Os números assustam. Com 1,9 milhão de casos em menos de três meses, o Brasil já registra hoje a maior epidemia de dengue de sua história — e a situação vai piorar. Estima-se que, até dezembro, esse número supere a marca de 4 milhões, aumentando ainda mais a dimensão da tragédia. De janeiro pra cá, foram 656 óbitos confirmados e há outros 1 025 em investigação. Nove estados — a maioria no Sul e Sudeste — e o Distrito Federal decretaram situação de emergência. Na capital nacional, um hospital de campanha atende quase 1 000 pacientes por dia. Apesar de ter atingido um patamar inédito, a escalada da doença não começou agora. Nos últimos doze anos, o Brasil registrou, em média, mais de 1,1 milhão de casos por ano e 7 000 mortos no total. O número de vítimas do mosquito Aedes aegypti chegou a recuar em 2021, mas voltou a subir no final do governo Jair Bolsonaro e início do mandato de Lula (veja o quadro). Infelizmente, as estatísticas alarmantes não serviram de lição para que o país evitasse o atual cenário de descalabro.
Não bastasse a crise sanitária, as picadas do mosquito abriram também uma ferida política. A alta de casos virou munição para a oposição, que tenta tirar uma casquinha da situação. No caso da ala bolsonarista, o caso virou uma espécie de revanche (guardadas as devidas proporções) às críticas sofridas durante o combate ao coronavírus na gestão do ex-presidente. Após anos desdenhando da vacina contra a Covid-19, ironia das ironias, bolsonaristas agora exigem celeridade na compra de imunizantes. Um deles é o ex-ministro da Saúde Marcelo Queiroga, pré-candidato à prefeitura de João Pessoa pelo PL e defensor, durante a pandemia, da autonomia do médico para receitar cloroquina (sem eficácia comprovada) contra o vírus. Agora, Queiroga diz que o governo esnobou as vacinas contra a dengue e retardou a incorporação delas ao SUS. Além disso, prossegue ele, em face do número ínfimo de doses adquiridas, restringiu demasiadamente o público-alvo. “A ministra Nísia Trindade relativizou a importância da vacina na contenção da epidemia”, escreveu Queiroga nas redes.
Independentemente do fato de esse tipo de crítica ser justa, o fato é que Nísia está cada vez mais no alvo. A comandante da pasta da Saúde não recebe reprimendas só dos políticos de oposição, mas do próprio Lula. Na reunião ministerial de segunda-feira, 18, a ministra se emocionou e, segundo relatos, chorou após ser cobrada publicamente sobre a escalada da dengue. O presidente se irritou, especialmente com o fato de o governo ter passado a impressão de que haveria vacina para todos. A ministra já enfrentava a artilharia pesada do Centrão, que cobiça o seu cargo e a chave de um cofre que tem 218 bilhões de reais por ano — e agora vê na crise sanitária a oportunidade perfeita para convencer o governo da necessidade de mudança.
Embora o bolsonarismo faça barulho nas redes, a pressão política maior vem de outros agentes, mais qualificados. Reunidos em um consórcio, os governadores do Sul e Sudeste, que decretaram emergência em todos os estados, emitiram uma carta conjunta na qual pedem que a distribuição de vacinas “atenda a critérios transparentes pactuados com os entes da federação” e a “atualização dos critérios de distribuição de recursos federais para a realidade atual”. A chiadeira é justa. Em meados de fevereiro, o ministério anunciou ajuda extra de 1,5 bilhão de reais a estados e municípios, mas, segundo a própria pasta, apenas 79 milhões de reais foram de fato repassados. Parte dos pleitos foi atendida na quarta, 20, em anúncio feito pela própria Nísia, que aceitou transferir as doses não utilizadas até aqui — a adesão média da população é de apenas 36% — para municípios que também decretaram emergência dentro dos estados já contemplados. As cidades com mais casos terão acesso a 300 milhões de reais para a compra de medicamentos e soro, sob a promessa de agilidade. “Optamos por atender a demanda”, explicou a ministra, sem esconder o fator político da decisão.
A polêmica em torno da vacinação ajudou a aumentar o bombardeio político, mas a importância do imunizante é bastante relativa na atual emergência. A única vacina disponível no mundo é a Qdenga, fabricada pelo laboratório japonês Takeda. Ela foi lançada no ano passado e tem disponibilidade limitada. Foi aprovada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em maio de 2023 e incorporada ao Programa Nacional de Imunizações do SUS em dezembro, após um longo processo burocrático no governo. O Ministério da Saúde afirma ter adquirido todo o estoque possível para 2024 e 2025. Neste ano, receberá 6,5 milhões de unidades, permitindo imunizar 3,2 milhões de pessoas em esquema de duas doses — ou seja, apenas 1,5% da população. Para 2025, além de dobrar a quantidade comprada da Takeda, o governo aposta na disponibilização de uma vacina pelo Instituto Butantan, cujo desenvolvimento está na fase final. “A vacina é, sem dúvida, um avanço enorme nesse controle, tendo em vista que estamos sendo ineficazes nas demais estratégias. Mas não há expectativa, neste momento, de que ela ajude no controle da doença em função da quantidade disponível. Pressionar por vacinas agora é pura política”, diz o pediatra e infectologista Renato Kfouri, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações.
Sem o benefício de uma ampla cobertura vacinal, o poder público deveria ter se concentrado no que é sua responsabilidade há tempos: barrar o mosquito. Segundo especialistas, todos os atores governamentais (União, estados e prefeituras) falharam, mas a maior cobrança pode — e deve — ser feita ao governo federal. A transmissão da dengue é evitada com rede de água e esgoto de boa qualidade, destinação adequada do lixo e moradias seguras. São investimentos caros, que requerem manutenção permanente, têm pouco retorno eleitoral e exigem ações sistemáticas e interministeriais. Além disso, a União é a maior responsável pelo monitoramento da doença. “O mosquito não respeita fronteiras municipais e estaduais”, afirma a médica especialista em saúde pública Ligia Bahia, da UFRJ.
Dados da OMS indicam que a escalada da dengue é mundial, impulsionada em grande parte pelo aquecimento global. Em 2023, foram relatados 5 milhões de casos e 5 000 mortes em todo o planeta, sendo 80% nas Américas. O controle adotado por Singapura, cidade-estado do Sudeste Asiático, é tido como referência. Ali, agentes de saúde têm aval para vistoriar casas e ordenar que os moradores tomem medidas imediatas de erradicação, sob pena de multa. Outro exemplo é o Chile, único país da América do Sul que não tem dengue, em especial porque o clima frio e seco na maior parte do território leva o mosquito a se concentrar em áreas portuárias. Na década de 1940, as autoridades identificaram os focos de reprodução e implementaram campanhas de extermínio com uso controlado de pesticida nos aquíferos, resultando na erradicação do inseto no país em 1961.
Como se vê, o Brasil não aprendeu nada com as crises do passado, tampouco tirou lições úteis desses bons exemplos do exterior nessa questão. A complexidade das causas que resultaram no registro recorde de casos de dengue não comporta cobranças políticas simplistas e oportunistas, mas também não tolera nenhuma negligência com o trabalho básico que se espera do poder público — e assim, em pleno século XXI, vamos perdendo a batalha contra um mosquito. Um vexame que vai ganhando proporções cada vez mais trágicas.
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NOTA
Após a publicação desta reportagem, o ex-ministro da Saúde Marcelo Queiroga enviou nota à redação na qual afirma que nunca foi um defensor do uso da cloroquina para tratamento da Covid-19, embora seja favorável à autonomia dos médicos.
“A autonomia médica é um princípio milenar do exercício da medicina, balizada pelas evidências científicas e pela lei. Não há sequer uma afirmação de minha parte de estímulo a cloroquina ou qualquer outra medicação sem evidência científica comprovada contra Covid-19 ou qualquer outra doença. Em entrevista concedida A VEJA (Páginas Amarelas), publicada na edição de julho de 2021 (edição nº 2748), deixei clara minha posição sobre o tema: “A nota técnica do ministério indicando a cloroquina já perdeu o seu objeto. A prioridade hoje é vacinar. Não podemos ficar o tempo inteiro com as mesmas discussões”. Ademais, durante a Comissão Parlamentar de Inquérito, realizada no Senado, deixei assentado que a cloroquina e outras medicações do chamado “kit Covid” não tinham eficácia comprovada no tratamento da Covid-19. Na minha gestão no Ministério da Saúde, ao contrário do que pode se depreender da citada matéria, foram aprovadas as Diretrizes para o Tratamento da Covid-19, após recomendação da Conitec, e não há recomendação para uso de cloroquina em qualquer fase da evolução da doença. As diretrizes estão vigentes e representam a posição do Ministério da Saúde para o tratamento da doença”.
Publicado na revista Veja de 22 de março de 2024, edição nº 2885