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domingo 9 de agosto de 2020 às 16:05h

‘Bolsonaro está começando a ameaçar o lulismo’, diz petista André Singer

DESTAQUE, POLÍTICA


”O presidente tem um componente carismático. Não é à toa que ele é chamado de mito’, diz o cientista político, professor e jornalista brasileiro André Singer

André Singer: 'Esse é o começo de algo que pode, sim, ameaçar o ...
André Singer , professor da USP Foto: Reprodução/Edilson Dantas / Agência O Globo

Porta-voz da Presidência no governo Lula e professor de Ciência Política da USP, André Singer avalia em entrevista publicada neste domingo (9) pelo jornal O Globo, que a gestão de Jair Bolsonaro passa por uma mudança de rumo e acredita que o lulismo, conceito que formulou para explicar o pacto que regeu o governo do petista, corre risco pela primeira vez.

Bolsonaro tem tomado medidas de olho no eleitorado mais pobre, como a adoção do auxílio emergencial. O presidente está investindo sobre a base do lulismo?

Ainda não sabemos muito bem o que aconteceu. Olhando superficialmente ocorreu uma espécie de acidente. O governo fez uma proposta que foi inteiramente revertida pelo Congresso e acabou, por meio dessa proposta, atingindo um eleitorado que nunca tinha sido base do bolsonarismo. Não sabemos a extensão e a profundidade dessa possível mudança. Seja como for, é muito claro que o governo decidiu se beneficiar politicamente de tudo que ocorria e a viagem do presidente ao Nordeste na semana passada é talvez o elemento mais visível dessa operação. O governo Bolsonaro nunca foi próximo do Nordeste. Parece claro que algo está acontecendo.

Seria fácil para o governo transformar o Bolsa Família em um outro programa, o Renda Brasil, como marca para a população?

A mecânica do auxílio emergencial fez com que as pessoas tivessem que abrir mão do Bolsa Família. É como se as pessoas tivessem saindo do programa lulista e entrando num programa bolsonarista. O governo começou a pensar numa estratégia inteligente, mas depende de ter recursos, que é fazer com que as pessoas não voltem mais para o Bolsa Família, mas entrem direto no Renda Brasil. Nesse caso, a pandemia criou uma situação inesperada que pode facilitar uma transição inesperada. Porque o Bolsa Família era muito consolidado. Não seria fácil simplesmente mudar de nome, as pessoas iriam continuar chamando de Bolsa Família.

O que restou do lulismo depois do impeachment pode estar ameaçado com essas medidas?

Este momento seria o começo de alguma coisa que, caso se desenvolva bastante, poderia, sim, ameaçar o lulismo. Mas é preciso fazer todos esse condicionamentos porque esse não é um processo dado. Dependendo de como o governo levar adiante, poderia hipoteticamente ameaçar o lulismo. O lulismo não foi só resultado do Bolsa Família, fez parte de uma estratégia maior que envolveu também aspectos de política econômica. Ao aumentar o valor do salário mínimo e a implementar o Benefício de Prestação Continuada (BPC), o governo, em regiões extensas do Nordeste,  ativou a economia local. Os governos Lula tinham encontrado uma maneira de reativar a economia por baixo.

Mas o governo Bolsonaro sempre teve um discurso diferente na economia.

Se o governo Bolsonaro adotar uma política econômica, que nunca esteve presente nos seus planos, de reativação da economia por baixo, aí sim não há dúvida de que pode haver um novo realinhamento. Neste momento, é visível o esforço do governo em encontrar dinheiro pra fazer alguma coisa, o que já é uma novidade, porque esse governo nunca havia se preocupado com as camadas mais pobres. E tem mais um acontecimento importante que é o governo perdendo apoio na classe média.

Esta semana, em entrevista ao jornal O Globo, o senador Flávio Bolsonaro disse que o ministro da Economia, Paulo Guedes, precisa arrumar mais dinheiro…

Quando o Flávio Bolsonaro começa a falar disso, uma certa retórica que nunca existiu começa a existir. Uma outra coisa que vale a pena acompanhar é como os militares têm vocalizado isso dentro do governo. Já começando com aquela proposta de infraestrutura, um “plano Marshall”. Possivelmente os militares têm uma perspectiva de médio e longo prazo e sabem que não há como seguir adiante, do ponto de vista político, sem a maioria da população. Se eles mudarem a política, vão mudar a retórica. O problema é analisar os quadros que estão colocados para esse governo, que tem uma associação muito forte com o chamado mercado, que não vê com bons olhos os gastos necessários para esse tipo de conversão. O que está em discussão é se governo continuará sendo ultraliberal.

Os movimentos do governo parecem erráticos como foram os do governo Dilma Rousseff?

Temos que esperar a obra acabada. O ziguezague tem que acontecer. O que estamos vendo neste momento é uma espécie de “zigue”. O governo estava numa posição ultraliberal, apoiado em cerca de 30% do eleitorado, com um núcleo duro mais de classe média. Veio a pandemia, o governo começou a perder apoio na classe média e ganhar apoio embaixo porque fez um auxílio emergencial substantivo que não era o seu plano. A gente começa a observar, e é neste ponto que estamos, que o governo começa a se mexer. É um “zigue”. Agora, se vai ter um “zague”, só o tempo que vai dizer.

No seu livro “Lulismo em crise”, o senhor diz que as camadas populares não se mexeram para defender o lulismo no impeachment, resultado da despolitização e desmobilização a que foram submetidas. Essas características podem facilitar a cooptação?

Sem dúvida. Se tivesse havido um processo intenso de mobilização, teria hoje mais organização de base e essas organizações estariam resistindo a todo esse processo. Teriam resistido já em 2016, depois em 2018, e continuariam resistindo agora a um possível solapamento desse apoio. Apesar de não ter havido mobilização, o fato é que na população, sobretudo no Nordeste, há uma consciência que aparece na reportagem da revista Época (de 10 de julho) de uma forma muito emblemática que as condições de vida foram estruturalmente transformadas pelo lulismo. Esse é um tipo de consciência e formulação que só aparece quando há uma consolidação de uma certa relação.

O senhor diz que o lulismo não tem bandeira partidária e, apesar de se ancorar no carisma de Lula, não se formou uma base de culto à personalidade. Na sua visão, o bolsonarismo explora o culto à personalidade?

Eu não chamaria de culto à personalidade. Os elementos propriamente carismáticos dessas lideranças, no caso do lulismo, aparecem sobretudo no Nordeste. No conceito de Max Weber, carismático é a crença na posse de dons extraordinários. No Nordeste, é notável. No Sudeste e no Sul, é bem menor.

E com relação ao Bolsonaro?

O presidente tem um componente carismático. Não é à toa que ele é chamado de mito. Até aqui esse componente carismático é comparativamente menor porque atinge, no máximo, 15% do eleitorado. Claro que, se o governo fizer essa conversão, que estamos tratando como hipótese, certamente os elementos carismáticos vão ser explorados.

O bolsonarismo tem um caráter mobilizador que o senhor não vê no lulismo?

Esse é um elemento importante para caracterizar o bolsonarismo, porque faz com que o bolsonarismo tenha uma relação com o fascismo. Não estou dizendo que seja absolutamente fascista. A depender de como você qualifica o fascismo, não daria para dizer que o bolsonarismo é um tipo de fascismo. Mas o componente mobilizador o aproxima de algum tipo de fascismo.

Dentro desse panorama de mudanças, como o senhor vê o rompimento entre o bolsonarismo e o chamado lava-jatismo?

Esse elemento ajuda a caracterizar este momento de “zigue”. O governo Bolsonaro resolveu aproveitar a pandemia para acelerar o que eu chamo de escalada autoritária, fez isso se espelhando no Donald Trump. Nessa escalada autoritária, acho que o presidente Bolsonaro tomou no final de abril uma atitude de uma ousadia incrível, que foi empurrar para fora do governo o ex-ministro Sergio Moro, que deve ter sido uma das principais peças da sua eleição. Tanto comportamento anti-petista da Lava-Jato como pelo apoio que a figura individual do ex-juiz ganhou junto à classe média. O preço que pagou por isso foi perder apoio da classe média e essa é uma das explicações do porquê de ele estar indo atrás de outro tipo de apoio. Talvez o futuro venha a dizer quanto isso foi planejado e quanto foi fruto de uma sucessão de acasos.

Ele arriscou a popularidade?

Arriscou porque queria ganhar o comando efetivo  da Polícia Federal, que significa um avanço importante nessa estratégia de erosão de ampliação do próprio poder na direção do autoritarismo.

Bolsonaro tem buscado o Centrão. Além de blindar um processo de impeachment, qual papel o Centrão pode ter nessa possível nova acomodação?

Esse ponto vai compondo esse quebra-cabeça do que a gente poderia chamar de bolsonarismo em transição. Eu acho que o primeiro impulso para se aproximar do Centrão foi relacionado à perda de apoio na classe média, que significa também perda de apoio nas instituições. Ao romper com um certo establishment de classe média com o qual ele detinha algum tipo de aliança, o Bolsonaro radicalizou o afastamento dele com relação à imprensa, ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao próprio Congresso Nacional. Isso significa que ele estava entrando na rota do impeachment. Acho que o primeiro impulso foi para bloquear isso. Não sei também até quanto ponto planejado ou ao acaso, o acordo com o Centrão deu muito certo porque ele realmente foi blindado. Os presidentes da Câmara e do Senado, que vinham tendo um comportamento independente, recuaram e deixaram o protagonismo da resistência da escalada autoritária na mão do Supremo. Escalada autoritária que se interrompe no dia 18 de junho, quando acontece a prisão do ex-PM Fabrício Queiroz. Nós estamos agora numa espécie de recesso desse processo, que a gente não sabe como vai continuar.  Uma vez feita a aliança com o Centrão tem uma consequência, que combina muito bem com esse afastamento da classe média. A base de classe média não aceita essa aliança e isso combina com o afastamento do Sergio Moro. O governo está transitando para uma outra coalizão, que não lhe permitirá mais falar contra a velha política. Esse foi, em certa medida, um dos seus eixos principais de campanha com a associação do PT à velha política. Agora, governo e velha política são a mesma coisa. Peças diferentes vão entrando numa composição que pode realmente dar em uma outra coisa.

O senhor faz uma divisão histórica dos partidos brasileiros em três campos: um de classe média, que era o PSDB até 2014, um popular, o PT, e outro de interior, o MDB. Com entra o bolsonarismo nisso?

Aquela divisão em três campos se mantém. O bolsonarismo, num primeiro momento, ocupou o espaço do partido de classe média. Na verdade, ocupou o espaço do PSDB, que tinha uma base de classe média forte. Essa base se radicalizou muito para a direita com o processo que começa com a Lava-Jato em 2014 e termina com a eleição de Bolsonaro em 2018.  Houve um deslocamento importante para extrema-direita. Com essa conversão que está ocorrendo agora, Bolsonaro começou a perder espaço na classe média, tanto que o governador João Doria subiu relativamente em função desse recuo. Esse processo de conversão do governo significa a tentativa de entrar no campo popular. Mas que iria obrigá-lo a uma cambalhota completa de orientação.

Apesar da sua ligação com o PT, o senhor declarou apoio a Guilherme Boulos (PSOL) na eleição em São Paulo. Diante do governo Bolsonaro, a esquerda deveria se unir?

Desde 2016, eu tenho insistido na necessidade da construção de uma frente de esquerda para enfrentar a situação que já se prenunciava, desde o final de 2014, começo de 2015, de uma situação muito regressiva para os trabalhadores. Assistimos à aprovação do teto de gastos, de uma reforma trabalhista e, por fim, já no governo Bolsonaro, da reforma da Previdência. Desde 2016, eu tenho insistido num outro plano de uma frente social pela democracia, a mais ampla possível, envolvendo não só a esquerda, mas também setores de centro e até mesmo de direita, que estivessem efetivamente comprometidos com a democracia. Diante disso, achei que seria importante registrar a importância que tem as candidaturas de Guilherme Boulos e Luiza Erundina (vice na chapa) para o campo das esquerdas.

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