Avanço da esquerda na América do Sul, desinteresse do Brasil e acordo bilateral entre Uruguai e China ameaçam segundo Jaqueline Mendes, da revista IstoÉ, a sobrevivência do bloco de comércio regional.
Tão incerto quanto o rumo da economia brasileira a partir do ano que vem (seja qual for o próximo presidente) é o destino do Mercosul, bloco fundado em 1991 e formado pelos cambaleantes sul-americanos Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Duas razões para isso: o retorno e o fortalecimento da esquerda na região, com iniciativas mais protecionistas às suas indústrias, e o empenho do governo de centro-direita de Montevidéu por um acordo bilateral com a China, mesmo sem o aval dos vizinhos e muy amigos parceiros comerciais. Embora seja uma economia nanica no contexto global, a diplomacia é constituída por símbolos, e a mensagem de um afastamento uruguaio sinaliza que os próprios membros do Mercosul não enxergam no horizonte um futuro promissor para o que deveria ser um robusto acordo de livre comércio.
O Uruguai, um país de apenas 3 milhões de habitantes, tem argumentos sólidos isso. Grande parte do problema e do iminente fracasso do Mercosul está em Brasília. Sob o governo de Jair Bolsonaro, o Brasil, maior economia do bloco e responsável por quase 60% do fluxo comercial entre os países membros, vem deixando o acordo de escanteio. Em julho, no último encontro de cúpula do grupo, o presidente brasileiro apenas enviou um vídeo, menosprezando a presença dos chefes de estado Mario Abdo (Paraguai), Alberto Fernández (Argentina) e Luis Lacalle Pou (Uruguai).
O gesto de Bolsonaro, muito mais político do que comercial, caiu como um balde de água fria nas intenções de dar sobrevida ao bloco. Bolsonaro quer, basicamente, que os países sejam aliados no combate à inflação, mas antagônicos em suas retóricas populistas — a velha parábola da direita do bem contra a esquerda do mal. Bolsonaro chamou o recém-eleito presidente do Chile, Gabriel Boric, de “tocador de fogo em metrôs”, durante debate na Band. Em 2020, Bolsonaro chamou os argentinos Fernández e Cristina Kirchner de “bandidos de esquerda”.
Fora do picadeiro político de Bolsonaro, no campo comercial o Brasil usufrui da relação comercial com os vizinhos. O Brasil importa desde energia elétrica, carnes, roupas e trigo, até medicamentos e cosméticos. Por outro lado, exporta automóveis, cigarro, derivados de petróleo, máquinas e produtos químicos. Para o economista e professor de relações comerciais Alexandre Taminato, sem as atuais regras tarifárias do Mercosul a inflação oficial no Brasil estaria entre 2 e 3 pontos porcentuais acima dos índices atuais. “Argentina, Uruguai e Paraguai são importantes fornecedores de alimentos para o Brasil, como carne, leite a grãos, área que mais tem pressionado a alta da inflação nos últimos 12 meses”, afirmou. “O Brasil desdenha dos vizinhos, mas estaria em situação ainda pior sem eles.”
Para o professor de economia do Ibmec José Niemeyer a atual crise do Mercosul evidencia que o grupo é um acordo aduaneiro e alfandegário imperfeito. Existe a Tarifa Externa Comum (TEC), mas não é respeitada por Brasil e Argentina. “Os atritos entre os dois países são um obstáculo, mas o problema mais grave é a iniciativa do Uruguai de buscar um acordo bilateral e exclusivo com os chineses”, afirmou o economista. “Nas relações internacionais, o Mercosul é um caso a ser estudado. Não há um destino claro, por enquanto”, disse.
Niemeyer avalia que o bloco poderá ser fortalecido em caso de vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de outubro, visto que o histórico dos governos petistas, com Celso Amorim como um ministro das Relações Exteriores entusiasta do Mercosul, pode resgatar parte dos propósitos iniciais do grupo. “Com Lula, o Mercosul tende a ganhar força. Com Bolsonaro, o Mercosul vai seguir em banho-maria.”
Olhando para fora
O único alento para o Mercosul em 2022 foi a conclusão do processo de negociações do acordo de livre comércio com Singapura. As negociações, capitaneadas pelo governo paraguaio, foram concluídas em julho e representam a intenção dos países do bloco de ampliar a relação comercial mundo afora. Só no ano passado, o intercâmbio entre Singapura e os países-membros do Mercosul movimentou cerca de US$ 7 bilhões. Entre os principais produtos exportados pela turma sul-americana estão carnes, ligas metálicas e minério de ferro. Em contrapartida, os membros do Mercosul importam inseticidas, circuitos integrados, medicamentos e embarcações do país asiático.
Além do mais, segundo o Ministério das Relações Exteriores, em 2020, Singapura investiu em torno de R$ 127 bilhões em toda a América do Sul, na América Central e nas Antilhas. De acordo com o governo paraguaio, a partir de agora, representantes dos países-membros do Mercosul darão início ao processo de revisão legal dos termos do tratado. O caminho perfeito para resolver (ou dissolver) de vez o tal livre comércio regional.