Quase dois terços dos municípios brasileiros (65%) não cumpriram a meta de pré-natal adequado no SUS, que, entre outras coisas, prevê que ao menos 60% das gestantes façam seis consultas, sendo a primeira até a 20ª semana de gravidez.
Mais da metade das cidades (52%) também não atingiu a meta de testar suas gestantes para HIV e sífilis, e 63% não oferecerem atendimento odontológico para 6 em cada 10 grávidas. Além disso, 93% não ofertaram teste citopatológico (Papanicolaou) para 40% das mulheres com idade de 25 a 64 anos, outra meta não alcançada.
Os dados foram extraídos do Sisab (Sistema de Informações em Saúde para a Atenção Básica) e se referem ao último quadrimestre de 2021 (setembro a dezembro). Ao todo são mais de 3.600 municípios que descumpriram as metas estabelecidas pelo programa Previne Brasil, do Ministério da Saúde.
O alerta vem no momento em que o Brasil registra um recorde de mortes maternas, tornando praticamente impossível atingir a meta global da ONU (Organização das Nações Unidas) de reduzir a taxa de mortalidade para 30 casos por 100 mil nascidos vivos até 2030. Dados preliminares mostram que em 2021 a taxa de mortalidade no país foi de 123,4 por 100 mil nascidos vivos –estima-se que 40% destas mortes estejam relacionadas à pandemia de Covid.
Segundo análise da Impulso Gov, organização sem fins lucrativos que atua fomentando uso de dados e tecnologia na gestão pública, se as falhas persistirem, além do prejuízo na vida de pacientes, haverá um impacto no orçamento dos municípios.
O Previne Brasil foi instituído em 2019, mas o seu início foi adiado devido à pandemia. A partir de janeiro deste ano, o Ministério da Saúde passou a calcular uma parte dos repasses federais aos municípios de acordo com o desempenho em sete indicadores, começando no primeiro quadrimestre pelos referentes ao pré-natal e exames de HIV e sífilis em gestantes.
Segundo a Impulso, se as regras estivessem valendo em dezembro de 2021, 36% dos municípios não teriam cumprido nenhuma meta. O volume de recursos recebidos teria caído 44% (de R$ 638,9 milhões para R$ 282,1 milhões).
“Esses resultados de reduções de cobertura nos cuidados de gestantes e crianças no Brasil são alarmantes e requereriam ações imediatas e intensivas por parte do governo federal”, afirma a médica Ligia Giovanella, pesquisadora da Fiocruz e especialista em atenção primária.
Segundo Raphael Câmara, secretário da Atenção Primária do Ministério da Saúde, nenhum município perderá recursos com o Previne Brasil, em relação ao que recebia em 2019. “Se você recebia X já corrigido pela inflação e você fez um péssimo trabalho, vai continua recebendo X. Agora a gente está premiando quem está performando melhor.”
Ele afirma que todos municípios tiveram tempo suficiente para se capacitar nos últimos anos e que receberam apoio do Ministério do Saúde.
“Vamos encerrar o mês com 27 oficinas do Previne Brasil nos 27 estados. Quem quer trabalhar bem está trabalhando bem e será recompensado por isso. Não tem desculpa. Eles tiveram tempo até demais para se adaptarem.”
Ainda segundo Câmara, com as mudanças, a expectativa é que a piora dos indicadores se reverta. “Não dá para a gente continuar pagando recursos de forma plena para quem não está trabalhando bem.”
Para João Abreu, diretor-executivo da Impulso, o baixo cumprimento das metas está relacionado à dificuldade de buscar informações nos diversos sistemas de saúde. Muitos municípios desconhecem quantas grávidas estão com o pré-natal em dia ou quantos hipertensos e diabéticos estão sem acompanhamento.
“O que a gente mais escuta não é que eles precisam de três vezes mais médicos ou enfermeiras para cumprirem as metas. Eles precisam de informação”, conta.
Ele diz que muitas cidades pequenas têm que olhar ficha por ficha de pacientes para buscar dados para políticas. “Em geral, só cidades mais organizadas conseguem navegar pelos sistemas de informação”, explica.
O caso de Braúna, município no interior paulista com cerca de 5.700 habitantes, é um exemplo. Segundo a enfermeira Márcia Oshiro, da Estratégia de Saúde da Família, a cidade já cumpria informalmente as metas do Previne Brasil, mas o maior obstáculo estava na digitação dos dados no sistema do ministério.
“Fazemos há muito tempo busca ativa das gestantes, acompanhamento do pré-natal e puerpério, inclusive com nutricionista. A gente tem muita produção, mas não estava acertando na parte burocrática. Aparecia zerado no sistema do ministério, não era computado o trabalho”, diz Oshiro.
A partir das orientações da Impulso, o município atingiu as metas e algumas das suas experiências viraram modelo para outras cidades.
Sobre a questão das dificuldades de acesso aos sistemas de informação e de digitalização, Câmara diz que o ministério disponibilizou cerca de R$ 500 milhões para informatizar as unidades de saúde.
“No final, sabe quanto foi gasto? Menos de 10%. Por quê? Ou o gestor não quis ou não soube fazer a compra. Claro, fora locais muito específicos, nos rincões, no meio da floresta, onde não há nem cabeamento de internet.”
Já para João Abreu o Previne Brasil criou incentivos para a melhoria dos indicadores da atenção primária, o que é positivo, mas não comunicou de forma efetiva nem criou mecanismos para tirar a política do papel.
O instituto criou uma plataforma gratuita para centralizar dados e análises sobre o Previne Brasil e apresentá-los de maneira simples aos municípios. A iniciativa foi financiada pela Fundação Behring, Instituto Opy de Saúde, Instituto Dynamo, Sanofi e Novo Nordisk e teve apoio institucional da Frente Nacional de Prefeitos. As organizações Umane, Artemísia e Instituto Votorantim também apoiaram a fase inicial do projeto.
Segundo as regras do Previne Brasil, são utilizados três critérios para determinar quanto dinheiro será enviado aos municípios, entre os quais o cumprimento de metas em sete indicadores.
A cada quadrimestre o ministério avalia o desempenho e calcula uma nota de zero a dez para a cidade. Se ela não atinge as metas, a nota cai e ela passa a receber repasse proporcional nos meses seguintes até a próxima avaliação. Se melhorar, receberá mais.
A mudança do modelo é criticada por especialistas de atenção primária. Para Giovanella, o fato de as transferências de recursos estarem atreladas ao número de pessoas cadastradas nas equipes de atenção primária, não mais no número de residentes do município, rompe com o princípio de universalidade do SUS, porque quem não estiver cadastrado não terá acesso aos serviços.
A extinção do apoio financeiro aos municípios voltado ao custeio dos Nafs (Núcleos Ampliados de Saúde da Família), que complementavam as equipes, foi outro retrocesso, segundo a médica.
Para Giovanella, as baixas coberturas de pré-natal e de vacinação infantil apontadas no levantamento foram agravadas pela falta de uma coordenação nacional do Ministério da Saúde durante a pandemia de Covid-19.
Câmara, no entanto, afirma que municípios nunca tiveram tanto recurso para atenção primária, em especial para a saúde materno-infantil, e que muitos deles, por problemas de gestão, não conseguiram gastar a verba emergencial destinada durante a pandemia.
Na avaliação do secretário, as críticas em relação ao Previne Brasil não se justificam. Ele diz que muitos gestores de saúde que antes criticavam o programa agora pedem desculpas.