terça-feira 7 de maio de 2024
 Foto: Adriano Machado/Reuters
Home / NOTÍCIAS / Chamo a ‘PEC da gastança’ de ‘PEC da Responsabilidade Orçamentária’
quinta-feira 15 de dezembro de 2022 às 19:19h

Chamo a ‘PEC da gastança’ de ‘PEC da Responsabilidade Orçamentária’

NOTÍCIAS, POLÍTICA


“Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho”. É Machado de Assis em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, no capítulo intitulado justamente “A ideia fixa”. O trecho acima é o mais citado, tanto quanto Machado ainda é referência, mas o sentido moral da metáfora se revela na conclusão daquele pequenino texto, e o mesmo farei eu nesta coluneta modesta, posto que, de Machado, não tenho “nem os transes da ventura nem os dons do pensamento”.

O governo Lula, a 15 dias ainda da posse, será malsucedido de tantas e tão distintas e combinadas (e descombinadas) maneiras, assegura-se quase unanimemente na imprensa — e com muita ênfase no jornal Folha —, que quase não sei como continuar estas mal traçadas sem me afundar na “tinta da melancolia”, sem disposição até para a “pena da galhofa” porque não há graça em rir quase sozinho de si mesmo.

O futuro presidente tem um insuspeitado e terrível adversário a ser batido desde já: chama-se Luiz Inácio Lula da Silva, aquele do primeiro mandato, que teve “a coragem” de elevar o superávit primário em 2003 de 3,75% do PIB para 4,25%, realizando tal proeza por meio do corte de despesas, ainda que sacrificando o crescimento, dizia-se. O Belzebu se ajoelhava, então, no altar da ortodoxia, deixando, ele sim, a “esquerda perplexa e a direita indignada”.

No dia 21 de agosto de 2003, o jamais suficientemente lembrado Otavio Frias Filho, diretor de redação, então, deste jornal, escreveu: “O espectro ideológico, no Brasil e no mundo, só tem se deslocado para a direita. Os mercados exercem um poder de tutela e chantagem sem precedentes sobre os governos. A geração de Lula chegou ao poder depois de anos de ostracismo; adapta-se rapidamente às rotinas e conveniências de um governo bem-comportado. Mudar para que e por quê?”.

Nestes 20 anos, o tal espectro se deslocou, em muitas áreas, para a extrema-direita, e “tutela e chantagem” deixaram de ser instrumentos de pressão política para se transformar em uma “doxa”. Resistir ao que se apresenta como uma verdade natural ou faz do divergente um dinossauro ou um esquisito que anda de escafandro no deserto.

A Folha chama a PEC da Transição de “PEC da gastança” — sem as aspas, e não restaria, pois, a menor dúvida de que se estaria a tratar de algo objetivo, como a sustentar, sem contradita possível, que “O Natal é no dia 25 de dezembro”. Convenham: se o sujeito insiste em que é no dia 26, deve estar ruim da cabeça, reivindicando o direito a ter seu próprio calendário. Ou, então, põe-se todo dia de joelhos, rezando com a cabeça voltada para a Unicamp…

Chamo a dita-cuja de “PEC da Responsabilidade Orçamentária”, com aspas, mesmo havendo na expressão mais do que solipsismo aritmético. Dos R$ 145 bilhões reivindicados, R$ 70 bilhões vão compor o Bolsa Família. À Saúde, a despeito da fila do SUS, reservam-se, no ano que vem, R$ 16,6 bilhões a menos do que neste 2022, com o programa Farmácia Popular à míngua; à Educação, que não paga residentes e deixa as universidades sem ar, sem luz, sem razão, um decréscimo de mais de R$ 4 bilhões. Para o Minha Casa Minha Vida, sobraram espetaculares R$ 34 milhões…

O senador Marcelo Castro (MDB-PI), relator-geral do Orçamento, está refazendo as dotações, mas li em algum lugar que isso seria parte de uma estratégia para pintar o capiroto mais feio do que ele realmente seria, de modo a justificar, então, a gastança, a festança, a lambança, a “papança” (cortesia do “Dicionário de Rimas”, de Costa Lima). E, até onde sei, de fontes boas, mas dirá o tempo, do zarapelho bolsonarista não se conhecem ainda nem os chifres.

Com a fascistada à solta e dado o esforço que noto aqui e ali de normalizar os inimigos da sociedade aberta como se constituíssem parte aceitável do espectro ideológico, torço para que os sensitivos do desastre estejam errados. Saberemos. E, então, de volta a Machado. A ideia fixa é uma “bandeira grande”. E ele nota: “Quem não sabe que ao pé de cada bandeira grande, pública, ostensiva, há muitas vezes várias outras bandeiras modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam à sombra daquela, e não poucas vezes lhe sobrevivem?”. Quem não sabe?

Por Reinaldo Azevedo, da Folha de S. Paulo.

Veja também

Governo quer excluir ajuda ao RS da meta fiscal

O governo vai enviar ao Congresso um Projeto de Decreto Legislativo para, com base no …

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

error: Content is protected !!
Pular para a barra de ferramentas