Governo dos EUA deve anunciar nesta terça a proeza, que a ciência persegue há décadas – e representa o primeiro passo para transformar a fusão em uma fonte de energia limpa e quase infinita, que poderia mudar o mundo
A notícia foi publicada pelo Financial Times e confirmada pelo Washington Post, que cita fontes internas do Lawrence Livermore National Lab (LLNL), um centro de pesquisas que desenvolveu as bombas atômicas dos EUA durante a Guerra Fria e agora teria conseguido alcançar outro marco: fazer um reator de fusão nuclear gerar mais energia do que ele consome para funcionar.
Segundo a reportagem, um reator experimental do Lawrence Livermore teria produzido o equivalente a 2,5 megajoules de energia: 20% a mais do que os 2,1 megajoules que ele gastou para realizar a fusão. Em 2018 e 2021, o laboratório já havia conseguido gerar energia excedente a partir da fusão, mas em quantidades irrisórias e/ou por períodos extremamente curtos, da ordem de 150 picossegundos (1 picossegundo equivale a 0,000000000001 segundo).
Estevan Silveira / Carol Malavolta/Superinteressante
A energia gerada agora, 0,4 megajoule, equivale a 111 watts/hora – daria para alimentar um notebook e um smartphone. É pouco: foi um teste em escala bem reduzida. Mas mostra que a tecnologia realmente pode funcionar, e por isso o feito está sendo considerado um marco histórico – tanto que nesta terça-feira (13) o Department of Energy, do governo americano, irá realizar um evento para anunciá-lo (transmitido, a partir do meio-dia, pelo site www.energy.gov/livestream).
Dominar a fusão nuclear é algo extremamente difícil, que a ciência persegue há décadas sem sucesso. Tanto é assim que os físicos até criaram uma piada: “A fusão nuclear é a energia do futuro. E sempre vai ser”. Sempre vai ser, no caso, significa que ela nunca se tornará viável. Não é fácil iniciar, controlar e manter a fusão, pois ela requer temperaturas altíssimas, de até 100 milhões de graus Celsius.
Mas, piadinhas à parte, ela vem dando passos importantes. Este ano, o LLNL anunciou ter alcançado a chamada “ignição”, em que o reator consegue sustentar as reações de fusão sem precisar de energia externa. E o ITER (International Thermonuclear Experimental Reactor), um projeto conjunto entre EUA, Europa, Rússia e China que está em construção há 15 anos, finalmente deve ficar pronto em 2025.
Os reatores de fusão costumam usar deutério e trítio, dois isótopos (variações) do hidrogênio. Você coloca os dois dentro do reator e bombardeia com eletricidade (o reator do LLNL usa lasers, mas o princípio é similar). Com isso, eles se transformam em plasma – um gás eletrificado, que reage a campos magnéticos. O reator usa ímãs para segurar esse plasma, e a pressão dentro dele vai aumentando, até que o deutério e o trítio se fundem.
Quando isso acontece, há liberação de energia na forma de calor – que você então usa para ferver água, cujo vapor movimenta uma turbina, gerando eletricidade. Explicamos melhor o processo na reportagem “A corrida maluca da fusão nuclear”, publicada pela Super em 2019. A “corrida maluca” do título, aliás, é porque também dá para fazer a fusão na garagem de casa, algo que hobbistas, curiosos e apaixonados por ciência já conseguiram – contamos alguns casos na matéria.
O problema, seja em reatores caseiros ou nos laboratórios de pesquisa, é que você gasta energia para gerar e confinar o plasma. E é uma quantidade maior do que o reator produz, na forma de calor. Ou seja, ele tem rendimento negativo – logo, não serve para gerar energia. Foi esse obstáculo que, agora, o Lawrence Livermore conseguiu superar.
A fusão nuclear promete resolver todos os problemas da fissão, que é usada hoje nas usinas nucleares. Os reatores de fissão usam substâncias relativamente exóticas, como urânio enriquecido, precisam de refrigeração constante (se o fluxo de água parar, o núcleo do reator pode derreter), e geram dejetos radioativos, que têm de ser armazenados com cuidado.
Já a fusão usa materiais abundantes – o deutério, seu principal ingrediente, está presente na água do mar. Um litro de água salgada poderia gerar energia equivalente a 300 litros de gasolina (e o outro ingrediente da fusão, o trítio, é produzido dentro do próprio reator, a partir do lítio).
O reator também é considerado mais fácil de controlar em situações anormais: se houver algum problema, a fusão tende a parar sozinha (não é como a fissão, que pode continuar de forma descontrolada, gerando calor suficiente para derreter o reator).
E a fusão não gera lixo radioativo. Seus únicos subprodutos são gás hélio, que é inofensivo, e nêutrons (partículas subatômicas que são absorvidas pelas paredes do próprio reator).
Ela é limpa, praticamente infinita – e, ao contrário das energias eólica e solar, não está sujeita a variações climáticas. Se um dia se tornar comercialmente viável, poderá substituir totalmente os combustíveis fósseis, resolvendo o problema das emissões de CO2 e do aquecimento global.
Em suma: no papel, a fusão é a fonte de energia ideal. Devemos nossa vida a ela, inclusive – o Sol usa a fusão nuclear para gerar calor. Mas explorá-la aqui, na Terra, é um dos maiores desafios que a humanidade já enfrentou.