Com seu estilo showman, o ex-presidente dos EUA Donald Trump é conhecido pela capacidade de eletrizar sua base eleitoral, que o reverencia mesmo depois de sua partida da Casa Branca. Ultimamente, no entanto, ele decidiu contrariar parte de seus apoiadores. E chegou a ser vaiado por quem costumava aplaudi-lo.
Apoiadores do Partido Republicano, ao qual Trump pertence, são apontados por pesquisas populares como um dos grupos mais resistentes à vacinação. Em setembro, um levantamento feito pelo Kaiser Family Foundation a partir dos dados de vacinação por condados americanos mostrou que, naqueles em que Trump teve a maioria dos votos, apenas 39,9% da população havia sido vacinada. Em comparação, as áreas em que o atual presidente democrata Joe Biden venceu tinham uma taxa média de 52,8% de totalmente imunizados.
Apesar disso, Trump fez uma série de declarações públicas nos últimos dias de dezembro de 2021 e no início de janeiro de 2022 em que recomendou os imunizantes, contrariando seus eleitores e seu próprio histórico no tema que polariza a sociedade americana como poucos e pode influenciar as próximas eleições no país.
Mas o que levou Trump a essa guinada em um tema tão sensível, sob o risco de até perder votos numa eventual eleição presidencial em 2024?
Analistas políticos apontam que a explicação pode estar na mudança de opinião dos próprios republicanos sobre vacina, o que levaria Trump a reivindicar os méritos pela produção delas. Há também quem aponte para uma necessidade do ex-presidente de suavizar a própria imagem e reconquistar parte do eleitorado perdido para Biden em 2020 ou mesmo uma preocupação de que a covid-19 esteja matando desproporcionalmente sua base eleitoral, que costuma ser mais antivacina que os democratas.
Trump e a propaganda pró-vacina
Em 21 de dezembro, durante uma entrevista ao ex-âncora da rede conservadora Fox News, Bill O’Reilly, Trump admitiu ter recebido a terceira dose de vacina contra a covid-19, além de afirmar que as vacinas são seguras e que salvaram “dezenas de milhões de pessoas”.
Em uma nova aparição na Fox News, dois dias mais tarde, Trump se disse “muito agradecido” ao atual presidente dos EUA, Joe Biden, a quem ele sequer transmitiu o cargo por considerar, sem provas, que houve fraude na eleição fraudulenta. O aceno do republicano ao sucessor aconteceu porque, em um discurso à nação, Biden reconheceu que “graças à gestão anterior (Trump) e à nossa comunidade científica, os EUA foram um dos primeiros países a terem vacinas”.
“Acho que ele (Biden) fez algo muito bom. Tem de haver um processo de cura neste país, e isso vai ajudar muito”, entusiasmou-se Trump.
Depois, em nova entrevista, dessa vez com a apresentadora conservadora Candace Owens, Trump foi ainda mais enfático. “A vacina é uma das maiores conquistas da humanidade.” Quando Owens, que não se vacinou, tentou lançar dúvidas sobre a segurança e a eficácia dos imunizantes, Trump nem permitiu que ela terminasse as frases. “Ah, não. As vacinas funcionam. Aqueles que estão ficando muito doentes, sendo hospitalizados, são aqueles que não estão vacinados. Se você toma a vacina, você está protegido.”
Nesta quarta, 12/1, em entrevista à rede de televisão OAN, também conservadora, Trump não só defendeu a vacina e afirmou não ter tido “nenhuma reação colateral” como também usou o assunto para atacar colegas do próprio partido Republicano. “Eu tomei a vacina e a dose de reforço. Eu ouço as entrevistas de alguns políticos em que eles são perguntados se tomaram o reforço e ficam ‘é, é…’. A resposta é sim, mas eles não querem dizer porque eles são covardes”, disse o ex-presidente, reconhecendo que o tema é impopular em sua base eleitoral.
Embora não tenha citado nomes, a crítica de Trump se dirigia ao atual governador da Flórida, Ron DeSantis, tido no partido como um possível sucessor de Trump à candidatura presidencial. Ele tem se recusado a dizer se foi vacinado com terceira dose ou não.
O comportamento de Trump não gerou apenas vaias na plateia trumpista presente em uma dessas entrevistas. Houve também revolta entre alguns de seus mais fervorosos seguidores.
Condenado por disseminar teorias da conspiração, o apresentador de rádio de extrema-direita Alex Jones, historicamente simpático a Trump, afirmou em seu programa que o ex-presidente era “patético” em seu apoio a vacinas, além de ser “um completo ignorante” ou “um dos mais mal-intencionados homens a já ter vivido”. E sugeriu a seus ouvintes que seria hora de “deixar Trump pra trás”.
O apresentador de rádio Wayne Allyn Root, trumpista de carteirinha, disse que o ex-presidente estava “certo em tudo” o que disse nas entrevistas citadas acima, exceto em relação às vacinas, tema no qual ele precisaria de uma “intervenção”.
Eleitores trumpistas também expressaram incredulidade ou contrariedade à BBC News Brasil. “Era uma evidente montagem, não creio que ele falou isso de verdade”, afirmou uma republicana de 52 anos, funcionária da cidade de Oklahoma, não vacinada, depois de assistir a uma das entrevistas. Ela não quis ser identificada na reportagem.
Trump financiou vacinas e foi maior influenciador antivacina da pandemia
A nova atitude do republicano sobre vacinas se choca também com seu próprio histórico.
Embora tenha criado a Operação Warp Speed, que injetou mais de US$ 10 bilhões (cerca de R$ 60 bilhões) em pesquisas para a criação de vacinas contra a covid-19 e impulsionou o desenvolvimento dos imunizantes da Johnson e da Moderna, Trump se recusou a tomar vacina publicamente, como seus três antecessores e seu sucessor fizeram.
Além disso, ele levou meses pra admitir que havia sido imunizado ainda quando era presidente, minimizou repetidamente os riscos da covid-19 (“é como um gripe”), e disse, já fora da Presidência, que ele “provavelmente não iria” tomar a dose de reforço, já que estava “em boa forma”. Trump também disseminou informações falsas sobre vacinas e autismo, associação que diversos órgãos de saúde pública dos EUA descartaram categoricamente.
O ex-presidente chegou a ser identificado por pesquisadores como o principal influenciador da combativa comunidade anti-vacina, antes de ser retirado das redes sociais. “Os grupos antivacina funcionam como uma espécie de câmara de eco dos discursos de algumas figuras muito relevantes, e embora Trump tivesse um comportamento ambíguo, ao financiar vacinas e dizer coisas negativas sobre elas ao mesmo tempo, ela era uma figura central pra esse grupo”, afirmou à BBC News Brasil Federico Germani, pesquisador em bioética da Universidade de Zurique (Suíça), autor de estudos sobre a comunidade antivacina.
Por que Trump passou a defender vacinação?
O que explica, portanto, que ele tenha mudado de postura e que, nas últimas semanas, tenha defendido e recomendado as vacinas publicamente ao menos em cinco ocasiões diferentes?
Um consultor político do Partido Republicano, que falou à BBC News Brasil em caráter reservado dada a sensibilidade do tema, afirmou que “Trump jamais foi antivacina pessoalmente, mas como o tema da covid-19 ficou muito politizado e era negativo para Trump quando deixou a Casa Branca, ele optou por não se engajar em incentivos públicos pela vacinação”.
O desempenho de Trump na condução da pandemia era um dos tópicos em que o republicano tinha pior avaliação durante a campanha eleitoral. Não à toa, seu rival, Joe Biden, concorreu com a premissa de encerrar a pandemia no país. Às voltas com uma nova onda recorde de casos e hospitalizações, provocados pela variante ômicron, são os democratas que agora têm a pandemia como uma de suas fragilidades.
“Tudo para Trump é sobre bater no peito e dizer que sob sua liderança os americanos estavam em melhor condição. Então, ele quer resgatar esse legado de ter feito a Operação Warp Speed e ter levado a vacina aos americanos”, avalia o consultor republicano.
Atualmente, Trump trabalha tanto para fazer o Partido Republicano retomar a maioria no Congresso nas eleições de meio de mandato, no fim de 2022, quanto para disputar as eleições presidenciais em 2024.
Nesse esforço, ele estaria também sintonizado com o comportamento da opinião pública e com os recados que vieram das urnas em 2020. Enquanto a resistência às vacinas têm caído, embora lentamente, no país, há uma forte rejeição entre os americanos, em especial entre os republicanos, sobre decisões do governo que obriguem certos grupos profissionais a serem vacinados sob pena de demissão. Segundo uma pesquisa do Instituto YouGov feita em outubro, cerca de 70% dos republicanos são contra as medidas de obrigatoriedade vacinal impostas pelo governo Biden e atualmente em deliberação pela Suprema Corte.
“Acredito que a principal razão por trás da mudança no tom de Trump é que, embora a obrigatoriedade das vacinas permaneça extremamente impopular à direita, o tamanho da porção antivacina muito ardente do Partido Republicano está ficando menor. Muitas pessoas permanecem não vacinadas, mas há menos fervor sobre isso. Trump está sendo cauteloso ao dizer que acha que as vacinas são eficazes e as pessoas devem tomá-las se quiserem, mas não devem ser forçadas a isso. Essa abordagem tem o benefício de suavizar sua imagem para os eleitores suburbanos que não estão na extrema direita, público que ele perdeu para Biden em 2020”, afirma Clayton Allen, diretor de análises políticas sobre os Estados Unidos da Consultoria Eurasia Group.
Embora saiba que esse movimento para atrair o eleitorado moderado possa irritar parte de sua mais extremada base, o cálculo de Trump é o de que, em um ambiente bipartidário (só há dois partidos competitivos na eleição americana), eles não teriam nenhuma outra opção de candidato para substituí-lo. E iriam às urnas apoiá-lo, apesar da não obrigatoriedade do voto, porque rejeitam com muito fervor os democratas e mantêm ainda muitos pontos de convergência com a agenda trumpista.
Allen nota ainda que o comportamento de outros republicanos, como o senador Mitch McConnell ou o governador do Texas Greg Abbott, sugerem que as vacinas têm aumentado de valor entre eleitores. “Todos eles têm dito que a vacina é a melhor defesa contra a pandemia, embora defendam que a decisão de se imunizar é pessoal. Certamente as pesquisas deles indicam que os eleitores têm apreciado mais e mais as vacinas, e que elas podem chegar a 2024 como um recurso visto como muito valioso pelos americanos. Nesse caso, Trump jamais deixaria de dar sua volta da vitória em relação a elas.”
O posicionamento do Partido Republicano contrasta com o de outras direitas pelo mundo inspiradas no trumpismo. O caso mais notório é o do presidente brasileiro Jair Bolsonaro, que segue afirmando que não se vacinou e recentemente criticou a Anvisa, órgão técnico responsável por avaliar e autorizar vacinas no Brasil, ao dizer que seus servidores são “tarados” por vacina.
Eleitores do Partido Republicano estão morrendo mais na pandemia?
Por fim, há quem acredite que os comentários de Trump podem refletir uma preocupação genuína com sua própria saúde e de seus eleitores.
“Sabemos agora que Trump teve um caso bastante grave de covid-19, o que pode ter mudado sua perspectiva sobre a gravidade da doença”, afirmou o cientista político Michael Traugott, especialista em comunicação política da Universidade de Michigan (EUA). Traugott menciona as revelações recentes feitas em livro pelo então chefe de gabinete de Trump Mark Meadows. “Seus níveis de oxigênio caíram para cerca de 86%, um patamar perigosamente baixo para alguém de sua idade”, escreveu Meadows em seu livro “The Chief’s Chief”, lançado em dezembro e sem tradução no Brasil. Em geral, o mínimo de oxigenação sanguínea considerada normal é de 95%.
A resistência à vacina entre o eleitorado republicano, em um país com o maior número absoluto de mortes (quase 850 mil), tem levado economistas e estatísticos a tentar descobrir se a covid-19 tem matado mais esse grupo do que democratas, o que poderia, em última análise, ter impacto no resultado de uma eleição apertada como costuma ocorrer nos EUA.
De acordo com os cálculos do economista da Universidade de Zurique, David Yanagizawa-Drott , com mais de 700 dias desde o início da pandemia, a taxa de mortalidade em condados americanos com maioria republicana é 28% maior do que em condados de maioria democrata. “E a distância (das linhas de mortalidade entre democratas e republicanos) segue aumentando”, notou Yanagizawa-Drott em um post de 3 de janeiro no Twitter.
Procurado pela BBC News Brasil para comentar as implicações eleitorais desses dados, Yanagizawa-Drott preferiu não opinar.
Mas o economista brasileiro Bernardo Guimarães, da Fundação Getulio Vargas (FGV), tentou aprofundar a investigação e calculou que um acúmulo de 250 mil mortes a mais para um lado poderia, por exemplo, implicar na perda de um assento no Congresso para o partido com mais baixas. “É claro que o sistema americano, com o colégio eleitoral, é complexo, há áreas em que uma perda grande de votos para um lado ou para o outro não faria qualquer diferença. Mas é plausível do ponto de vista matemático que as fatalidades da pandemia possam afetar diretamente o resultado ao eliminar massas de eleitores”, afirmou Guimarães à BBC News Brasil.
É possível que as motivações de Trump para a mudança de rumo em relação às vacinas nunca sejam completamente esclarecidas. Mas um dado evidente é o quão seguro ele parece estar de sua nova posição. Diante da plateia de republicanos que o vaiavam, no fim de dezembro, ele fez um gesto impaciente com a mão e afirmou: “Podem parar, podem parar. É só um pequeno grupo de pessoas, bem ali.”