As relações políticas entre Brasil e Portugal estão longe do que prega a boa diplomacia, mas, por conta das comemorações dos 200 anos da independência brasileira que irá ocorrer no mês de setembro, o país europeu fará uma deferência enorme à antiga colônia. Cederá, em forma de empréstimo, uma relíquia que pouquíssimas pessoas puderam ver em quase dois séculos: o coração de Dom Pedro I — ou Dom Pedro IV, para os portugueses conforme Vicente Nunes, do Correio Braziliense —, primeiro imperador do Brasil. O órgão, que está guardado na Igreja de Nossa Senhora da Lapa, na cidade do Porto, desembarcará em Brasília nesta segunda-feira (22) em uma cerimônia com honras de chefe de Estado.
O empréstimo do coração de Dom Pedro I ao Brasil foi possível depois de uma ampla negociação entre a embaixada brasileira em Lisboa, a Prefeitura do Porto e a Irmandade Nossa Senhora da Lapa, que detém o direito à propriedade da relíquia. Havia muitas dúvidas se o transporte do órgão, realizado pela Força Aérea Brasileira (FAB), poderia acarretar danos, mas o Instituto de Medicina Legal do Porto (IML) avalizou a operação, apesar de todos os alertas.
O coração do monarca, que morreu em 1834, aos 35 anos, ficará no Brasil até 8 de setembro. Ao longo de três semanas, será exposto no Palácio do Planalto e no Itamaraty. Neste fim de semana, o coração foi, pela primeira vez, exibido ao público em Portugal.
A presença do coração de Dom Pedro I no Brasil deveria ser um acontecimento neste bicentenário da independência. Mas, para a professora de Relações Internacionais Miriam Saraiva, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), o momento é inoportuno, devido ao acirramento das disputas pela Presidência da República e, sobretudo, pelo uso político que o presidente Jair Bolsonaro pretende fazer do 7 de Setembro.
“Infelizmente, a festa de independência foi sequestrada por uma ideologia que prega o discurso de que o hino nacional, a bandeira do país e as cores verde e amarela só pertencem aos seus adeptos”, diz. “Trata-se de uma enorme distorção, pois esses símbolos são de todos os brasileiros”, ressalta.
Na avaliação da historiadora Ana Carolina Delmas, o maior temor de especialistas é que o coração de Dom Pedro I tenha uso político, quando, na verdade, deveria ser visto como parte de um contexto histórico pouco conhecido da maior parte da população, devido à péssima qualidade da educação no país. Ela lembra que, quando da comemoração dos 150 anos da independência, em 1972, durante a ditadura, mais precisamente na gestão de Emílio Garrastazu Médici, houve o mesmo movimento populista em torno da vinda dos restos mortais (sem o coração) de Dom Pedro I e da mulher dele, a princesa Leopoldina, doados por Portugal e que estão no Museu do Ipiranga, em São Paulo.
Para o pesquisador Leonardo Paz, do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da Fundação Getulio Vargas (FGV), a apropriação pelo atual governo dos símbolos nacionais é tão clara, que segmentos, ainda que pequenos, como os saudosos da monarquia, endossam esse tipo de postura.
“Tanto o presidente Jair Bolsonaro quanto seus seguidores assumem a posição de que são os verdadeiros patriotas, o que não é verdade”, afirma. Ele destaca que, ao contrário do Brasil, que age por questões ideológicas, Portugal, com seu gesto, ao emprestar o coração de Dom Pedro I, reforça a lógica de Estado, não de governo, que é passageiro.
Riscos enormes
A sugestão para que o governo Bolsonaro pedisse o coração de Dom Pedro I emprestado a Portugal para a comemoração dos 200 anos da independência foi feita ao presidente pela médica oncologista Nise Yamaguchi, defensora contumaz do uso de cloroquina no tratamento contra a covid-19. O imperador é apontando como grande defensor do liberalismo, bandeira que o Palácio do Planalto encampou, tendo o ministro da Economia, Paulo Guedes, como garoto-propaganda. Os quase quatro anos da atual administração mostraram, porém, que de liberal o governo não tem nada, é intervencionista e populista.
O uso político do coração de Dom Pedro I, contudo, é apenas uma das preocupações da historiadora Ana Carolina. “Estamos temerosos com o translado daquele órgão. Qualquer descuido pode provocar um desastre e pôr tudo a perder”, alerta. Há, segundo ela, todo um cuidado na preservação da relíquia e, dependendo da forma como o transporte se dará, o órgão pode se dissolver. Como ela, outros especialistas alertam para a pressurização do avião da FAB que transportará o coração e para a temperatura à qual ele ficará submetido durante o tempo que será exposto no Palácio do Itamaraty.
No entender da professora Miriam Saraiva, o presidente Bolsonaro está pouco se importando com os riscos de se trazer o coração de Dom Pedro I para o Brasil. “O que interessa é o ganho político que ele acredita que terá”, frisa. Presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira, que encabeçou as negociações do empréstimo da relíquia ao Brasil, tem ressaltado que há exageros nas afirmações de que todo o processo está baseado apenas em interesses políticos. Para ele, trata-se de um gesto entre dois países irmãos, que mantêm relações profundas por séculos.
Distanciamento diplomático
No governo português, o transporte do coração de D. Pedro I ao Brasil é tratado com reservas e muita apreensão. O presidente de Portugal, Marcelo Rebelo Soares, estará presente nas celebrações do 7 de Setembro no Brasil. Isso, apesar de ele ter sido destratado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), que recentemente cancelou um almoço com o líder português porque ele teve um encontro com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, líder nas pesquisas de intenção de votos para a Presidência da República.
Para o pesquisador Leonardo Paz, as relações políticas entre Portugal e Brasil só tendem a melhorar caso Bolsonaro não seja reeleito. “O atual presidente brasileiro se afastou de vários países europeus, incluindo Portugal, por questões ideológicas”, detalha.
Devoção ao Porto
A doação do coração de Dom Pedro I à Irmandade Nossa Senhora da Lapa foi prevista em testamento pelo imperador pouco antes de morrer. Era desejo dele que o órgão ficasse na cidade que o recebeu quando retornou a Portugal, em 1831, para recuperar o trono de sua filha, Dona Maria II, que havia sido roubado pelo tio dela, Dom Miguel. Em 1832, Dom Pedro I, que havia abdicado do reinado no Brasil, adentrou o Porto liderando um grupo de liberais que lutavam contra o então imperador absolutista.
Sem um exército suficiente, pois não teve o apoio esperado de França e Inglaterra, Dom Pedro I assinou uma aliança com os espanhóis para combater o irmão. Foram dois anos de guerra. Em 1834, ele conseguiu derrubar Dom Miguel e devolver o trono à filha, Dona Maria II. Portugal deixou de ser um reino absolutista para ser um reino liberal. O monarca, entretanto, já estava bastante fragilizado, havia contraído tuberculose. Morreu em setembro daquele ano.
Desde 1835, o coração do monarca está guardado a cinco chaves na Igreja de Nossa Senhora da Lapa, num monumento localizado na capela-mor, ao lado do Evangelho. A primeira chave abre uma placa de metal. A segunda e a terceira movimentam uma rede de ferro. A quarta destranca uma urna e a quinta, uma caixa de madeira onde está depositada um porta-joias de prata que abriga o vidro que contém o órgão. O coração está conservado em uma substância de formol, que é trocada a cada 10 anos. A última foi em 2015. Seis pessoas participam do procedimento.
“A torcida é para que tudo transcorra bem no período em que o coração de Dom Pedro I estiver no Brasil”, reforça a historiadora Ana Carolina Delmas. A segurança da relíquia no país será enorme, a ponto de a vigília ser comandada pessoalmente pelo chefe da polícia do Porto, António Leitão da Silva. Houve, inclusive, a preocupação dos portugueses de construírem a caixa de madeira em que o órgão será transportado para o Brasil e a caixa de vidro em que ele será exposto.