O Brasil passa por um surto de dengue que pode ser o pior da história na América Latina, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Ao mesmo tempo, atrasa a execução das metas de universalização do saneamento básico, que podem reduzir a proliferação do mosquito.
Segundo estudo elaborado a partir de audiências públicas do Senado no ano passado, o Brasil precisa dobrar os investimentos em infraestrutura de saneamento para alcançar as metas até 2033 –prazo estabelecido em lei.
“Isso porque a média anual de investimentos tem sido de R$ 20 bilhões, ao passo em que é necessária uma média (conservadora) de 44 bilhões anuais para ser possível o atingimento da meta legal exigida”, diz o documento do Senado.
Metas de saneamento
Em 2020, o governo publicou o Marco Legal do Saneamento Básico, que estabelece que as metas de universalização devem ser cumpridas até 31 de dezembro de 2033.
Segundo o texto, até essa data:
- 99% da população deve ter acesso à rede de distribuição de água;
- 90% da população deve ter acesso a coleta e tratamento de esgoto.
Segundo dados do Ministério das Cidades, em 2022, cerca de 85% da população tinha acesso à rede de distribuição de água, enquanto 56% era atendida com rede de esgoto.
“O marco veio para trazer esse senso de urgência. O Brasil tem mais de 5,5 mil municípios, cada município precisa entender qual é a sua realidade, entender como que está o seu contrato […], entender quais são as metas, e estabelecer um planejamento”, diz a presidente do Instituto Trata Brasil, Luana Pretto.
Segundo a entidade, em 2022, o Brasil investiu em média R$ 138,7 por habitante, quando deveria estar investindo R$ 231.
Para Pretto, se o país mantiver esse nível de investimento, dificilmente conseguirá atingir as metas de universalização. A presidente do Instituto Trata Brasil também destaca a desigualdade no acesso ao saneamento.
“Temos diferentes realidades. Hoje, a diferença em relação ao acesso ao saneamento é muito grande principalmente na região Norte e Nordeste, o gap [diferença] é enorme”, declarou.
Segundo Pretto, a região Norte tem 60% da população com acesso a água e 14% com acesso a coleta e tratamento de esgoto. O Nordeste tem pouco mais de 30% de coleta e tratamento. Já o Sudeste, destaca, está perto da universalização.
Relação entre dengue e acesso à água
Para a professora da Faculdade de Saúde Pública da USP, Maria Anice Mureb Sallum, a falta de acesso à distribuição de água, ou sua intermitência, incentiva o armazenamento, que pode se tornar um foco de dengue.
“Quando falamos em saneamento básico, entra também essa questão de distribuição de recursos hídricos, de água potável. Aqui [São Paulo], por exemplo, temos distribuição de água potável, o problema é que ela não é confiável o suficiente para não precisar de caixa d’água”, afirma.
Sallum explica que o armazenamento de água é uma forma de garantir a disponibilidade do recurso.
“Só que se a caixa d’água não for construída de maneira adequada, para não permitir a entrada do aedes aegypti para depositar ovos, ela acaba se tornando um criadouro importante e altamente produtivo”, declarou.
A professora também ressalta que o descarte inadequado de resíduos, como plásticos, pode levar ao acúmulo de água. Esses objetos se tornam então um importante criadouro do mosquito.
“As pessoas jogam em locais e acabam acumulando uma quantidade às vezes incrível de material plástico, garrafas pet, garrafas e embalagens de todo tipo. Em geral, em terrenos baldios, construções abandonadas, então esses recipientes também se tornam bons criadouros para mosquitos quando também conseguem acumular água”, diz.
Tratamento de esgoto
A professora da USP afirma que ainda não há casos documentados de proliferação do mosquito da dengue em esgotos no Brasil, embora estudos em laboratório comprovem que o mosquito também pode se reproduzir nesses ambientes.
“Em outros lugares do mundo, já foram encontradas larvas do aedes aegypti em esgoto in natura. Além disso, um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Paraná que, em experimentos em laboratório, demonstraram que as fêmeas do aedes aegypti depositam larvas, que se desenvolvem muito bem e geram adultos em águas de esgoto in natura”, conta Sallum.
Ela ressalta que falta encontrar esses casos na natureza, mas afirma que os esgotos são locais que “merecem certa vigilância imunológica”.
Para Pretto, do Instituto Trata Brasil, a falta de saneamento tem relação com a proliferação de doenças ligadas à qualidade da água e transmitidas por mosquitos.
“Quando não tem acesso à coleta e tratamento de esgoto, temos aquele esgoto bruto infiltrando no solo, ou às vezes indo para valas ao céu aberto, e aí com a mistura desse esgoto com água da chuva acaba também às vezes formando poças e locais de água parada”, diz.