A história é de um rebelde condenado à morte, traído por um de seus companheiros. Ressignificada para ganhar o lustro necessário a um herói da pátria, a imagem de Tiradentes precisava de um rosto — e nenhum retrato dele havia.
O alferes da cavalaria, dentista, comerciante, minerador e ativista político Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792), mais conhecido como Tiradentes, foi executado há 230 anos, no Rio de Janeiro. E sua representação física, criada 100 anos mais tarde, é muito semelhante à imagem mais recorrente de Jesus Cristo: um homem de olhos claros e traços europeus, cabelos longos, barba e rosto simétrico.
“Um herói nascido na região centro-sul do país, que morreu sem pegar em armas, traído por um amigo, o Silvério dos Reis, à semelhança da trágica histórica de Jesus Cristo”, aponta o historiador André Figueiredo Rodrigues, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e autor do livro Em Busca de Um Rosto: a República e a Representação de Tiradentes.
“Não havia representação visual de Tiradentes e os artistas tiveram liberdade para desenhá-lo como desejaram. Um país católico, com um herói com traços nazarenos, inventados por artistas desde o nascimento da República: Tiradentes, iconograficamente, venceu. Sua escolha não foi aleatória”, acrescenta ele.
Uma escolha, sim. Afinal, não foram poucas as revoltas, motins e rebeliões ocorridas no Brasil colônia nas décadas de antecederam a independência. Mas enquanto boa parte desses ativistas permaneceram anônimos e mesmo os episódios são pouco abordados, a chamada Inconfidência Mineira é assunto conhecido por todos — e Tiradentes tornou-se um ícone nacional, a ponto de até merecer feriado.
“Realmente tivemos várias revoltas no Brasil ao final do século 18, muitas delas influenciadas pelas ideias iluministas que estavam em voga. Vale lembrar que todas essas regiões ainda pertenciam a Portugal e não houve, no início, uma valorização desses movimentos. Tudo foi sendo construído ao longo do século 19”, ressalta o historiador Victor Missiato, pesquisador do Grupo Intelectuais e Política nas Américas, da Unesp, e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré.
Missato ressalta que ao longo do Brasil Império, a história de Tiradentes passou a ser recuperada pelos republicanos. E após a proclamação da República, em 1889, ele foi alçado a herói nacional por uma elite que desejava apagar do imaginário o exemplo de ativistas mais recentes — para que eles não servissem de inspiração para motins populares.
“Tiradentes era um personagem morto já há 100 anos. E o centenário de sua morte [em1892] acabou servindo para exaltá-lo como personagem, um personagem perfeito, entre aspas, para ser herói da República”, contextualiza o historiador.
É dessa época a primeira representação do alferes com os traços que o tornaram conhecido pelos brasileiros. Obra do pintor Décio Villares (1851-1931).
“A primeira pintura que promoveu a equivalência da imagem social de Tiradentes com a de Jesus Cristo data de 1890, produzida por Décio Villares. Ela apresenta Tiradentes como Cristo, com barbas, olhos claros e cabelos longos”, comenta o historiador Isaac Marra, professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília Internacional. “Pela referência da época, inclusive, segundo a descrição dos representantes da Coroa Portuguesa, Tiradentes era magro, alto e de uma duvidosa feição ‘inagradável’.”
Marra cita o livro Autos da Devassa — A Inconfidência Mineira por Detrás da Cortina, do historiador Mário Caldonazzo de Castro, como fonte desse relato da época.
No livro A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil, o historiador José Murilo de Carvalho escreve que “para consolidar-se como governo, a República precisava eliminar as arestas, conciliar-se com o passado monarquista, incorporar distintas vertentes do republicanismo”. “Tiradentes não deveria ser visto como herói republicano radical, mas sim como herói cívico-religioso, como mártir, integrador, portador da imagem do povo inteiro”, diz ele.
“Como era alferes, isto é, aspirante militar, Tiradentes nunca usou barbas longas, cabelos escorridos ou bigodes vultosos, como muitos livros buscam caracterizá-lo. Em seu enforcamento ele portava cabelos aparados e barba raspada”, pontua Marra “A imagem produzida e representada foi idealizada especialmente no contexto da proclamação da República Brasileira com a finalidade de atender aos anseios do positivismo militar à época.”
Contexto histórico
Rodrigues lembra que a então capitania de Minas Gerais teve muitas revoltas “notadamente antifiscais” ao longo do século 18. “Desde a Revolta de Vila Rica, em 1720, até a Inconfidência Mineira, de 1789, são variadas as tentativas de revoltas ali conhecidas”, aponta. “Onde circula riqueza, como a advinda da mineração, faz com que também haja motins contra as maneiras como a população paga os impostos.”
A Inconfidência Mineira foi mais uma dessas revoltas. “Com a participação de grupos sociais variados, que contestavam as maneiras como Portugal gerenciava a administração local”, afirma ele.
“Na época, em 1789, a capitania de Minas tinha uma dívida, desde 1771, com a arrecadação dos quintos do ouro de 582 arrobas de ouro ou o equivalente a 8.730 quilos de ouro”, explica o historiador. “E o pagamento desses atrasos recairia sob toda a população da capitania, caso se decretasse seu pagamento compulsório, a derrama. Em vista disto e caso a derrama fosse decretada pelo governador, a participação popular seria intensa e isso mobilizava nas autoridades um temor de revolta que envolvia a capitania como um todo, independente do estrato social que a pessoa tinha. Todos seriam cobrados.”
“Por talvez congregar a participação dos moradores de Minas e seus planos congregarem interesses diversos, mas atrelados às situações econômicas, a Inconfidência ganhou notoriedade, além de contar com a participação de importantes homens daquela sociedade, como militares, intelectuais, juristas, letrados, religiosos, etc”, contextualiza o professor.
“Isto tudo fez com que a Inconfidência se destacasse frente aos demais movimentos rebeldes ocorridos em solo mineiro. Em outras partes do Brasil também havia movimentos de contestação, que também foram variados. Independentemente de quais sejam eles, todos os movimentos rebeldes do século XVIII e princípios do século XIX foram reprimidos e durante o Império foram feitos perpétuos silêncios de suas histórias e personagens.”
Rodrigues lembra que “rememorá-los” seria uma afronta “ao poder dominante” — era a mesma casa dinástica que reinava no Brasil, afinal. No próprio Código Criminal de 1830, o Artigo 87 previa penas graves — variando de prisão por pelo menos cinco anos a prisão perpétua — a quem questionasse o imperador. Como Dom Pedro I era descendente da mesma família monárquica contra a qual Tiradentes havia atentado, não era condizente essa memória.
“Somente a partir da segunda metade do século 19 é que a Inconfidência e mesmo o alferes Tiradentes passam a aparecer em eventos públicos, sendo citados como exemplos de liberdade e contestação à ordem monárquica reinante”, conta. “Com a República buscou-se construir heróis, nada como eleger o alferes Tiradentes.”
“O fato de Tiradentes ser elencado no memorial nacional como o herói nacional se dá por inúmeras razões”, elenca Marra. “A priori, o fato de ter transitado por diversas ocupações, empregos e trabalhos, entre os quais destacam-se minerador ‘freelancer’, comerciante, alferes da Cavalaria de Dragões Reais de Minas e, o labor que o legou a maior fama nacional, dentista prático, o Tiradentes.”
“A segunda razão que busca explicar essa exponencial presença, simbólica e nacional, é a referência de associações imagéticas da imagem pessoal e privada de Joaquim Xavier com a imagem de Cristo elaborada pelo Renascimento italiano, isto é: loiro, de olhos claros, cabelos longos incompatíveis com a ocupação de alferes e destacada compleição física”, comenta Marra.
“Esse popularismo de Xavier teria sido possível a partir das múltiplas ocupações por ele desempenhadas e pela sua legítima capacidade de cooptar e exercer um certo fascínio em seus discursos, especialmente com os mais próximos”, acrescenta ele.
E como o historiador Carvalho pontua no seu livro, era um momento em que a República em formação carecia de um herói nacional que pudesse exercer uma amálgama simbólico em torno dos ideais de transformação política.
“Como os ideais republicanos haviam se manifestado, inclusive, no ideário dos conjurados [da Inconfidência Mineira], ergueu-se um pendão representativo de interesses para a justificativa de um ícone nacional para a República brasileira, tal como fora Napoleão Bonaparte para a República Girondina francesa: uma figura meio humana e, após a sua morte, pesadamente mítica associada aos ideais positivistas e militares dentro das ambições políticas de uma República que se fez a partir das armas, livrando a nação dos ditames imperativos de uma Dinastia herdeira do colonizador”, analisa Marra.
Ao mesmo tempo, exaltar Tiradentes significava anular, como pontua o historiador, “com certa intencionalidade, a proposição do nome de Zumbi dos Palmares para a edificação de um mito fundador e simbolicamente viável”. Ele virou o mártir da independência, mesmo que esse reconhecimento tenha sido dado já após a República.
Mas apesar dessa narrativa, e do próprio título de herói da independência, não há nenhuma evidência histórica de que os ativistas mineiros do episódio buscassem a emancipação política do Brasil frente a Portugal. A luta parecia ser muito mais por autonomia frente à metrópole do que pela construção de um novo país.
“Tiradentes é considerado herói nacional e também lhe atribuído o epíteto de protomártir, ou seja, ele é considerado o maior dentre todos os mártires do nosso processo de independência. Infelizmente, não há evidências concretas de que os inconfidentes desejavam a independência do Brasil”, afirma o historiador Rodrigues.
“Suas falas no processo aberto para julgar seus envolvimentos na Inconfidência Mineira revelam que, antes de pensar no Brasil, eles desejam o rompimento dos laços que uniam a capitania de Minas Gerais do Império português, e que, após o sucesso do movimento sedicioso, outras capitanias poderiam aderir aos mineiros, quase desejassem, como as capitanias do Rio de Janeiro, da Bahia ou de São Paulo.”
“Mas, concretamente, eles desejavam ver as Minas Gerais separadas de Portugal e há falas de interesses nesse sentido, de que as Minas Gerais já não aguentavam mais a opressão econômica sentida de Portugal. O movimento tinha como chamariz a decretação do pagamento dos impostos em atraso — a derrama, a ser executada compulsoriamente sobre cada habitante da região”, conclui o historiador.
Missiato acrescenta que associar a Inconfidência Mineira a luta pela Independência “não é algo necessariamente controverso, mas sim multifacetado”. “Há nesses grupos personagens com interesses pela Independência de Minas Gerais, mas enquanto movimento, a luta principal era pela autonomia da província, da região, e não necessariamente independência política”, explica ele.
O bode expiatório
O episódio da Inconfidência Mineira acabou com os ativistas todos presos. O fazendeiro, proprietário de minas de ouro e coronel Joaquim Silvério os Reis (1756-1819) foi o delator que colaborou para que os rebeldes fossem encontrados e detidos.
Reis teria informado ao vice-rei no dia 9 de maio de 1789 sobre o paradeiro de Tiradentes, que estava foragido desde março daquele ano. No dia seguinte, a casa onde ele estava foi cercada e invadida por soldados. Sem ter como fugir, Tiradentes acabou se entregando.
Todos os inconfidentes ficaram presos por quase três anos até a finalização do processo. As condenações, pelo crime de lesa-majestade, ou sej a, traição ao rei”, dividiam-se entre pena capital e degredo. Mas graças a uma ordem de clemência da rainha de Portugal, todas as sentenças de morte foram convertidas a degredo. Exceto a de Tiradentes.
“Isso ocorreu porque ele tinha uma patente militar mais baixa. Sua condenação acabou servindo como forma de exemplo a não ser seguido”, diz Missiato.
“Tiradentes foi o único a assumir o crime de se rebelar contra o poder português na capitania de Minas Gerais, enquanto todos os demais participantes da Inconfidência Mineira negaram envolvimento na pretendida revolta, além de atribuir a ele a maior parcela de culpa pelos infortúnios que passavam e por falar demais sobre ideias de rompimento dos laços coloniais”, acrescenta o historiador Rodrigues.
“A lei era implacável. Quem assume participação em atos de rebelião, comete traição. E traição contra o governo metropolitano — o rei ou qualquer autoridade governamental que representa a Coroa portuguesa — é condenada com a morte. Por isso, Tiradentes foi condenado, porque ele foi o único a assumir, em seu quarto depoimento, a responsabilidade pela morte do governador da capitania de Minas Gerais.”
“Ele foi tipificado como o bode expiatório da Inconfidência Mineira. Entre audiências e interrogatórios, Tiradentes foi o único que confessou a conspiração, assumindo assim toda a responsabilidade”, afirma Marra.
“Em um ato muito comum à época, o castigo exemplar, decorrente da mentalidade escravista, Tiradentes foi enforcado publicamente, no Rio de Janeiro, no Largo da Lampadosa, atual Praça Tiradentes. Seu corpo foi esquartejado, a sua cabeça exposta em praça pública em Vila Rica e seus membros espalhados estrategicamente em postes e pontos de referência no caminho entre Minas Gerais e os portos do Rio de Janeiro.”
Em uma cena que também permite paralelos com a Paixão de Cristo, Tiradentes foi obrigado a percorrer as ruas do centro do Rio em uma procissão. O governo fez de tudo para que o episódio tivesse uma alta carga simbólica, enaltecendo o poder e a força da coroa portuguesa. Foram 18 horas apenas para a leitura da sentença. O cortejo contou com participação de toda a tropa local e da fanfarra.
Tiradentes foi executado na forca e teve seu corpo esquartejado. Conta-se que a certidão de cumprimento da sentença foi lavrada com seu próprio sangue.
O herói oficializado
Se o reconhecimento de Tiradentes como herói se deu quase 100 anos após sua morte, a oficialização é consolidação dessa imagem é obra da ditadura militar. “Por volta de 1870, o movimento republicano identificou-o como mártir cívico-religioso e postulou a identificação da data de sua morte como feriado nacional: o Dia de Tiradentes”, aponta Marra.
“Sua imagem social e heróica foi também explorada pelos governos do regime militar [entre 1964 e 1985], mesmo que os movimentos políticos à esquerda tentassem reconduzir Tiradentes como rebelde, insurreto e insubordinado.”
Considerado Patrono Cívico do Brasil, Tiradentes é rememorado com um feriado nacional. Em 21 de abril, exatamente a data de sua morte. Essa honraria é garantida por lei de 1965, sancionada pelo presidente Humberto Castello Branco (1897-1967), o primeiro da ditadura militar brasileira.
Em 21 de abril de 1992, 200 anos após sua morte, o nome de Tiradentes foi inscrito no Livro dos Heróis da Pátria.