Em dezembro passado, o general André Luiz Aguiar Ribeiro assumiu o comando da 6ª Região Militar (RM), responsável por tropas e atividades do Exército nos Estados da Bahia e de Sergipe.
Foi uma cena rara. Militares da pele preta como ele existem em profusão nos estratos inferiores das Forças Armadas. À medida que a patente aumenta, o embranquecimento também.
Segundo o pesquisador e jornalista Sionei Leão, autor do livro “Kamba’Race – Afrodescendências no Exército Brasileiro”, Ribeiro é apenas o terceiro negro a atingir o segundo degrau da patente mais importante da força terrestre —general de Divisão, três estrelas.
Como passou a liderar uma organização militar de relevância (e como não há outro com essa cor e essa patente entre os oficiais-generais da ativa), o novo comandante da 6ª RM em tese tem chances de atingir o degrau mais alto da carreira militar, general de Exército (quatro estrelas) —algo que nenhum negro alcançou em mais de 200 anos de história do Exército.
Sionei Leão, que é negro e ex-militar, dedicou duas décadas de pesquisa ao tema de seu livro, inicialmente uma monografia de conclusão de pós-graduação. Seu trabalho mostra que o Exército Brasileiro teve somente 11 generais negros em sua história, a maioria no primeiro degrau da patente, general de Brigada (duas estrelas).
Como aponta Leão em “Kamba’Race”, para além das baixas patentes, há também presença significativa de negros na condição de oficiais de carreira na corporação. Mas o quadro muda mesmo quando se chega ao generalato.
O autor lembra que os coronéis concorrentes a generais de Brigada são escolhidos mediante análise do Alto Comando, composto por todos os generais de Exército da ativa.
“Os critérios são de responsabilidade absoluta desse mesmo Alto Comando, que submete a escolha ao presidente da República. Isso significa que, embora os méritos profissionais e intelectuais de cada concorrente à nova patente sejam levados em conta no momento de composição da lista, nenhum dos candidatos tem a absoluta certeza de que seus dotes lhes garantirão o acesso”, afirma Leão.
“Em suma, essa etapa, diferente das demais, reveste-se de caráter político e não somente técnico.”
Um levantamento feito em 2021 pelo jornal O Globo mostrou que, entre os 400 oficiais-generais das três Forças Armadas então na ativa, havia somente 7 pretos (1,75% do total). O Exército tinha (e tem) a cúpula mais branca entre as Forças: o único oficial-general preto da corporação verde-oliva era (e continua sendo) André Luiz Ribeiro.
Apesar de o debate sobre a pouca diversidade étnico-racial em posições de poder no Brasil ter cada vez mais espaço na sociedade, o tema continua a representar um tabu para o Exército. Procurado, o general Ribeiro informou que não daria entrevista por não se sentir confortável com a pauta —no pedido, a reportagem mencionou que a questão da diversidade seria um dos tópicos de interesse.
O Exército também silenciou. Solicitou que enviasse questões, mas, instado a comentar a trajetória do general Ribeiro na força terrestre, os desafios dele no Comando da 6ª RM e a relação entre a cor de pele e promoção na corporação, não respondeu.
A Sionei Leão —que baseou sua pesquisa em documentos históricos, fotografias e entrevistas— o Exército negou em duas ocasiões possuir dados sobre cor/raça na corporação. Numa delas, respondeu: “A promoção aos postos previstos na carreira é baseada no desempenho profissional e na competência do militar, não sendo levados em consideração outros aspectos como, por exemplo, o citado no questionamento em tela”.
Leão conta que, durante a pesquisa para o capítulo sobre generais negros em “Kamba’Race”, alguns entrevistados evitaram falar por considerarem que ele pretendia tratar de cotas ou políticas afirmativas. “Eles não querem de forma alguma serem conhecidos como militares que ingressaram nesse patamar por serem negros. Isso é uma postura, um pilar, e uma questão de honra, no modo de pensar na caserna”, diz o autor.
Para Leão, a questão racial deveria ser colocada de outra forma. “Por que raramente se verifica um general afrodescendente no Exército Brasileiro? Uma instituição que se reconhece como popular e costuma fazer apologia da contribuição dos negros em vários momentos, a começar com o mito de Guararapes [da Batalha dos Guararapes, tida como marco da formação do Exército]. O Exército para esse assunto de racialidade é bem conservador e até refratário, chega a ser contraditório.”
Carioca, torcedor do Botafogo e casado com uma soteropolitana, o general Ribeiro, 56, é filho de pai e mãe com poucas posses, também cariocas. Ele comentou sua origem “muito humilde” em entrevista ao jornal baiano A Tarde, na qual não foi abordada a sua afrodescendência.
“A minha educação, apesar da simplicidade dos meus pais, foi uma educação cartesiana, eivada de princípios, que só veio encontrar uma total união com os valores, os princípios e a ética militar.”
Formado aspirante em infantaria em 1989 na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras), fez o curso Joint Senior Command Staff Program (JSCSP) no South African National War College em 2010. Antes de assumir a 6ª RM, foi assessor especial no Ministério da Defesa e, antes disso, comandante da 10ª Brigada de Infantaria Motorizada, no Recife.
A 6ª Região Militar possui quatro batalhões, sendo dois em Salvador, um em Feira de Santana e outro em Aracaju, capital de Sergipe, além de unidades de combate e de apoio e tiros de guerra. É subordinada ao Comando Militar do Nordeste, com sede no Recife. Segundo o Exército, a 6ª RM é a região militar mais antiga do Brasil e o primeiro grande comando criado na corporação.
A 6ª RM já foi comandada pelo general Gonçalves Dias, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional do governo Lula, que caiu após o 8 de Janeiro. Na 6ª RM, GDias, como é conhecido, foi exonerado depois de críticas por confraternizar com PMs que faziam greve, em 2012.
No fim de 2023, dias após assumir o cargo na Bahia, o general Ribeiro se reuniu com o governador Jerônimo Rodrigues (PT) e com o secretário de Segurança Pública da Bahia, Marcelo Werner. A conversa teve um tom institucional, mas houve promessas de lado a lado para uma atuação em sintonia entre governo e Exército.
O governo baiano tem apostado em ações integradas de combate à violência com instituições federais como a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal. A parceria com o Exército é mais tímida, focada sobretudo no compartilhamento de informações.
A Bahia enfrenta um cenário de crise na segurança nos últimos anos, sendo o estado com maior número absoluto de mortes violentas e maior letalidade policial. O número de mortos em ações da polícia cresceu 15% entre 2022 e 2023, saindo de 1.468 para 1.689 casos.
Apesar da disposição do Exército e do Ministério da Defesa em voltar a realizar operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem), usando militares em crises de segurança pública, na cúpula do governo baiano a avaliação é que não há indicativo de uma possível ação do tipo no estado.
Outro desafio do general à frente da 6ª Região Militar é garantir a efetividade da Operação Carro-Pipa, com a distribuição de água por meio de caminhões em localidades da zona rural.
A Bahia enfrentou no ano passado uma seca mais severa e prolongada do que o comum. Ao todo, 195 dos 417 municípios do estado tiveram emergência decretada por conta da estiagem.