então…
Boric – A ideia de ser equilibrado em vez de moderado faz mais sentido para mim. Há alguns fanáticos da moderação que acabam não se movendo, e esses fanáticos causaram danos profundos ao país. Porque, com um medo atávico da mudança, acabaram estourando a panela de pressão.
BBC News Brasil – O sr. está mais próximo da social-democracia ou do comunismo?
Boric – Venho da tradição socialista libertária chilena. Esse é o meu espaço ideológico de referência. Sou democrata e acredito que a democracia tem que mudar e se adaptar e não se petrificar. Acredito que a democracia no Chile carece de maior densidade.
BBC News Brasil – E dentro da América Latina, o sr. se reconhece em algum dos governantes de esquerda?
Boric – Espero trabalhar ao lado de Luis Arce, na Bolívia, de Lula se ele ganhar as eleições no Brasil, de Gustavo Petro, cuja experiência se consolida na Colômbia. Acho que pode ser um eixo interessante.
Entendo que a pergunta está relacionada à Venezuela e à Nicarágua. No caso da Nicarágua, não consigo encontrar nada lá, e no caso da Venezuela é uma experiência que fracassou, e a principal demonstração de seu fracasso é a diáspora de 6 milhões de venezuelanos.
BBC News Mundo – O sr. se sente parte da geração de Jacinda Ardern, Sanna Marin, Emmanuel Macron, até mesmo Alexandria Ocasio-Cortez? Existe algo maior, além de todos terem menos de 45 anos?
Boric – Não sei em detalhes quais são as convicções de cada um deles, e ter a mesma idade não indica necessariamente alguma coisa.
Posso dizer que tenho uma proximidade ideológica com [o político boliviano Álvaro] García Linera, independentemente de sua idade, ou uma clara cumplicidade com o Podemos na Espanha, que não tem nada a ver com uma questão de idade, mas com as convicções que temos. E valorizo muito a experiência de Lula, mas também procuro conhecer a de [Fernando Henrique] Cardoso. Não se pode ter referências estáticas.
O que é certo é que hoje existe uma crise climática global partir da qual acredito que nossa geração vai adquirir uma consciência maior do que as anteriores. E que eu espero seja algo que nos una. Tive a oportunidade de falar sobre isso com [o premiê canadense] Justin Trudeau. Recebi uma carta de Emmanuel Macron [presidente da França], também nesse sentido, sei que [a premiê neozelandesa] Jacinda Ardern teve essa preocupação, então espero que tenhamos um ponto em comum e forcemos a gerações anteriores e os governantes de todos os países, como [a ativista] Greta [Thunberg] disse, a agir agora.
PRIORIDADES ECONÔMICAS
BBC News Brasil – Quais são suas prioridades na economia?
Boric – Que possamos ter uma consolidação da recuperação econômica que seja justa. Que não sejam reproduzidas as desigualdades anteriores. E isso implica dar maiores ferramentas às pequenas empresas para que haja uma desconcentração do mercado. Hoje, 87% das vendas no Chile estão concentradas em grandes empresas e apenas 13% em pequenas e médias empresas. Essa é a pedra angular da desigualdade em nosso país.
Temos que alcançar a combinação entre crescimento e redistribuição. Uma distribuição mais justa da riqueza. Um não é sustentável sem o outro. Todos cresceram, é verdade, mas alguns muito mais do que outros e isso ampliou a fratura da sociedade chilena.
BBC News Mundo – O sr. fala de um pacto tributário e não de uma reforma, uma diferença semântica fundamental, porque a primeira significa um acordo com todos os setores políticos.
Boric – É bom que você perceba isso, porque é ao que aspiramos.
Não se trata de mocinhos contra bandidos. Queremos que todas as forças produtivas do país concordem que é necessária uma melhor redistribuição de riqueza para crescer. E que também seja sustentável em relação ao meio ambiente, e, para isso, esperamos convocar trabalhadores organizados, pequenas e médias empresas e grandes empresários.
BBC News Mundo – O sr. receberá um país com uma das maiores taxas de inflação das últimas décadas, com um déficit relevante. Em que momento pretende comunicar que não será fácil cumprir as promessas do seu programa?
Boric – Estamos fazendo isso permanentemente. Temos o compromisso de respeitar o orçamento aprovado pelo Congresso, que tem redução de 22% nos gastos, e também de avançar em nossas reformas na medida em que estamos garantindo receita permanente para o que é considerado gasto permanente. E essa é uma linha da qual não podemos nos desviar. Não pode haver atalhos irresponsáveis. Estou confiante de que a população vai entender.
BBC News Brasil – Quão complexo é instalar um Estado de bem-estar social em um país que não tem os padrões econômicos ou sociais que os modelos social-democratas mais bem sucedidos têm?
Boric – Precisamos ver como se encontravam os países que desenvolveram Estados de bem-estar social no momento em que optaram por esse caminho.
Os desafios são diferentes. No caso dos países europeus, não apenas os nórdicos, eles decidiram criar Estados de bem-estar que garantissem direitos sociais universais quando tinham um PIB per capita semelhante ou inferior ao do Chile hoje.
Espero que concordemos como sociedade, no sentido de que há metas de longo prazo que não terão resultados antes das próximas eleições e que, portanto, muitas das decisões que tomaremos não podem ser pautadas por uma ansiedade eleitoral e que há frutos que não vou colher [durante o governo].
BBC News Brasil – O que diria que é o nosso calcanhar de Aquiles?
Boric – A desigualdade.
BBC News Brasil – E o seu?
Boric– Há muitas coisas que poderia dizer, mas, se tivesse que escolher uma, mais do que uma minha pessoal, o grande risco para nosso governo é não conseguir ampliar nossa base social de apoio para além de nossas fronteiras atuais.
Se ficarmos apenas com quem somos hoje, não conseguiremos fazer as transformações que queremos. Portanto, se não caminharmos todos juntos, será um desafio muito difícil.
RESPOSTA À VIOLÊNCIA
BBC News Mundo – Como líder estudantil, o sr. esteve nas ruas muitas vezes, mas muitas dessas manifestações terminaram em atos de violência. Vocês mesmos falaram de pessoas que mancharam aquelas marchas, mas disseram que foram poucas… Hoje, elas parecem ser a norma. O que aconteceu?
Boric – Elas não são a norma em relação à maioria. O que acontece é que existem várias explicações, mas primeiro quero deixar claro que continuo acreditando que o caminho não é a violência, quero deixar bem claro isso. Acredito que há uma frustração acumulada ao ver que as mudanças não puderam ser feitas pelos canais institucionais.
Mas a violência é um fenômeno que devemos tentar entender para tentar erradicá-la. Se você quer ter certeza de que seguirá havendo violência, basta deixar as coisas como estão.
BBC News Mundo – Há um setor da esquerda que provavelmente não lhe dará margem para um radicalismo ponderado, e a resposta pode ser mais violência nas ruas. Como pretende lidar com isso?
Boric – Temos o dever de fazer cumprir a ordem pública, isso não é uma opção para o governo. E fazer cumprir a lei. O que esperamos é que, através do processo de transformação que vamos iniciar, da convocação e da forma como falamos com povo do Chile, esses setores sejam cada vez mais minoritários.
BBC News Mundo – Que tipo de Constituição te atrai mais, uma bem regulamentada ou uma mais orientadora?
Boric – Gosto da ideia de uma Constituição orientadora, mas não asséptica. Uma Constituição que consagra os direitos sociais universais, que defende a liberdade e a igualdade, uma Constituição que descentraliza, mas uma Constituição que não abarca todas as questões e todos os problemas.
A Constituição não pode ser concebida apenas a partir de 2021 e 2022. Ela tem que permitir até questões que ainda não temos que enquadrar na Constituição.
VIDA PESSOAL
BBC News Mundo – Na esfera pessoal, do que mais teve que abrir mão além dos cabelos compridos e das camisetas de bandas de rock?
Boric – Ultimamente, sair para um bar, ir a uma livraria, está cada vez mais difícil.
BBC News Mundo – O senhor é conhecido por não usar gravata. Em que circunstâncias usaria?
Boric – A gravata tem dois sentidos. Um é estético e um tanto absurdo, mas também percebi que, quando havia no Congresso um espírito de disciplina e homogeneização por parte de uma elite muito fechada e muito parecida entre si e por isso me mandaram para a comissão de ética, por não usar gravata. Agora, isso está totalmente naturalizado e é totalmente normal andar sem gravata no Congresso.
A propósito, uma vez tive a sorte de conhecer [a cantora americana] Joan Baez, e nós dançamos, ela me perguntou sobre esse assunto, porque eles contaram essa anedota sobre a gravata, e meses depois eu ganhei uma gravata feita por aborígenes australianos. Se um dia eu tivesse que usar uma, com certeza seria essa.
BBC News Mundo – E isso pode acontecer logo?
Boric – Não pensei nisso. Talvez no casamento de um amigo.
BBC News Mundo – Não na posse?
Boric – Não, há limites.
BBC News Mundo – O sr. vem de uma família religiosa, tem uma mãe católica, que reza e tem um altar à Virgem em casa. Nada disso faz sentido para o sr. em momentos de angústia?
Boric – Tenho muito respeito pela fé da minha mãe e, às vezes, sinto falta do dom da fé, mas não é algo que tenho agora, e não acho que seja algo que você só possa recorrer em um estado de necessidade. Tenho uma questão pendente de como trabalhar a espiritualidade. É algo que sempre me interessou, e nunca tive tempo para fazê-lo.
BBC News Mundo – Como controla sua ansiedade?
Boric – Às vezes, comendo, que não é o melhor método. Ler me acalma, quando tenho tempo, pratico esportes, gosto de jogar futebol.
BBC News Mundo – Sente que às vezes perde o controle?
Boric – Aprendi, graças a tratamentos, a controlar isso. Tenho transtorno obsessivo compulsivo, e tomo remédios. Também é algo que consegui domar graças à Ciência, não é só vontade.
BBC News Mundo – Falou-se muito de sua saúde e também do transtorno obsessivo compulsivo de que o sr. sofre e que o sr. tornou público. Houve outras intenções quando essa questão foi levantada durante a campanha eleitoral?
Boric – Sem sombra de dúvida. Há um estigma em torno da saúde mental.
BBC News Mundo – Quais situações o incomodam?
Boric – A mentira intencional me incomoda muito, não o erro, as pessoas que falam mal no jornalismo me incomodam, os intrigueiros me incomodam.
BBC News Mundo – O sr. se mostrou um político muito tolerante com as críticas da oposição, mas e quando isso atinge as pessoas que você mais ama, como sua parceira Irina Karamanos, que assumirá como primeira-dama e foi criticada por isso?
Boric – Devemos distinguir entre a crítica construtiva e o debate político que ocorre dentro do feminismo e que é totalmente legítimo, da crítica oportunista. Parece que já houve o suficiente da primeira e pouco da segunda. Os debates do feminismo são desejáveis. Temos que nos acostumar com o fato de que ter diferenças de opinião não significa uma tragédia. Mas, quando os ataques são pessoais, e particularmente contra meus entes queridos, irmãos, pais, amigos ou Irina, é algo que realmente me incomoda muito.
BBC News Mundo – Qual é a imagem que gostaria de imprimir com seu governo?
Boric – Que, através da política, é possível mudar o mundo. Que a política não é um espaço de corrupção, mentiras e acomodações. A política pode ser um trabalho honesto para transformações sociais, inclusivas, não apenas profissionais.