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segunda-feira 5 de outubro de 2020 às 09:24h

Salários do Judiciário são maiores que Mega Sena; Na Bahia juiz recebeu R$ 3,5 milhões

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As verbas acumuladas para juízes da ativa e inativos em alguns casos são pagos aos seus dependentes, diz o jornal

As folhas de pagamento do Judiciário registraram, entre setembro de 2017 e agosto deste ano, cifras que superam as estampadas em plaquetas de lotéricas Brasil afora. No último dia 12 de setembro, a Mega Sena sorteou um prêmio de R$ 6 milhões, menos do que recebeu em dezembro de 2017 a pensionista de um magistrado do Ceará.

Os 15 desembolsos mais altos, analisados e publicados pelo jornal Folha de S.Paulo, decorrem de decisões administrativas ou judiciais determinando a concessão de verbas acumuladas para juízes da ativa e inativos e, em alguns casos, seus dependentes.

A maioria dos beneficiários recebeu os valores altos uma única vez, ao reclamar pensões e pedir revisão de aposentadorias, ou mesmo foi indenizada por férias não usufruídas no momento de pendurar a toga. Como a magistratura tem 60 dias de descanso assegurado por ano, o dobro do trabalhador comum, o acúmulo desses períodos não é raro.

Nas tabelas do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), aparecem casos de julgadores que formaram um colchão de mais de 500 dias, convertido em dinheiro ao se retirar. A reforma administrativa em discussão no Congresso, que não atinge juízes e outras carreiras da elite do Estado, acaba com as férias de mais de 30 dias para algumas categorias do funcionalismo. De 15 pagamentos mais polpudos, nove são de TRTs (tribunais regionais do Trabalho).

Em dezembro de 2017, o da 7ª Região (Ceará) desembolsou R$ 8,2 milhões brutos para Francisca de Assis Alves, valor referente ao reconhecimento de pensão de um juiz. A decisão foi da Justiça, num processo que chegou ao Supremo Tribunal Federal. A pensão passou a ser paga em setembro de 2005, mas valores devidos de 1993 até aquele ano ficaram na planilha de passivos administrativos, aguardando disponibilidade orçamentária, segundo a corte.

O principal da dívida era de R$ 1,6 milhão, mas, com juros e atualização monetária, passou a ser de R$ 8,2 milhões em dezembro de 2017. Com os descontos, o rendimento foi de R$ 7,2 milhões. Em caso semelhante, o TRT-7 também pagou naquele mês R$ 883 mil (683 mil com descontos) a Lucinea Ferreira da Costa por pensões retroativas de 2010 a 2014. O direito à pensão foi reconhecido por ato próprio do tribunal. Também em dezembro de 2017, o TRT-5, da Bahia, pagou R$ 3,5 milhões brutos para quitar débito com o juiz Antônio Jorge da Cruz Lima.

Em 2002, ele foi aposentado por invalidez pelo tribunal, após dois anos de afastamento médico, mas questionou a decisão por suposto descumprimento de dispositivos legais. Um dos argumentos foi o de que a aposentadoria foi decidida de forma monocrática, e não colegiada. Anos depois, o CNJ lhe deu razão. O valor recebido (R$ 2,8 milhões líquidos) refere-se principalmente à diferença entre os proventos de inativo para os de magistrado da ativa entre dezembro de 2002 e setembro de 2014, informa o tribunal.

Em outro processo, o TRT-5 desembolsou naquele mês R$ 729 mil (R$ 660 mil com descontos) por causa de ajuste na pensão paga a Maria Auxiliadora Silva Ribeiro. Os créditos, explica a corte, foram apurados e pagos por causa de decisão do TCU (Tribunal de Contas da União).

No topo da lista, também aparecem dois pagamentos de R$ 1,2 milhão brutos cada (cerca de R$ 850 mil líquidos) feitos pelo TJ-PE (Tribunal de Justiça de Pernambuco), em novembro e dezembro do ano passado, à juíza Marylusia Pereira Feitosa de Araújo. Ela integra um grupo de magistrados que recebeu quantias elevadas do TJ naquela época. Entre eles, também consta Fausto de Castro Campos, com rendimentos totais de R$ 767 mil em novembro (R$ 699 líquidos). A corte não se pronunciou. Na ocasião dos repasses, alegou que, em geral, decorrem de férias acumuladas.

O tribunal informou que Marylusia ficou afastada das funções e foi reintegrada por um mandado de segurança. Assim, a corte teve que pagar valores retroativos por força da lei. O motivo do afastamento e os detalhes do pagamento não foram detalhados. No TRT-15 (Campinas), o juiz Hamilton Luiz Scarabelim e o desembargador Jorge Luiz Costa se aposentaram em 2019 com direito a R$ 932 mil (R$ 818 mil líquidos) e R$ 652 mil (R$ 643 líquidos), cada.

Os valores são de acertos da gratificação por exercício cumulativo de jurisdição, custeio médico, gratificação natalina e indenizações de férias não gozadas, entre outras verbas, explicou o tribunal. Scarabelim recebeu por 460 dias não usufruídos e mais 87 trabalhados nas férias, totalizando R$ 886 mil; já Costa, por 390 dias não aproveitados (R$ 624 mil). Caso semelhante se deu no Tribunal de Justiça do Paraná em setembro de 2017. A aposentadoria do juiz Marcio Geron gerou um holerite de R$ 640 mil (R$ 622 mil líquidos), referentes a 452 dias de férias, informou a corte.

Em Minas Gerais, o TJ pagou R$ 760 mil (R$ 750 mil líquidos) em abril de 2019 a Paulo Antônio de Carvalho. Segundo o TJ, ele integra grupo de magistrados que receberam, quando da aposentadoria, por férias e férias-prêmio não gozadas. Foi também por conta de férias represadas, de acordo com o TRT-3 mineiro, que Rogério Valle Ferreira obteve R$ 558 mil (R$ 536 mil com descontos) ao se aposentar.

Pelo mesmo motivo, o TRT-9, do Paraná, pagou R$ 586 mil (R$ 572 mil líquidos) na aposentadoria de seu ex-corregedor, Ubirajara Carlos Mendes. Ele não tirou todas as férias porque, segundo o tribunal, acumulou atividades, como a substituição de ministros do TST (Tribunal Superior do Trabalho). Houve também casos como o do desembolso de R$ 1,1 milhão brutos para, segundo o TRT de Minas, quitar débitos com o espólio da magistrada Maria Auxiliadora Machado Lima.

Em Rondônia, o juiz Leo Antônio Fachin, do Tribunal de Justiça, foi aposentado compulsoriamente em 2010. Contudo, via recursos, obteve a revisão de valores, disse a corte. Em junho do ano passado, essas diferenças foram quitadas nos valor de R$ 555 mil (R$ 428 mil com abatimentos). Consultados pela Folha de S.Paulo, os tribunais afirmaram que os pagamentos se deram a partir de decisões da Justiça ou administrativas deles próprios, do TCU e dos conselhos Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) e Nacional de Justiça (CNJ), baseados em leis e em normas desses colegiados.

No caso do pagamento de férias, o CNJ aprovou em 2011 resolução que autoriza a indenização de dias não gozados, “por absoluta necessidade do serviço, após o acúmulo de dois períodos”. O mesmo texto libera outras verbas e foi editado a título de equiparar direitos dos juízes com os de outras categorias, como as de promotores e procuradores do Ministério Público, evitando “discriminação, contrária ao preceito constitucional”, e “desequilíbrio entre as carreiras”.

Na época, o colegiado também alegou a necessidade de “preservar a magistratura como carreira atrativa face à paridade de vencimentos”. Professora do Departamento de Ciência Política da UFMG (Universidade Federal de MG) e coordenadora do Observatório da Justiça no Brasil e na América Latina, Marjorie Marona diz que muitos dos passivos pagos à magistratura são, de fato, pelo reconhecimento de benefícios previstos em normativos legais.

Ela afirma que a carreira se estruturou ainda sob o legado de “instituições autoritárias”. Na fase de redemocratização, a reorganização buscou assegurar direitos e prerrogativas aos juízes como forma de preservar um “elevado grau de independência –princípio fundamental em democracias”.

A professora ressalta que, embora não seja possível fazer uma análise sobre decisões administrativas específicas, trabalhos acadêmicos apontam genericamente para o fato de que, ainda que os conselhos da magistratura e do Ministério Público tenham sido criados sob uma discurso de maior controle sobre as classes, na prática eles atuam muito mais na afirmação da posição institucional dos respectivos órgãos ou Poderes. “Isso passa por uma afirmação das carreiras. Conselhos não aumentam o controle da atuação do Judiciário e do MP, ampliam a capacidade, a posição institucional desses corpos”, comenta.

Ela afirma, por exemplo, que o CNJ, segundo estudos, atua mais na expansão da autonomia do Judiciário do que propriamente em seu controle.

Outro lado

Associações de classe da magistratura afirmam que os pagamentos que vêm sendo feitos a juízes de todo o país obedecem ao teto salarial constitucional e que, na prática, as remunerações estão defasadas.

O presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais), Eduardo André Brandão, afirma que os magistrados dessa esfera do Judiciário recebem vencimentos limitados ao teto salarial. “Notícias de pagamentos superiores ao limite estabelecido pela Constituição não se referem à realidade da Justiça Federal”, afirmou em nota.

Ele alega que os magistrados têm direito a revisão anual dos salários, equivalente ao dissídio coletivo das carreiras privadas, para repor a inflação. “Nos últimos 16 anos, só houve seis revisões. Esses descumprimentos constantes permitem, no caso dos magistrados estaduais, pedidos nas Assembleias Legislativas, o que pode ter gerado algumas discrepâncias. Mas essas situações não se aplicam à Justiça Federal.”

Brandão afirma que uma eventual reforma administrativa focada no corte de extras salariais seria inócua no âmbito da magistratura federal. “Na esfera da Justiça Federal, essas verbas simplesmente não existem. Se for seguir esse caminho, será uma reforma sem nenhum ganho concreto”, escreveu.

A reportagem questionou o Conselho da Justiça Federal (CJF), mas o órgão não informou quais verbas podem ser pagas pelos tribunais regionais federais e quais, não. O presidente da Ajufe diz que o governo tomou a decisão correta ao não incluir a magistratura na proposta de reforma administrativa enviada ao Congresso.

“A Ajufe concorda com o Poder Executivo e valoriza a segurança jurídica buscada, já que qualquer proposta de reforma administrativa para o Judiciário tem que partir do STF (Supremo Tribunal Federal). Pois se trata de outro Poder e não pode haver interferências.”

A presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), Noemia Aparecida Garcia Porto, sustenta que essa esfera do Judiciário tem contracheques simples, com o pagamento de poucos extras salariais. Tanto que a média do contracheque, segundo os dados do CNJ, é de R$ 40 mil brutos.

Ela cita como exemplos de verbas pagas os auxílios alimentação, pré-escola e natalidade, a gratificação por acúmulo de jurisdição e o abono-permanência (para profissionais em condições de se aposentar). “Auxílio não sei o quê, auxílio-livro, essas coisas não fazem parte da nossa realidade, porque a gente se submete à legislação federal”, comenta.

Porto destaca que a Anamatra sempre defendeu o regime de subsídio (salário) único para os magistrados, “de valor transparente e com reajuste anual”, conforme previsto na legislação. Contudo, segundo ela, os aumentos não vêm sendo aplicados e há atualmente uma defasagem nas remunerações. “Até abril de 2019, as perdas acumuladas, retirando os seis reajustes que aconteceram, beiravam os 40%.” Isso se soma às graves dificuldades orçamentárias, afirma, pois em 2016 a Justiça do trabalho sofreu corte orçamentário.

A magistrada alega que a situação da Justiça do Trabalho destoa da verificada na esfera estadual, na qual houve a criação de extras que não se aplicam à realidade dos TRTs. “É difícil dizer o que levou cada TJ a essa criação por lei dessas parcelas. A não observância dessa fórmula [de reajuste anual] é um dos fatores que acabaram contribuindo -não é o único- para essa proliferação de parcelas.”

A presidente da Anamatra diz ainda que a entidade é “refratária” à reforma administrativa como está posta, tanto para servidores quanto para magistrados, pois ela implica a precarização do serviço público. No caso da magistratura, ela diz que mudanças dessa natureza têm, sim, por imposição constitucional, de partir do próprio Judiciário.

“Juízes não são servidores públicos. Eles ocupam uma carreira de Estado. Para manter minimamente o equilíbrio entre os Poderes, para [a reforma] atingir membros de um Poder, tem de ser iniciativa do próprio Poder. Porque senão, cada um –o Legislativo de vez em quando, o Judiciário algumas vezes– fica nas mãos dos governos de plantão. Acaba com a higidez da ideia de separação dos poderes”, comenta.

Procurada pela reportagem, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), que congrega principalmente entidades representativas de juízes estaduais, disse que a magistratura deve ser remunerada “de acordo com a Constituição, considerando todas as especificidades, limitações e atribuições que o cargo impõe”.

“Valorizar a magistratura é fortalecer o sistema de Justiça para que todas as funções sejam cumpridas com independência, autonomia e transparência”, disse a presidente da entidade, Renata Gil, em nota.

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