Nas últimas semanas, o mundo voltou-se aos Estados Unidos da América, para acompanhar as eleições mais polarizadas de todos os tempos naquele país, que se vangloria, muitas vezes com razão, de suas instituições democráticas. Há polarização também nas disputas para alguns assentos no Senado e na Câmara dos Representantes (o equivalente à Câmara dos Deputados, no Brasil), ambas muito equilibradas, mas o foco está, sem dúvidas, na eleição presidencial.
Conforme relembrou o Yahoo Notícias, há alguns meses, com sua queda nas pesquisas de intenção de voto, resultante do desleixo na abordagem da pandemia de COVID-19 e de violência cometida por policiais contra afro-americanos, o presidente Donald Trump tem se queixado do sistema eleitoral do país, que possibilita a votação pelos correios – uma escolha de um número maior de pessoas, em relação a eleições anteriores, devido à pandemia – e tem diferenças no método de contagem, prazo para aceitação e postagem de votos pelo correio, divisão dos famigerados votos do Colégio Eleitoral (em dois estados, Maine e Nebraska), entre outras peculiaridades, entre cada um dos 50 estados, devido ao sistema federalista dos Estados Unidos, que concede grandes prerrogativas legislativas, inclusive eleitorais, aos estados.
O foco de Trump esteve em uma suposta falta de segurança do sistema de votação postal, ainda que, historicamente, o percentual de fraudes nessa modalidade de eleição, ao menos nos Estados Unidos, seja muito baixo. Uma vez que os eleitores do Partido Democrata já tinham, na maior parte do país, um histórico de votação pelos correios maior que seus concidadãos do Partido Republicano e há uma maior tendência, entre os primeiros, a seguir mais rigorosamente as regras de distanciamento social impostas pela pandemia, era natural que fossem numericamente muito mais significativos nessa modalidade de voto, o que foi confirmado pelas viradas da chapa de Joe Biden e Kamala Harris quando da contagem das cédulas recebidas pelo sistema postal em vários battleground states, aqueles estados onde a disputa está sendo mais acirrada.
Perdendo a liderança que havia conquistado no primeiro dia de apurações, a campanha de Trump, que já havia inclusive se declarado vencedor do pleito na madrugada de quarta-feira, dia 04, passou a pressionar a Justiça de diversos estados (Wisconsin, Pennsylvania, Geórgia, Michigan e Arizona) para que houvesse recontagem, descarte de voto supostamente problemáticos, permissão de aproximação da equipe da campanha da equipe de apuração, entre outros.
Houve êxito no caso da possibilidade de aproximação da equipe dos trabalhadores de contagem dos votos, na Pennsylvania, mas isso não mudou a tendência de virada de Biden, que acabou se concretizando na manhã de sexta-feira, dia 06, pouco depois de outra virada na undécima hora, no estado da Georgia.
Foi o estopim para que a campanha de Trump alegasse que a eleição ainda não havia acabado e a ameaça até então velada de levar o resultado da eleição para a Suprema Corte, passou a ser mais real. Mas qual é a possibilidade de a Suprema Corte Estadunidense decidir quem será o presidente dos Estados Unidos da América pelos próximos quatro anos?
A resposta é que essa possibilidade é relativamente pequena. É verdade que, na eleição do ano 2000, a disputa entre a chapa encabeçada por George W. Bush, então governador do estado do Texas e a capitaneada por Al Gore, então vice-presidente do país, foi decidida pela Suprema Corte, já mais de um mês depois da votação. Naquela ocasião, alguns cartões de voto do estado da Flórida apresentaram problemas para perfuração, o que gerou a invalidação de alguns votos e o pedido de recontagem por parte de Gore, pouco atrás de Bush nas apurações. A recontagem era lenta e a chapa de Bush pediu por sua interrupção, que havia se estendido por um prazo alegadamente muito maior que o razoável, o que foi negado pela Suprema Corte da Flórida, em 08 de dezembro.
No dia 12 de dezembro, com base na chamada cláusula sobre proteção igualitária, trazida pela 14ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, a Suprema Corte determinou a interrupção da contagem de votos na Flórida. É interessante notar que a conduta dos candidatos, na época, foi muito diferente da de Trump até o momento. Gore, que já havia concedido a vitória a Bush anteriormente, antes de tomar conhecimento dos problemas de contagem de votos na Flórida e retirar a concessão, voltou a congratular o adversário, com um discurso considerado exemplar.
Importante considerar que, à época, os votos da Florida fizeram que Bush tivesse 271 votos no Colégio Eleitoral, apenas um além dos 270 votos necessários para a vitória. Neste ano, a situação é diferente: são pelo menos quatro os estados onde Biden lidera (até o momento em que escrevo) com margem de menos de 1% dos votos e Trump tenta fazer impugnações: Wisconsin, Pennsylvania, Geórgia e Arizona. Em Michigan, ainda que a diferença seja maior que 2 pontos percentuais, não é impossível que a candidatura republicana procure algum tipo de provimento jurisdicional.
Juntos, esses cinco estados representam 73 dos 306 votos projetados a Biden no Colégio Eleitoral (considerando que Trump vencerá no Alasca e na Carolina do Norte duas contagens atrasadas). São 36 votos que Trump precisaria virar, o número somado de votos de Pennsylvania e Michigan (ou Geórgia), dois dos estados com maior números de votos no Colégio Eleitoral entre os cinco citados, por exemplo, para conseguir a vitória.
Se na Pennsylvania o problema foi a presença de membros da campanha de Trump como observadores na contagem dos votos, presença essa garantida por decisão judicial que as autoridades do estado alegam ter acatado, o problema, nos outros estados, seria de erros na contagem dos votos e ocorrência de supostos votos ilegais, especialmente aqueles enviados pelos correios.
As regras de cada estado variam bastante, mas, em Wisconsin, a diferença atual entre 0,5 e 1% entre os votos das chapas possibilita recontagem, desde que paga pela parte requerente.
Na Pennsylvania, a recontagem pode ser solicitada, com o requerente pagando os custos, sem que seja necessária uma diferença dentro de um certo limite de votos. No momento em que escrevo, Biden tem uma porcentagem 0,55% maior que Trump.
Na Georgia, a pequena diferença entre os candidatos, muito inferior a meio ponto percentual contra Trump, permite recontagem dos votos, que deve ser realizada a partir de 1º de dezembro.
No Arizona, as regras são bastante restritivas e é pouco provável que a diferença entre os candidatos seja num número tão pequeno a ponto de gerar uma recontagem automática – não há possibilidade de recontagem solicitada pelas partes.
Eventuais disputas judiciais envolvendo essas regras são da Justiça de cada estado e não da Justiça Federal dos Estados Unidos. Apenas no caso de uma ofensa a princípio constitucional é possível o recurso à Suprema Corte, como ocorreu no ano 2000.
Aquela decisão trouxe, entretanto, uma série de problemas: os cidadãos estadunidenses têm grande orgulho de sua tradição democrática, que remonta a uma época na qual o resto do mundo estava envolvido com regimes absolutistas, excessivamente aristocráticos ou coloniais. De acordo com essa tradição, a população e não o Poder Judiciário, decide quem será o Presidente.
Muitos consideram que houve, ainda, uma quebra na repartição de poderes, com o chamado sistema de frios e contrapesos (Checks and Balances System, em inglês) entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, e começou a se falar abertamente de cada um dos nove juízes da Suprema corte como sendo conservador ou liberal, republicano ou democrata.
Houve, por outro lado, quem considerasse a decisão uma afronta ao sistema federalista, outro orgulho dos cidadãos dos EUA, uma vez que a decisão quanto à continuidade da recontagem de votos deveria caber aos estados, que decidem sobre seus sistemas eleitorais. E suas regras estão postas desde antes das eleições. Por que questioná-las apenas depois delas, após sofrer uma derrota?
Há, portanto, uma resistência da sociedade estadunidense em ter mais uma decisão judicial determinando seu próprio presidente. Isso inclui também a comunidade jurídica e mesmo o mercado financeiro. Membros respeitados do Partido Republicano, como Mitt Romney, senador por Utah, Pat Toomey, senador pela Pennsylvania e Marco Rubio, senador pela Flórida, adotaram posturas críticas em relação à conduta de Trump durante as apurações, ainda que de forma bastante leve no caso do último. Mesmo Mitch McConnell, líder do Partido Republicano, que detém maioria no Senado, mostrou confiança nas instituições do país, sem citar qualquer fraude.
Assim, ainda que seis dos atuais nove juízes da Suprema Corte sejam considerados conservadores (e indicados por presidentes republicanos), não é provável que decidam automaticamente a favor de quaisquer pedidos formulados pela candidatura de Trump.
Mesmo Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e a recém empossada Amy Coney Barrett, indicados pelo atual ocupante da Casa Branca, são juristas respeitados. O atual presidente da Corte, John Roberts, também conservador, é reconhecidamente contra o julgamento, pela Suprema Corte, de questões que não tenham afrontas a institutos constitucionais em sua formulação, como parece ser o caso de quaisquer recursos que Trump possa apresentar à Corte.
Assim, a não ser que surjam provas de fraude ou erros na contagem de votos ou aconteça uma demora muito além do razoável (a decisão de 2000 considerou razoável prazo pouco maior que um mês) em recontagens (necessárias para Trump e não para Biden, diga-se), é pouco provável que Trump consiga um segundo mandato presidencial fora das urnas. Aliás, mesmo nelas, Trump não venceu quaisquer das duas eleições que disputou no voto popular. Seu governo foi fruto do singular sistema eleitoral de seu país. Mesmo sistema que ele agora critica.
* Pedro H. L. Gryschek é graduado e mestre em Direito Internacional e Comparado pela Universidade de São Paulo – USP e graduando em História pela mesma instituição.