Professor e pesquisador da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (Ufba), o advogado e analista político Samuel Vida, que já foi filiado ao PT, concedeu entrevista ao jornal Tribuna da Bahia.
Confira:
Tribuna – O senhor tem sido bastante crítico à esquerda baiana. O que senhor pensa sobre a esquerda na Bahia?
Samuel Vida – É sempre perigoso generalizar críticas ou elogios, tendo em vista grupos que são heterogêneos. Quando a gente está falando de esquerda, a gente está falando espectro bastante heterogêneo de agrupamentos políticos que vão do PT, passando pelo PSB, PCdoB, chegando ao PSOL, PSTU. Eu não generalizaria sobre a esquerda, sem fazer essa distinção. Eu preciso focar em uma análise da esquerda que está no governo da Bahia. Aquela que, ao longo dos últimos 17 anos, tem se apresentado como gestora, como proponente de um projeto, de um programa, implementadora de uma política pública no estado da Bahia.
Tribuna – Muita gente tem dito a esquerda que está no poder da Bahia parece muito com o carlismo. O senhor concorda?
Samuel Vida – Acho que essa é uma crítica também generalizada que pode ter elementos de consistência e de distinção. O carlismo foi uma força política historicamente determinada por dimensões do que vivia a sociedade brasileira. O carlismo se desenvolveu à sombra da Ditadura Militar, se favoreceu de uma dinâmica política extremamente conservadora que vigorava no país. Isso, por exemplo, como parâmetro para buscar semelhanças com as forças que estão no governo atual. O carlismo atuou de forma de autoritária, com política centralizadora, política que poderíamos chamar genericamente de coronelista. Havia um chefe supremo que detinha o controle total e que colocava a sua vontade. Nesse aspecto, a gente já começa a ter algumas aproximações especialmente na gestão de Rui Costa, que deu evidências muito grandes de uma lógica autoritária e centralizadora no chefe. Tão poderosa que permite indicar a mulher para o Tribunal de Contas [dos Municípios]. Esse episódio tem uma evidência muito grande que as forças políticas atualmente no governo desenvolveram traços patrimonialistas ajustadores. Muito similares ao que o carlismo no passado seguia.
Tribuna – Quais as características dessa esquerda que está hoje no poder da Bahia?
Samuel Vida – A primeira característica que distingue dos projetos de esquerda é que ela é profundamente neoliberal. O projeto implementado na Bahia pelos governos do PT tem como característica saliente uma versão intensa de programa econômico, de gestão, neoliberal. A Bahia é hoje líder nacional na implantação de privatizações, de PPPs (parcerias público privadas). Modelos que são a ponta de lança da concepção neoliberal. Isso é tão destacado que hoje a Bahia fornece consultoria para outros estados e até para outros países. Nós temos uma gestão que há 17 anos aperfeiçoa mecanismos neoliberais na contramão de tudo o que seu programa formal anuncia. O programa do PT, do PSB, do PCdoB diz ser contra o neoliberal e é hoje a experiência mais bem sucedida no Brasil e, talvez, na América Latina.
Tribuna – Quais as outras características?
Samuel Vida – A segunda característica diz respeito à democracia. As gestões do PT têm cercado os espaços democráticos. Nós temos hoje conselhos que não funcionam, temos mudanças em conselhos que alteraram a composição em desfavor da sociedade civil. Nós temos um processo de gestão que é conduzido sem consideração da opinião pública, dos movimentos sociais. Um exemplo no dia 17 foi nomeado para um cargo da Sudesb uma pessoa que respondeu a processo por racismo e condenado judicialmente, mesmo com toda a sociedade e opinião pública questionando.
Tribuna – Como o senhor analisa a relação entre a esquerda que está no poder e a Polícia Militar?
Samuel Vida – Não só com a Polícia Militar. O grupo que está no poder tem uma concepção de segurança pública protofascista, centrada na ideia de que guerra às drogas, na eliminação física de um suposto inimigo. O que vai intensificar o comportamento racista e violação dos direitos humanos. Há uma lógica que privilegia o confronto e a letalidade. Essa lógica estimula a ilegalidade. Todos os dias nós temos matérias jornalísticas em que agentes da segurança pública estão envolvidos em, no mínimo, episódios que mereciam esclarecimentos. A Bahia, com um governo supostamente progressista, se recusa a colocar câmeras nos uniformes dos policiais. Essa é uma política bem-sucedida de redução da criminalidade. Ela protege policial, o cidadão de eventuais excessos. O estado de São Paulo adotou há dois anos. A letalidade despencou. A Bahia há dois anos anuncia que vai fazer uma licitação, um procedimento que não duraria mais do que dois ou três meses. Isso foi usado uma maneira cínica (pelo PT) contra um candidato do Democratas (ACM Neto), que publicamente assumiu uma postura contrária. O candidato do PT se disse ser defensor. Curiosamente (ele foi apoiado por) um governo que teve a oportunidade de implementar e não implementou.
Tribuna – A postura conservadora do governo atual impede que o antigo grupo conservador ligado ao carlismo volte ao poder na Bahia?
Samuel Vida – Acho que há uma dimensão desta natureza sim. No momento em que Sergio Moro anunciou um pacote anticrimes, que aumentava a pena e violava dispositivos constitucionais, foi imediatamente apoiado por Rui Costa. Foi um dos poucos governadores a apoiar. Era um pacote ultraconservador.
Tribuna – Por outro lado, a postura do PT na Bahia não pode abrir espaço para que grupos mais conservadores, até bolsonarista, cheguem ao poder?
Samuel Vida – É evidentemente que sim. Quando o governo militariza mais de 100 escolas, quando essa política é mantida, ela resulta no fortalecimento do imaginário conservador. Fortalece lideranças conversadoras, que têm surgido nos governos do PT. Capitão Alden se viabilizou eleitoralmente distribuindo uma cartilha lombrosiana, irresponsável, bancada pelos governos petistas. Foi uma cartilha impressa e reimpressa, e levou à eleição do Capitão Alden. Foi deputado estadual e hoje é deputado federal. Essa eleição se deve diretamente às políticas inconsequentes dos governos petistas.
Tribuna – Há uma diferença entre o PT baiano e o nacional?
Samuel Vida – O PT é muito complexo nacionalmente. Neste momento, a expressão nacional do PT, que é do início do governo Lula, aponta para uma lógica diferente da do PT baiano. O Ministério da Justiça definiu como prioridade instalar câmeras nos uniformes da PM. Passou a ser um critério de prioridade para o repasse de recursos essa política. Há uma concepção corrente no interior da militância do PT que vê o petismo baiano como uma exceção extravagante e representativa no seu comando de um pensamento conservador e neoliberal.
Tribuna – O senhor já foi filiado ao PT. Como analisa o partido agora?
Samuel Vida – Eu construí o PT. Fui filiado por 33 anos, fui dirigente, assessor parlamentar. Integrei instâncias de bases e até nacionais. Eu conheço o PT. Sei do que estou falando. Construí esse partido e não foi para operar como está operando nessa experiência governamental (da Bahia). Votei, apoiei, fiz campanha para as duas gestões de Jaques Wagner, mesmo com críticas. Mas ainda tentando encontrar internamente para essas críticas, e cheguei a votar na primeira eleição do Rui Costa. Iniciei um processo irreversível de afastamento (do PT) com o episódio da chacina do Cabula.
Tribuna – O senhor está filiado ao PSOL hoje?
Samuel Vida – Estou. Não faço militância. Não integro nenhuma instância dirigente, não participo politicamente do dia a dia do partido. Mas sou filiado.
Tribuna – Por que Salvador não consegue ter um prefeito negro eleito diretamente?
Samuel Vida – Como resultado mais gerado, é a consequência do racismo. A gente tem a cidade mais racista do Brasil. Salvador é o caso mais bem-sucedido de hegemonia de uma minoria branca sobre a esmagadora maioria negra. Nós temos uma cidade com aproximadamente 90% de pessoas negras que é governada e controlada por meia dúzia de pessoas brancas. Isso é revelado de que vivemos um regime racial supremacista intenso e bem-sucedido. Isso envolve, inclusive, a esquerda. Se olharmos a trajetória das candidaturas representadas pela esquerda e da atitude política em relação à cidade, a gente confirma (o racismo), embora não da mesma forma do que o projeto neocarlista.
Tribuna – Como o senhor vê a atuação do movimento negro durante esse período de governo petistas na Bahia?
Samuel Vida – Na sua esmagadora maioria, com algumas exceções, se mostra alinhado, silenciado, subalternizado pelos governistas petistas. Nesse episódio da nomeação do racista, não teve até o momento um pronunciamento de entidades do movimento negro, do campo que participa do governo. Nenhuma sequer. Quem tem criticado é quem não mantém relação com esse governo, tem autonomia. O movimento negro soteropolitano é levado a reboque pelo projeto petista que não contempla, não reconhece a relevância deste setor. Na última eleição, Vilma Reis foi a candidata petista mais votada em Salvador, e na composição do governo ela não foi nem considerada para ocupar cargos. Que contradição.