O Supremo Tribunal Federal caminha para colocar o ponto final numa controvérsia que se arrasta desde 2016: condenados em segunda instância devem começar a cumprir pena ou é necessário aguardar o fim de todos os recursos nas cortes superiores?
A questão deve ser definitivamente respondida pelo Supremo a partir desta quinta-feira, quando os onze ministros julgarão ações sobre o tema. É possível que o julgamento se prolongue até a próxima semana.
Desde fevereiro de 2016, em placar apertado, o STF permite que presos condenados em segunda instância comecem a cumprir pena. Mas as decisões que deram essa autorização tinham caráter provisório e podem ser revistas. Como os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes mudaram de posição, a expectativa é que o Supremo volte a proibir a prisão antes do trânsito em julgado (quando se esgotam os recursos) dos processos criminais.
A decisão tem potencial de libertar milhares de presos, entre eles o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas nem todos os condenados da Operação Lava Jato seriam afetados – o ex-governador Sérgio Cabral e o ex-deputado Eduardo Cunha, por exemplo, não seriam soltos porque cumprem prisão preventiva (quando o réu fica preso mesmo antes de qualquer condenação para evitar que continue cometendo crimes, fuja ou atrapalhe investigações).
Os juristas favoráveis à prisão antecipada consideram que há recursos demais no Brasil que permitem adiar sucessivamente o fim do processo, favorecendo a impunidade, principalmente de pessoas com dinheiro para pagar bons advogados. Eles defendem que prisão deve ser autorizada após a condenação em segunda instância (os tribunais regionais ou estaduais) porque é nesse estágio que se concluí a análise de provas. Já as cortes superiores – STF e Superior Tribunal de Justiça (STJ) – avaliam se o processo foi conduzido dentro da lei, garantindo a ampla defesa e julgamento justo.
“A presunção da inocência é ponderada e ponderável em outros valores, como a efetividade do sistema penal, instrumento que protege a vida das pessoas para que não sejam mortas, a integridade das pessoas para que não sejam agredidas, seu patrimônio para que não sejam roubadas”, defendeu o ministro Luís Roberto Barroso em 2016.
Já os que defendem que o cumprimento da pena seja autorizado apenas ao final do processo argumentam que a Constituição prevê que os réus devem ser considerados inocentes até que se esgotem todos os recursos. Eles sustentam ainda que os mais afetados pela decisão, na verdade, são os mais pobres, que compõem a grande maioria dos presos no país.
“Um dos principais fatores responsáveis pela superlotação em nossas cadeias é o uso excessivo, desproporcional e inadequado de prisões provisórias, muitas decretadas de forma totalmente indevida”, defendeu recentemente o ministro Ricardo Lewandowski, ao criticar a prisão após segunda instância.
Por que tema será julgado de novo?
Desde 1988, quando a Constituição foi promulgada, até 2009, vinha prevalecendo o entendimento de que era possível cumprir a pena antecipadamente, mas não havia uma orientação clara do STF sobre o assunto.
Por causa disso, em 2009 o plenário do STF analisou a questão a partir de um habeas corpus (pedido de liberdade) de um réu condenado por homicídio – na ocasião, por 7 a 4, o Supremo decidiu contra a prisão antes do esgotamento dos recursos.
Em 2016, porém, o plenário voltou a analisar a questão, ao julgar outro habeas corpus, e decidiu por 7 a 4 autorizar o cumprimento antecipado da pena. O resultado foi modificado porque a composição da corte se alterou, devido à aposentadoria de alguns ministros, e também porque Gilmar Mendes mudou seu voto. Após ter ficado contra a prisão antecipada em 2009, ele votou em 2016 com os ministros Teori Zavascki (falecido), Edson Fachin, Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli e Cármen Lúcia, a favor da prisão após a segunda instância.
Ficaram derrotados os ministros Rosa Weber, Lewandowski, Marco Aurélio e Celso de Mello.
Depois disso, o Partido Nacional Ecológico (PEN) e o a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) moveram duas ações diretas de constitucionalidade (ADCs) tentando reverter a decisão. Elas pediam que o Supremo considerasse constitucional o artigo 283 do Código de Processo Penal, que diz: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou preventiva”.
Ressaltaram ainda que o quinto artigo da Constituição estabelece que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Toffoli e Mendes mudam de lado
O STF julgou as duas ações em caráter provisório ainda em 2016, mantendo a decisão do habeas corpus – o placar ficou em 6 a 5, já que Toffoli reviu sua posição. Depois, já em 2017, o ministro Gilmar Mendes indicou que mudou também seu posicionamento. Ele justifica dizendo que havia votado para autorizar a prisão antecipada, mas não para que se tornasse algo automático após a condenação em segunda instância.
“Aquilo que nós decidimos como uma possibilidade (em 2016) se tornou uma regra absoluta. Foi aí que eu disse ‘nós temos de rever esse critério'”, afirmou em entrevista à BBC News Brasil na semana passada, rebatendo críticas de que teria mudado de posição depois que a Lava Jato chegou a políticos com quem tem boa relação, no PSDB e MDB.
A partir daí, ministros contrários à prisão antes do trânsito em julgado passaram a cobrar o julgamento definitivo da questão. A ministra Cármen Lúcia, então presidente da Corte, se recusou a pautar as ADCs sob o argumento de que o STF não pode rever sua decisão a todo momento. Já os críticos da ministra a acusaram de agir politicamente para permitir a prisão de Lula.
Ela acabou colocando em julgamento o habeas corpus do petista em abril de 2018, em vez das ações mais amplas – o recurso foi rejeitado porque a ministra Rosa Weber decidiu respeitar a decisão do plenário de 2016, mesmo sendo contra a prisão antes da conclusão do processo. Na ocasião, porém, ela indicou que votaria pela proibição do cumprimento antecipado da pena ao julgar o mérito das ADCs.
Já o ministro Alexandre de Moraes, que assumiu a vaga de Zavascki, manteve o posicionamento do sucessor, a favor da prisão antecipada.
O presidente Dias Toffoli, que está no comando do STF há cerca de um ano, resolveu finalmente pautar as ações para esta quinta-feira. O novo julgamento ocorre num momento muito diferente ao de 2016, de desgaste da Operação Lava Jato.
Para Silvana Batini, professora da FGV Direito Rio e Procuradora Regional da República, a constante troca de posição do STF é ruim para a credibilidade da Corte.
“(A prisão após condenação em segunda instância) É uma questão que está colocada há 30 anos, desde a Constituição de 88. A Corte já mudou de lado algumas vezes e, ultimamente, mudou numa velocidade muito grande. Muda ao sabor dos acontecimentos políticos, o que faz com que qualquer decisão do Supremo hoje não inspire a confiança de ser uma decisão técnica”, critica.
Qual pode ser o impacto da decisão?
Se o STF passar a permitir a prisão apenas após o fim do processo, Lula será solto. O ex-presidente está preso desde abril de 2018, após ser condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do Tríplex do Guarujá pelo ex-juiz Sergio Moro e pelo Tribunal Regional da 4a Região (TRF-4). Neste ano, a condenação foi confirmada pelo STJ, mas o petista ainda tem direito a recursos no próprio STJ e no STF.
Outro que seria beneficiado, por exemplo, é o ex-tesoureiro do PT João Vaccari, que já cumpre pena e tem outro processo perto de ser julgado pelo TRF-4.
Já Sérgio Cabral, que foi condenado doze vezes em processo da Lava Jato, não deixará a prisão. “O ex-governador está preso preventivamente. Eventual decisão do STF não o colocará em liberdade”, explicou seu advogado, Márcio Delambert.
O Conselho Nacional de Justiça e a Procuradoria-Geral da República não souberam informar quantos presos podem ser soltos no país caso o STF volte a proibir a prisão após condenação em segunda instância, mas é possível dizer que a decisão teria potencial de afetar milhares de condenados.
De acordo com a Constituição, uma mudança na lei só tem efeito retroativo quando beneficia o réu, se a aplicação da nova medida for prejudicial, prevalecem os termos da lei a que o réu foi submetido.
Apenas no Estado de São Paulo, por exemplo, 30.076 mandados de prisão foram expedidos pelo Tribunal de Justiça (TJ) desde que o STF autorizou a prisão antecipada em fevereiro de 2016, fundamentados expressamente nessa decisão da Corte. Os números são da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
O levantamento permite dimensionar um pouco o impacto da decisão do Supremo. No entanto, não é possível saber se todos os alvos desses mais de 30 mil mandados foram de fato presos – parte poderia já estar detida devido a outros processos ou pode ter conseguido reverter a decisão com um recurso, explica o defensor Mateus Oliveira Moro, que integra a Coordenação do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria paulista.
Também não é possível saber se todos que foram presos serão agora soltos caso o STF reverta a decisão de 2016 porque parte desses processos pode já ter transitado em julgado.
Contrário ao cumprimento antecipado da pena, Oliveira Moro ressalta que muitas das prisões decretadas em segunda instância na Justiça de São Paulo são depois consideradas ilegais e revertidas nas cortes superiores. Em 2018, detalha, a Defensoria Pública de São Paulo obteve sucesso em 64% dos habeas corpus (recurso em geral usado para reverter prisão) julgados no STJ.
“As pessoas que são presas em segunda instância são em sua maioria jovens, negros e de baixa escolaridade”, nota o defensor.
Já Silvana Batini, da FGV, diz que o habeas corpus “é um instrumento muito alargado”, e argumenta que outros tipos de recurso têm percentual de aceitação muito menor nas cortes superiores. Favorável ao cumprimento antecipado da pena, ela defende também a necessidade de o Congresso reformar o sistema penal, reduzindo as possibilidades de recursos.
“O impacto (caso o STF proíba a prisão antecipada) é grande do ponto de vista da credibilidade da Justiça. Vamos recuperar uma ideia de defesa protelatória, de empurrar (o processo) e acreditar pouco na eficácia do sistema penal”, lamenta.
À margem da discussão sobre a prisão após segunda instância, um grande número de pessoas está detida no Brasil em condições insalubres sem ter tido qualquer condenação – dado que gera fortes críticas de defensores dos direitos humanos. São casos, por exemplo, de presos em flagrante que acabam respondendo ao processo de dentro da cadeia.
Segundo dados de julho do Conselho Nacional de Justiça, há 812.564 presos no país, dos quais 41,5% (337.126) são pessoas ainda não condenadas.