domingo 28 de abril de 2024
Lula em evento com evangélicos em São Paulo, durante a campanha eleitoral. Pesquisa mostra distanciamento do petista com esse segmento - Foto: Ricardo Stuckert
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segunda-feira 19 de fevereiro de 2024 às 17:09h

Ao atacar Israel, Lula abre guerra com o eleitor evangélico

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“Quem acrescenta coisas à verdade está a diminuí-la” é um ensinamento judaico escrito no Talmude, que cabe muito bem à irresponsável fala do presidente Lula da Silva (PT), durante encontro da cúpula da União Africana, na Etiópia, em que comparou as ações de guerra promovidas pelo Estado de Israel contra o grupo terrorista Hamas ao holocausto sofrido pelo povo judeu, um dos episódios mais abomináveis da história da humanidade, que culminou na morte de 6 milhões de pessoas. Não bastassem os efeitos diplomáticos, que vão na contramão da posição histórica do Itamaraty, Lula não só convidou para o ringue a pequena, porém influente comunidade judaica brasileira, mas também uma grande parcela de um público, que o governo buscava se aproximar e que é repelido pela desastrosa declaração: o evangélico.

Qualquer pessoa que fizer uma breve incursão em uma comunidade brasileira e olhar com atenção para os altares das mais diversas Igrejas evangélicas, com absoluta certeza, enxergará em boa parte delas uma bandeira de Israel. A associação dos evangélicos com a Terra Prometida é grande e tem raízes teológicas profundas. Muitas Igrejas, principalmente as neopentecostais, seguem boa parte dos rituais do Antigo Testamento da Bíblia Cristã, que é basicamente a Torá Judaica. Jesus Cristo era judeu e a diferença básica entre o cristianismo e o judaísmo é que aqueles que creem em Jesus, o enxergam como o Messias, o legítimo filho de Deus. Para os judeus, Jesus foi um importante profeta, mas não o Salvador. Para os cristãos existe um Novo Testamento a partir de Cristo e é aí que se diferenciam as religiões.

A pregação de todo o Antigo Testamento, entretanto, é a mesma e os profetas que antecederam Jesus são também cultuados pelos cristãos. Uma das mais importantes igrejas evangélicas brasileira, a Igreja Universal do Reino de Deus, tem como sua catedral, uma réplica perfeita, instaurada no centro da capital paulista, do Templo de Salomão. O bispo Edir Macedo, líder da IURD, foi o responsável por construir essa casa de orações que remete a Salomão, filho de Davi, o Rei de Israel, considerado um dos homens mais sábios e justos de toda a história bíblica. O próprio bispo apareceu em público, na inauguração do Templo, utilizando-se do quipá, um chapéu diminuto, utilizado pelos judeus, que simboliza o temor a Deus sobre a cabeça, e do talit, o xale das orações.

Essa relação entre evangélicos e Israel ultrapassa as fronteiras brasileiras. Nos Estados Unidos da América ouve uma verdadeira comoção por parte dos líderes cristãos quando Donald Trump anunciou a mudança da embaixada americana para Jerusalém. Uma pesquisa da Pew Research mostrou que 82% dos WASPs, sigla para caracterizar os protestantes brancos, acreditam que Deus cedeu Israel ao povo judaico, número superior ao dos próprios judeus. Não à toa, esse público foi considerado a base mais fiel eleitoral de Trump na sua tentativa de reeleição.

A ascensão do protestantismo é a grande mudança de perfil sociológico que o Brasil experimentou nos últimos 35 anos. Em 1989, quando da primeira eleição para presidente da República após a ditadura militar, eram apenas 9% os brasileiros que se diziam evangélicos. Hoje, mais de 1/3 da população brasileira se declara desta fé. A proliferação evangélica é visível e sentida, seja na quantidade de novas Igrejas que surgem, seja na própria disseminação de conteúdo religioso nos meios de comunicação. O Congresso Nacional, por exemplo, tem, hoje, 132 deputados federais e 14 senadores que compõem a Frente Parlamentar Evangélica.

Sabedor de sua dificuldade com o público evangélico, depois do bolsonarismo ter chegado ao poder, Lula emitiu durante o segundo turno das eleições presidenciais uma carta aos evangélicos. Nela, reforçava o respeito à liberdade de culto e desmentia a ideia de que perseguiria e fecharia templos religiosos. Uma imagem de sua esposa, Janja, com orixás do candomblé, foi disseminada durante o pleito eleitoral e causou bastante rebuliço nas mídias digitais, fazendo com que Lula usasse de antídotos para poder dialogar com esse importante naco da sociedade.

Durante seu primeiro governo, Lula chegou a ter apoio de importantes líderes evangélicos. A situação econômica extremamente favorável ajudava nessa aproximação. O retrato de hoje, todavia, é completamente distinto. A carestia impactando no orçamento das famílias brasileiras tem feito com que as classes mais baixas sofram ao fazer a compra de itens básicos no mercado. Segundo levantamento do Ibre/FGV, a alimentação no domicílio aumentou em 45% nos últimos quatro anos. O arroz teve uma variação de 59,26%, a batata, de 85,06%, a cebola de 131,43% e o feijão de 52,25%. Um problema que atinge diretamente a grande massa evangélica, que está concentrada na classe C2 do País, que vive com uma renda média familiar de R$ 1.894,25, segundo o Critério Brasil, da ABEP.

As repercussões sobre a fala de Lula mostram que os efeitos não pararam só na bolha de reprovação ao presidente. Luciano Huck, judeu, principal apresentador da Rede Globo, e que já ensaiou candidaturas presidenciais, mesmo que de maneira diplomática, repreendeu o presidente, a quem ele próprio declarou voto na eleição passada a pretexto de vencer o bolsonarismo. É interessante perceber, que além de desagradar o principal astro da líder de audiência, a fala de Lula atinge as duas outras maiores emissoras de TV nacionais. A RecordTV é de propriedade de Edir Macedo e o SBT, do judeu, Silvio Santos.

Em pesquisa realizada pela RealTime Big Data, encomendada pela RecordTV, em novembro de 2023, 77% dos brasileiros discordavam da fala de Lula sobre Israel cometer atentados terroristas na Faixa de Gaza. Quando se destrincha a pesquisa e se analisa o corte apenas entre eleitores evangélicos, o número salta para 91% de repúdio ao posicionamento do presidente da República. O fato de ontem, no entanto, pela gravidade da comparação, tem potencial para ser ainda mais destruidor do que essa passagem.

O perdão é um dom divino e a penitência por ter errado é esperada tanto pelo cristão quanto pelo judeu. Em uma missa católica, há o momento do ato penitencial, onde o homem pede a Deus, em sua condição de pecador, que seja redimido dos seus erros. É ensinamento rabínico que “um homem que cometeu um erro e se sente envergonhado tem a sua falta perdoada”. Para Lula, resta se redimir. Se quiser ainda dialogar com essa importante fatia do eleitorado brasileiro, o presidente precisará antes de mais nada assumir seu erro, se mostrar falho, para a partir daí ter a possibilidade de reconquista-los. Precisa fazer sua parte. Se serve de aviso, um ditado popular judaico diz: “Confia em Deus, mas amarra o teu camelo.”

Opinião por Bruno Soller

Bruno Soller é estrategista eleitoral. Especializado em pesquisas de opinião pública, é graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, com especialização em Comunicação Política pela George Washington University. Trabalhou no governo federal, Câmara dos Deputados e Comissão Europeia.

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