Os ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) deixaram de lado as disputas internas e se uniram para contrapor a corte às ameaças golpistas do presidente Jair Bolsonaro.
Nove integrantes do tribunal e ex-presidentes do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) divulgaram nota conjunta na manhã desta última segunda-feira (2) conforme a Folha de S. Paulo, para criticar o movimento do chefe do Executivo em favor do voto impresso e contra as urnas eletrônicas.
Horas depois, o presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, aproveitou a primeira sessão do plenário após o recesso de julho e enviou duros recados a Bolsonaro.
E à noite, o TSE aprovou por unanimidade a abertura de um inquérito e o envio de uma notícia-crime ao STF para que Bolsonaro seja investigado no inquérito das fake news.
Em seu discurso da volta do recesso, Fux afirmou que a harmonia e a independência entre os Poderes “não implicam impunidade de atos que exorbitem o necessário respeito às instituições” e disse que o Judiciário precisa “vislumbrar o momento adequado para erguer a voz diante de eventuais ameaças”.
O ministro chegou a incluir as Forças Armadas em uma versão do discurso e pretendia mencioná-las, como mostrou a Folha, mas desistiu de citar a instituição. Fux avaliou que fazer um apelo pelo cumprimento da Constituição seria suficiente.
A ideia de citar as Forças surgiu após o ministro da Defesa, general Braga Netto, emitir nota em que disse que “todo cidadão deseja maior transparência e legitimidade” no processo eleitoral, o que elevou a tensão entre os Poderes.
O discurso de Fux foi dado horas após Bolsonaro atacar novamente o ministro do STF Luís Roberto Barroso, atual presidente do TSE, e afirmar que o magistrado “quer eleição suja e não democrática” em 2022.
Em sessão do TSE na noite desta segunda, Barroso rebateu Bolsonaro e afirmou que quem repete uma mentira muitas vezes será “perenemente prisioneiro do mal”.
No último domingo (1º), o chefe do Executivo já havia participado, por meio de videochamada, de manifestações presenciais de apoiadores em diversas cidades em apoio ao voto impresso. Ele insuflou manifestantes e afirmou que “sem eleições limpas e democráticas não haverá eleição”. Segundo o presidente, a mudança do atual sistema de votação “é a garantia da continuidade da nossa democracia”.
A escalada de Bolsonaro contra o TSE e o sistema eleitoral ocorre em meio às dificuldades de seus aliados para conquistar maioria na Câmara em favor da PEC (proposta de emenda à Constituição) que institui o voto impresso.
O projeto tinha a simpatia de boa parte da Casa, mas uma articulação desencadeada por ministros do Supremo com líderes do Congresso mudou o clima sobre o texto. A PEC prevê que uma impressora seja acoplada à urna eletrônica para imprimir um comprovante do voto que seria inserido em outra urna.
A proposta quase foi derrotada no fim de junho na comissão especial que discute o tema, mas uma manobra de integrantes da base do governo evitou o revés. Até o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que é aliado de Bolsonaro, já afirmou que a PEC deve ser derrotada pelos congressistas.
A ofensiva de ministros do Supremo em favor das urnas eletrônicas não ocorreu apenas no bastidor a fim de derrubar a proposta em tramitação no Congresso. Além de afirmações em favor do sistema eleitoral que já haviam feitas, nesta segunda foi divulgada a nota de maior peso até aqui.
O texto é assinado por nove ministros do STF —Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Luiz Fux, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski— e por nove ex-presidentes do TSE que já integraram o Supremo —Marco Aurélio Mello, Carlos Ayres Britto, Carlos Velloso, Sepúlveda Pertence, Nelson Jobim, Ilmar Galvão, Sydney Sanches, Francisco Rezek e Néri da Silveira.
A nota afirma que o modelo defendido pelo chefe do Executivo “não é um mecanismo adequado de auditoria”. “A contagem pública manual de cerca de 150 milhões de votos significará a volta ao tempo das mesas apuradoras, cenário das fraudes generalizadas que marcaram a história do Brasil.”
O texto também diz que o voto impresso não é um mecanismo adequado “por ser menos seguro do que o voto eletrônico, em razão dos riscos decorrentes da manipulação humana e da quebra de sigilo”.
A nota afirma que as urnas eletrônicas atuais já são passíveis de auditoria e que todos os passos da implementação do modelo são acompanhados por entidades públicas, pela PGR (Procuradoria-Geral da República) e pelos partidos políticos.
“Desde 1996, quando da implantação do sistema de votação eletrônica, jamais se documentou qualquer episódio de fraude nas eleições”, diz. E completa: “A Justiça Eleitoral, por seus representantes de ontem, de hoje e do futuro, garante à sociedade brasileira a segurança, transparência e auditabilidade do sistema”.
Dos atuais integrantes do Supremo, o ministro Kassio Nunes Marques, que foi indicado por Bolsonaro, é o único que não assinou o documento conjunto. Da atual composição do STF, ele é também o único que ainda não integrou a corte eleitoral.
O gabinete de Kassio disse, em nota divulgada na noite desta segunda, que “não foi consultado previamente em nenhum momento a fim de que pudesse concordar, ou não, com o teor da nota publicada pelo TSE”.
Kassio também afirmou que “considera legítimo o posicionamento externado” pelos colegas, mas antecipou que votará a favor da mudança do sistema eletrônico de votação caso seja aprovada pelo Congresso e posteriormente julgada pelo Supremo. “Feita tal ponderação, o ministro Nunes Marques reconhece que o debate acerca do voto impresso auditável se insere no contexto nacional como uma preocupação legítima do povo brasileiro.”
No discurso de retomada dos trabalhos do Judiciário, Fux ressaltou que a manutenção da democracia exige “permanente vigilância” e obediências a pressupostos como “imprensa atuante e independente”, sociedade civil educada e consciente, atores políticos que cumpram as regras da Constituição e magistrados que sejam independentes.
“É dizer, a manutenção da democracia exige permanente vigilância, a ser executada por muitos olhos, mãos e vozes, com obediência a inafastáveis pressupostos: 1) sociedade civil educada e consciente de seus direitos e deveres; 2) imprensa atuante e independente; 3) atores políticos cumpridores das regras do jogo democrático e responsivos aos diversos interesses da população; 4) magistrados independentes, fiéis à Constituição e às leis; e 5) instituições fortes, inclusivas e estáveis”, afirmou Fux.
“Nesse ambiente plural de responsabilidades, cada um dos atores contribui a seu modo para a necessária proteção do Estado democrático de Direito, nos limites das normas constitucionais. Os cidadãos e a imprensa questionam, criticam, erguem contundentemente seus pontos de vista; propõem novos direitos; denunciam e aplaudem, e devem ser respeitados”, acrescentou o presidente do STF.
Fux afirmou que as nações só conseguem se desenvolver mediante respeito às instituições e que “a democracia nos liberta do obscurantismo e da intolerância”.
“Trago uma advertência, porém: democracia é o exercício da liberdade com responsabilidade”, disse.
O ministro afirmou que ninguém tem superpoderes e que o Supremo está atento “aos ataques de inverdades à honra dos cidadãos que se dedicam à causa pública”.
O discurso visa dar respaldo à atuação de Barroso à frente do TSE. Ele tem sido atacado constantemente por Bolsonaro.
“Atitudes desse jaez deslegitimam veladamente as instituições do país; ferem não apenas biografias individuais, mas corroem sorrateiramente os valores democráticos”, disse Fux.
O ministro também ressaltou que o “diálogo eficiente pressupõe compromisso permanente com as próprias palavras”. Segundo Fux, a democracia precisa ser cultivada diariamente, e sem civilidade e respeito às instituições, o regime democrático “tende a ruir”.
“Numa sociedade democrática, momentos de crise nos convidam a fortalecer —e não deslegitimar— a confiança da sociedade nas instituições.”
O ministro também afirmou que os brasileiros jamais aceitariam “que qualquer crise, por mais severa, fosse solucionada mediante mecanismos fora dos limites da Constituição”. Também nesta segunda, ele anunciou que o STF retomará em setembro as sessões presenciais, suspensas em decorrência da pandemia da Covid-19.
Poucas horas depois do discurso de Fux, porém, Bolsonaro voltou a desacreditar o sistema de votação e fazer ameaças golpistas.
O presidente da República repetiu que há um complô para fraudar as eleições presidenciais em 2022, e citou interesse externo no Brasil.
“Temos de ter eleições limpas, democráticas, que possam ser auditadas. Alguém tem dúvida que outros países têm interesses no Brasil?”, disse ele em evento no Ministério da Cidadania.
Bolsonaro também criticou de novo o presidente do TSE e questionou se é preciso “baixar a cabeça” apenas porque “um não quer eleições democráticas”.
“Queremos farsa no ano que vem ou uma eleição marcada pela suspeição?”, afirmou Bolsonaro. Ele disse ser alvo de processos e pedidos de impeachment por “falar a verdade”. “Só Deus me tira daqui. Não errei, dei o melhor de mim.”
Mesmo se a proposta encampada pelo chefe do Executivo for aprovada no Congresso, ela tem grande chance de ser barrada pelo STF. A corte já declarou, em duas oportunidades, a inconstitucionalidade da impressão do voto.
Os ministros suspenderam o artigo da minirreforma eleitoral de 2015 segundo o qual, “no processo de votação eletrônica, a urna imprimirá o registro de cada voto, que será depositado, de forma automática e sem contato manual do eleitor, em local previamente lacrado”.
O julgamento foi feito em uma ação apresentada pela então procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Ela argumentou que a eventual trava na impressão acarretaria intervenção de um mesário junto ao eleitor, possibilitando que conhecesse os votos.
Recentemente, o ministro do STF Gilmar Mendes também elevou o tom contra a ofensiva de Bolsonaro pelo voto impresso. Na última sexta-feira (30), ele disse que a discussão do voto impresso é “uma falsa questão” que esconde outras intenções.
“Essa ideia de que, sem voto impresso, não podemos ter eleições ou não vamos ter eleições confiáveis, na verdade, esconde talvez algum tipo de intenção subjacente, de uma intenção que não é boa”, afirmou.
Gilmar, que presidiu o TSE de 2016 a 2018, disse que é preciso “parar de conversa fiada” e sugeriu que, diante das desconfianças, os defensores do voto impresso deveriam pedir a volta do voto manual “como um todo”.
“Se de fato nós temos tanta certeza de que não há problemas no voto impresso, seria melhor voltar para o voto manual, que nós tivemos inúmeros problemas, inclusive na contabilização e depois no fenômeno que nós conhecemos do mapismo. Portanto, vamos parar um pouco de conversa fiada. Claro que todos nós somos favoráveis à auditabilidade da urna, queremos que seja auditável, e ela é auditável.”
O ministro do STF rebateu também as afirmações de que Aécio Neves (PSDB) teria vencido a eleição presidencial de 2014, alegação sem qualquer indício de verdade que tem sido repetida com frequência por Bolsonaro.
“O caso do Aécio […] não lhe faltou outra coisa que não votos. Se pode até discutir abuso de poder econômico, abuso de poder político, mas isso nada tem a ver com o voto eletrônico”, disse Gilmar.
Lira participou do mesmo evento com Gilmar e fez uma previsão pessimista para os apoiadores de Bolsonaro. Na avaliação do presidente da Câmara, a PEC do voto impresso não terá apoio suficiente para chegar ao plenário da Casa.
“A questão do voto impresso está tramitando na comissão especial, o resultado da comissão impactará se esse assunto vem ao plenário ou não. Na minha visão, tudo indica que não”, afirmou.
Eleito para comandar a Câmara com apoio de Bolsonaro, Lira afirmou que confia no sistema atual, mas disse não ver problemas em dar mais transparência. “Onde não há problema, a gente precisa deixar ainda mais claro.”