Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) destacou-se por desempenhar o papel de uma espécie de farol civilizatório, assumindo corajosamente a responsabilidade de legislar sobre temas que exigem uma urgente adequação aos novos tempos, a exemplo da histórica decisão favorável à união homoafetiva. Nas últimas semanas, a Corte avançou mais algumas casas nessa missão iluminista. Sob o comando de Rosa Weber, colocou em pauta temas relevantes, mas espinhosos, como a liberação do porte de maconha para uso pessoal e a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Em seu discurso de despedida, na última quarta, 27, ela afirmou a necessidade de um “olhar voltado para um país mais justo, igualitário, fraterno, solidário e sem preconceitos”. Quem assumiu o posto no dia seguinte foi o ministro Luís Roberto Barroso. Conhecido por suas ideias progressistas, ele indica que o STF continuará atuando na mesma direção.
Embora esteja na defesa de avanços importantes, o movimento do Supremo sempre gerou incômodo em alguns setores da sociedade e o alarido aumentou proporcionalmente nos últimos tempos diante da tentativa de se colocar em debate temas como drogas e aborto. O desconforto desencadeou uma forte reação, liderada por uma parte considerável do Congresso, que tem um perfil mais conservador. No contra-ataque, os políticos lançaram mão de uma grande ofensiva destinada a tentar barrar essas conquistas. Um dos alvos principais é justamente o STF. Embora um clima de desconforto já viesse se manifestando há algum tempo entre o Legislativo e o Supremo, acusado pelos parlamentares de usurpar prerrogativas do Congresso, a agenda progressista do Judiciário serviu de álibi para o acirramento da tensão.
Em um movimento que dá uma ideia do tom da batalha que será travada daqui em diante, na terça 26 um grupo de deputados e senadores de direita anunciou que iria iniciar uma estratégia de obstrução das votações na Câmara e no Senado como forma de protesto. Na ocasião, a deputada Priscila Costa (PL-CE), que está grávida, exibiu a miniatura de um feto como um símbolo da campanha. Só na última semana, o grupo conseguiu as assinaturas necessárias para propor um plebiscito sobre o aborto e para dar caráter de urgência ao projeto de lei que cria o Estatuto do Nascituro. Também apresentou uma PEC para alterar o artigo 5º da Constituição de modo a incluir o termo “desde a concepção” no trecho que garante a inviolabilidade do direito à vida (veja o quadro).
A luta contra o aborto figura como a principal bandeira da reação conservadora, mas não é a única frente de batalha. Alguns alvos, aliás, são como os moinhos de vento de Dom Quixote, ou seja, só existem na imaginação dos setores mais retrógrados da sociedade. Na última semana, por exemplo, a Advocacia-Geral da União (AGU) foi acionada para desmentir bolsonaristas que divulgaram que o Planalto iria obrigar escolas a instituir banheiros unissex. Fora desse campo mais delirante, o grupo unido no Congresso se esforça para aprovar um despropositado projeto de lei que acaba com a equiparação da união homoafetiva ao casamento entre homem e mulher, algo que é reconhecido pelo Supremo desde 2011. Também há uma mobilização para anular os efeitos de um julgamento no STF sobre a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal — até agora são cinco votos a favor e dois contrários à flexibilização. “É uma estratégia de sobrevivência política de um campo que depende dessa mobilização para se autopromover”, afirma o deputado e pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ), vice-líder do governo.
De fato, a mobilização, embora guiada por temas nobres como a defesa da família e da infância, embute uma estratégia política menos confessável: tirar a direita das cordas. Um dos objetivos é mobilizar a base em meio ao derretimento da imagem de sua principal referência, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), cercado por investigações que vão da venda de joias oficiais a uma conspiração para golpe de Estado — o que arrastou para a lama as Forças Armadas, outra referência da direita. O frenesi em torno da pauta de costumes ajuda a direita a se descolar do seu líder e a mostrar que tem representatividade para ir em frente, independentemente do futuro político do ex-capitão.
A movimentação também permite emparedar o governo Lula ao difundir, com relativo sucesso, que as pautas progressistas têm o incentivo ou, no mínimo, a sua concordância. “A direita está reativando esses temas porque sabe que são eles que dividem os dois lados e jogam o governo em um campo de difícil disputa”, afirma Felipe Nunes, cientista político e diretor da Quaest. O entorno de Lula monitora tudo com preocupação. Qualquer confusão no Congresso teria o potencial de atrapalhar o governo, que precisa aprovar pautas importantes, como a reforma tributária e a MP do programa Desenrola Brasil, que caduca no dia 3. Também estão previstas para este semestre as votações da Lei de Diretrizes Orçamentárias e do Orçamento para 2024.
O sinal amarelo já havia acendido para Lula há algum tempo. Ele veio com a aprovação em julho da resolução 715, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que propõe a descriminalização do aborto e da maconha. A gritaria mais intensa partiu dos evangélicos, que formam a maior frente do Congresso, com 210 deputados e 26 senadores, e que sempre foram próximos a Bolsonaro. Parlamentares influentes do grupo, como o deputado Marco Feliciano e o senador Magno Malta (PL-ES), ambos do PL, fazem campanha pesada para grudar em Lula as pautas que afastam os religiosos. Embora o governo tenha apenas seis cadeiras no CNS, de um total de 48 assentos, tentou-se emplacar a narrativa de que a resolução tinha o dedo do Palácio do Planalto. “Mesmo quando o governo não propõe diretamente essas mudanças, ele pode ser responsabilizado por não se posicionar claramente ou por não tomar medidas para impedir”, diz Malta. Na firme estratégia de evitar divisões, o governo tenta construir pontes com esse segmento por meio de ministros como Alexandre Padilha (Relações Institucionais), Geraldo Alckmin (Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços) e Jorge Messias (AGU). Messias, aliás, levou líderes desse grupo a um encontro com a ministra Nísia Trindade (Saúde), no qual ela explicou que a resolução não é iniciativa do Executivo, não tem força de lei nem obriga a sua implantação. Padilha foi direto ao ser questionado em entrevista sobre aborto e casamento gay. “Não tem, de maneira nenhuma, iniciativa por parte do governo para mexer na legislação”, disse.
O campo de batalha para o qual o governo foi levado não é simples. Por um lado, precisa lidar com as pressões de grupos de direitos humanos e da esquerda, que alimentam a expectativa de que a volta de Lula ao poder é a oportunidade de levar adiante temas mais liberais nos costumes. Por outro, precisa administrar a sua frágil base no Congresso, em grande parte formada por parlamentares conservadores. Para o cientista político Vinicius do Valle, do Observatório Evangélico, há um sentimento na direita de que a eleição de Lula criou um clima político para se avançar em pautas desse tipo, ainda que não seja por iniciativa do governo, e que há um “rolo compressor” passando nesse sentido. “Isso contrasta com a posição do governo, que não tem investido em pautas que batem de frente com ideais evangélicos”, avalia.
De fato, o recrudescimento da discussão em torno desses temas ocorre em cima de muito proselitismo religioso e, não raro, de demagogia política. O senador Sergio Moro (União-PR), por exemplo, que foi eleito com bandeiras relacionadas à corrupção, mostrou um súbito interesse pela pauta de costumes ao postar que o “governo Lula impõe banheiro unissex para todas as escolas públicas do país” — o que não é verdade. Outro ex-ministro, o deputado Osmar Terra (MDB-RS), que se notabilizou por espalhar teses negacionistas sobre a Covid-19, decidiu fazer o mesmo em relação à maconha, ao divulgar, entre outras sandices, uma fake news que associa a flexibilização do uso de droga ao fato de uma criança ter morrido em uma creche de Nova York após inalar fentanil do tapete que era utilizado para dormir.
Além do Congresso, a ofensiva tem como palco privilegiado as redes sociais, onde a direita vinha perdendo espaço. Um levantamento exclusivo feito para revista Veja pela Escola de Comunicação, Mídia e Informação da FGV mostra que, entre julho e setembro, o tópico que mais mobilizou a internet foi o aborto, com 6 063 postagens no Facebook e Instagram. A pesquisa mostra que no Facebook as mensagens tiveram teor mais político e vieram principalmente de páginas de apoio a Bolsonaro ou de correligionários, como os deputados Eduardo Bolsonaro, Bia Kicis e Filipe Barros. Já no Instagram, houve um marcado tom religioso, com posts feitos por lideranças, como o pastor André Valadão, e páginas evangélicas e católicas. Conteúdos foram impulsionados por parlamentares e partidos, como o Republicanos, ligado à Igreja Universal, que pagou anúncio contra o julgamento no STF: “A partir de hoje, matar pode não ser crime no Brasil”, diz a peça.
A direita também se organiza para levar o movimento para fora da internet. Políticos estão convocando a “Marcha da Família” nas ruas do país no dia 12 de outubro, feriado de Nossa Senhora Aparecida. A convocação evoca um episódio de triste memória, a Marcha da Família com Deus e pela Liberdade, uma passeata de inspiração conservadora, em março de 1964, que desembocou no golpe militar. Em paralelo, a direita busca ainda aumentar a influência nos conselhos tutelares, cujas eleições para 30 000 vagas nos municípios ocorrerão no dia 1º de outubro. Os conselheiros são eleitos por voto popular, e se tornou comum encontrar candidatos “a favor da vida e da família”. A campanha mobiliza caras conhecidas do bolsonarismo, como a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, a senadora Damares Alves e os deputados Carla Zambelli, Bia Kicis e Nikolas Ferreira. Igrejas como a Universal e a Assembleia de Deus também têm atuado. “Essa movimentação da direita é mais recente, principalmente após a derrota na eleição”, afirma Cláudio Vieira, secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Alguns temas não são fáceis de discutir, nem no Brasil nem nas democracias mais avançadas do mundo. Os Estados Unidos deram um inesperado cavalo de pau em junho de 2022, quando a Suprema Corte revogou o direito ao aborto até a 24ª semana de gestação que o próprio tribunal havia garantido ao julgar o célebre caso Roe versus Wade, de 1973. Cinco meses depois, o Parlamento da França foi em outra direção: aprovou, por 337 votos a favor e 32 contra, a inclusão na Constituição do direito à interrupção voluntária da gravidez até as catorze semanas de gestação. Isso já era garantido por leis, mas o Parlamento decidiu incluir na Carta do país para evitar um retrocesso como o do caso americano.
A discussão no Brasil também mostra que será difícil. A ação que pede a descriminalização do aborto foi apresentada pelo PSOL ao Supremo em março de 2017 — desde então, 54 entidades se inscreveram para fazer parte do processo, entre elas associações de mulheres, grupos de direitos humanos e frentes religiosas. Apenas Rosa Weber, relatora do caso, votou — a favor. O processo poderá voltar à pauta pelas mãos do novo presidente da Corte, o ministro Luís Roberto Barroso, que assumiu o cargo em meio ao fogo cerrado dos conservadores.
Um país democraticamente maduro como o Brasil precisa, de fato, ter coragem para enfrentar debates difíceis. Quase um terço da população carcerária está presa por crimes previstos na Lei de Drogas, sendo que 59% dos réus portavam até 150 gramas. Em relação à interrupção da gravidez, a Pesquisa Nacional do Aborto, de 2021, apontou que 10% das mulheres já abortaram e que 40% delas fizeram isso com o uso de medicamentos, assumindo um risco enorme. No Brasil, o aborto só é permitido nos casos de estupro, risco à vida da mãe e anencefalia — exceções que o movimento em andamento defende abolir. A despeito de o Brasil ser uma nação conservadora, situação que se consolidou com a expansão evangélica, é preciso que o princípio de separação entre igreja e Estado balize as reflexões sobre esse e outros temas — e não o fundamentalismo ideológico ou religioso, que só serve para criar cortina de fumaça e obscurecer o debate.
Publicado pela revista Veja de 29 de setembro de 2023, edição nº 2861