Em quase quatro décadas de vida pública, Gilberto Kassab foi vereador, deputado, prefeito e ministro, mas sempre mostrou gosto mesmo foi pela atividade partidária: exerceu cargos de direção no PFL e no DEM e, em 2011, fundou o PSD, um partido que não seria nem de direita, nem de esquerda e nem de centro. Nessa condição, a sigla cresceu e se tornou uma das maiores legendas do país (veja o quadro). Conhecido por “jogar escondendo o jogo”, Kassab usa e abusa da estratégia de se mover nos bastidores com habilidade, o que fez dele segundo reportagem de , da Veja, um dos mais influentes caciques da política brasileira. Nos últimos dias, no entanto, o dirigente se viu na linha de tiro de setores da direita radical, em uma ofensiva que novamente coloca à prova sua capacidade de se equilibrar em duas canoas e seguir pairando acima das diversas correntes ideológicas.
Os ataques a Kassab e ao PSD foram desferidos por políticos do partido com quem a legenda mais disputa espaço nos últimos tempos: o PL de Jair Bolsonaro. Deputados influentes no ecossistema bolsonarista, como Nikolas Ferreira (PL-MG) e Gustavo Gayer (PL-GO), lideram a ofensiva, pedindo que o eleitor de direita não vote em candidatos do PSD nas eleições deste ano. O motivo para o boicote é claro: pressionar pelo impeachment do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), uma obsessão da direita radical, que estaria tendo dificuldades para avançar em grande parte pela resistência do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco — responsável por dar andamento à ação de cassação —, que é do PSD, e de senadores da sigla, que tem a maior bancada da Casa e cuja maioria não assinou o pedido de abertura de processo contra o magistrado.
Gayer acusou Kassab e sua legenda de serem mais perigosos para o Brasil e a direita do que o PT do presidente Lula da Silva (PT). Nikolas apresentou um “dossiê” no qual acusa o PSD pelo fracasso da CPMI do 8 de Janeiro e pelo indiciamento de civis pela micareta golpista em Brasília. A relatora da comissão foi a senadora Eliziane Gama (PSD-MA), adversária do bolsonarismo. Na quarta (25) o movimento aparentemente ganhou um apoiador: sem citar o boicote, o vereador Carlos Bolsonaro (PL-RJ) compartilhou vídeo de fevereiro no qual seu pai critica Kassab por, segundo o ex-presidente, ter orientado que parlamentares do PSD votassem contra ele na CPMI, a fim de manter “três ministérios no governo Lula”. Não é segredo no mundo político que Bolsonaro nunca confiou em Kassab.
Para além da defesa de uma bandeira cara ao bolsonarismo, a ofensiva dos radicais se dá em meio a uma troca de cotoveladas intensa entre o PSD e o PL por espaço na eleição municipal, onde competem pelo posto de partido com mais prefeituras. O estado de São Paulo, especificamente, é um dos territórios com a temperatura mais elevada, com prefeitos — muitos deles egressos do PL — sendo arregimentados pelo PSD. “O Kassab foi atrás de fazer prefeito em cidadezinha pequena, principalmente no interior de São Paulo, para impressionar o Tarcísio de Freitas”, diz um integrante do PL aliado de Bolsonaro, citando o governador do estado. Em evento recente em Brasília, o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, chegou a falar que vai “meter ferro” em Kassab nas eleições.
O tom foi considerado como de brincadeira, mas o sentimento de revanche é real: após a janela partidária deste ano, o PSD chegou a 300 prefeitos em São Paulo, quase metade dos 645 municípios do estado. Embora filiado ao Republicanos, Tarcísio teve sua costura política feita em grande parte por Kassab. Ao concorrer ao Palácio dos Bandeirantes em 2022, o então ministro da Infraestrutura de Bolsonaro era um “forasteiro” no estado e teve Kassab como guru e patrocinador. O cacique acabou virando secretário de Governo, responsável justamente por articular a gestão com as prefeituras. Interlocutores afirmam que uma das ambições de Kassab é lançar-se a vice de Tarcísio em 2026, o que encontra oposição no ninho de Bolsonaro (caso, é claro, o governador abra mão de disputar o Palácio do Planalto e tente a reeleição).
O jogo bruto proposto pelos radicais bolsonaristas contra o cacique do PSD já encontrou resposta do outro lado do ringue. “Se tem um partido que não pode fazer cobrança ao PSD é o Partido Liberal”, afirma o senador Otto Alencar (PSD-BA). O líder da bancada de quinze senadores disse que os parlamentares estão “liberados” para se posicionar da forma que entenderem sobre o impeachment de Moraes e lembrou que aliados de Bolsonaro, de partidos como União Brasil e PP, também não declararam apoio ao requerimento e nem por isso estão sendo alvos da campanha de boicote. “Desde que o Bolsonaro botou na cabeça a visão incorreta de que bater no Judiciário dá voto, alguns deputados que têm falta de inteligência seguiram ele”, critica Alencar. O senador diz avaliar que a ofensiva terá “efeito zero” nas campanhas municipais. “O Kassab não está nem um pouco preocupado com isso, até porque ele mesmo nunca ordenou a ninguém votar contra ou a favor de impeachment de ninguém, nem da Dilma”, afirma.
Por enquanto, o belicismo bolsonarista não encontra respaldo na legenda como um todo. Nomes como o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), por exemplo, têm evitado se manifestar. Eduardo, pelo contrário, posou para foto com Délcio Sato, candidato a prefeito pelo PSD em Ubatuba, litoral de São Paulo. A imagem, que circulou nas redes sociais e em grupos de WhatsApp do PL, mostrou como a iniciativa de boicotar o PSD é esdrúxula, porque os partidos são aliados em centenas de municípios. O próprio Valdemar Costa Neto, ao menos em público, minimiza a ação da ala mais radical da legenda. “Eles fazem o trabalho que têm que fazer”, diz, em alusão à pressão por assinaturas ao pedido de impeachment. “Mas a prioridade do partido é atrair voto para as candidaturas, muitas delas coligadas com o PSD.”
A ofensiva da direita tentou ainda atingir Kassab em sua imagem, ao marcá-lo como alguém que não é confiável para as forças conservadoras. É verdade que ele hoje tem um leque de opções à sua frente para os próximos anos, à esquerda e à direita. Com o PSD no comando de três ministérios, há quem diga que ele próprio ambicione concorrer como vice de Lula em 2026 — uma disputa que teria de travar principalmente com o MDB, outro partido com muita fluidez ideológica, que também sonha com o posto. A alternativa mais almejada, no entanto, segundo aliados, é lançar-se como vice de Tarcísio na campanha à reeleição em São Paulo.
Falta combinar com o governador, que demonstra nos bastidores ter ambições maiores. O próprio PL de Valdemar deseja tê-lo na sigla para ser o nome do partido ao Palácio do Planalto. Nesse cenário, a possível carta que o PSD poderia colocar na mesa é a de sua própria candidatura presidencial, o que está no radar, por exemplo, do governador do Paraná, Ratinho Junior. Mesmo sendo alvo agora da pressão da direita radical, Kassab mantém a frieza das velhas raposas da política e deve continuar escondendo o jogo até ter certeza de para onde o vento irá soprar em 2026.
Publicado na revista Veja de 27 de setembro de 2024, edição nº 2912