Caso de lutadoras no centro de debate sobre gênero tem como pano de fundo disputa entre Comitê Olímpico e Associação Internacional de Boxe – ligada ao Kremlin e na berlinda por suspeita de manipulação de lutas.
A polêmica sobre gênero aberta após a estreia da boxeadora argelina Imane Khelif, nos Jogos Olímpicos de Paris, escancarou uma rixa histórica entre o Comitê Olímpico Internacional, a mais poderosa instituição no mundo esportivo, e a Associação Internacional de Boxe (IBA), chefiada por um empresário ligado ao Kremlin e que foi justamente banida pelo COI por suspeitas de manipulação de resultados.
Khelif venceu sua oponente italiana em 46 segundos em sua primeira luta nos Jogos. Em 2023, porém, a atleta da Argélia havia sido desqualificada pela IBA no Mundial de Boxe por supostamente reprovar em testes de gênero. O mesmo aconteceu na ocasião com a taiwanesa Lin Yu-Ting, embora a IBA não tenha fornecido informações sobre quais tipos de exames foram realizados.
No entanto, ambas foram autorizadas pelo COI a participar dos Jogos Olímpicos em 2024 e voltam ao ringue na terça-feira (6) para disputar a semifinal da modalidade.
A briga entre as organizações ajuda a explicar o escrutínio público causado pela presença das duas boxeadoras em Paris, expondo uma ruptura de anos e reacendendo um debate sobre justiça, segurança e inclusão no esporte feminino.
Por que o boxe está no centro das atenções?
Inconscientemente pegas no meio da disputa, e sem culpa própria, estão as duas boxeadoras: Imane Khelif, da Argélia, e Lin Yu-ting, de Taiwan, supostamente reprovadas nos testes de gênero da IBA. Essa informação veio a público poucos dias antes da primeira luta de Khelif, na última sexta-feira.
Desde então, tanto Khelif quanto Lin se tornaram vítimas de desinformação nas redes sociais, o que foi considerado “inaceitável” por Andrea Florence, diretora da Sports & Rights Alliance, uma coalizão de grupos de direitos humanos.
“A especulação obsessiva em torno do corpo das mulheres sob o pretexto de ‘fair play’ está enraizada em preconceitos raciais e de gênero”, disse Florence.
Após a onda de desinformação, o pai de Khelif foi a público apresentar a certidão de nascimento da filha e disse que ela nasceu mulher e foi criada como mulher.
Qual é o histórico?
A briga entre o COI e a IBA tem origem nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro de 2016. À época, a IBA se chamava Associação Internacional de Boxe Amador (AIBA) e ainda participava ativamente dos jogos.
Nos Jogos Olímpicos, são as associações internacionais que coordenam as competições esportivas, mas investigações independentes confirmaram que vários juízes sob o guarda-chuva da então AIBA teriam manipulado lutas em 2016. Para piorar, em 2017 a AIBA elegeu como presidente Gafur Rakhimov, um empresário uzbeque descrito pelo Departamento do Tesouro dos EUA como um chefão do crime organizado.
O COI, então, obrigou a associação a estabelecer critérios de transparência, ou correria o risco de perder seu status de federação parceira. Em 2019, o COI acabou rompendo seus laços com a AIBA.
Como medida provisória, o COI assumiu a direção da competição de boxe nos Jogos de Tóquio, em 2021, como também fez em Paris.
No entanto, longe de melhorar sua governança nesse meio tempo, a AIBA, rebatizada agora como IBA, irritou ainda mais o COI quando elegeu Umar Kremlev como presidente em 2020 – ele ainda seria reeleito em 2022.
Kremlev, um empresário russo ligado ao Kremlin, foi quem tornou público os supostos resultados dos testes das boxeadoras Khelif e Lin Yu-Ting.
Desde a chegada de Kremlev, a principal patrocinadora da IBA passou a ser a estatal russa Gazprom. Na semana passada, Kremlev ainda postou um vídeo no X, criticando a cerimônia de abertura dos Jogos de Paris e chamando o presidente do COI de “chefe sodomita”. Sob sua gestão, a IBA também ignorou decisões do COI que determinavam que atletas da Rússia e Belarus competissem representando seus países, o que levou uma série de países ocidentais a boicotar a associação.
Em junho de 2023, o conselho executivo do COI votou para remover o reconhecimento da IBA como a federação internacional de boxe.
“Os boxeadores merecem ser regulados por uma federação internacional com integridade e transparência”, disse Bach na ocasião.
As consequências dessa votação, no entanto, criaram uma disparidade na forma como as competições de boxe são realizadas e – o que parece ser mais crucial – em suas regras. Porque, embora não esteja mais envolvida nos Jogos Olímpicos, a IBA ainda controla os campeonatos mundiais, onde a controvérsia eclodiu.
“Não acho que nenhuma dessas organizações seja um modelo a ser considerado quando se trata de boxe”, disse Joanna Harper, autora do livro Sporting Gender, em entrevista à DW.
No entanto, Harper advertiu que pessoas tentam obter capital político com a situação. “Há algumas pessoas que estão tentando criar um caso político de que as pessoas que não se encaixam facilmente na divisão homem-mulher são homens, disfarçados de mulheres, tentando arruinar os esportes femininos”.
Quando as boxeadoras foram reprovadas?
Khelif e Lin foram desqualificadas do campeonato mundial feminino de 2023 em Nova Déli. A IBA decidiu que a dupla não era elegível para competir depois de ser submetida a testes de gênero, para defender “a integridade da competição”. A argelina havia vencido a boxeadora russa Azalia Amineva nas quartas de final do campeonato e foi desqualificada antes da última luta, quando disputaria a medalha de ouro.
Até o momento, a IBA não detalhou que tipo de teste foi aplicado nas atletas.
Na época, Kremlev se limitou a dizer à mídia estatal russa que testes de DNA das duas boxeadoras “provaram que elas têm cromossomos XY” e que elas “tentaram enganar seus colegas e fingiram ser mulheres”. Com a desclassificação de Khelif, a russa Azalia Amineva teve a derrota (a primeira de sua carreira) apagada dos seus registros.
A notícia da reprovação nos testes de gênero passou praticamente despercebida em 2023, mas foi levada ao conhecimento geral poucos dias antes da primeira luta olímpica de Khelif em Paris, na quinta-feira.
Normalmente mulheres têm dois cromossomos X, enquanto homens têm um X e um Y. Há, porém, casos raros de mulheres com características biológicas femininas que mesmo assim apresentam um cromossomo Y. Essa diferença no desenvolvimento sexual (DDS) é chamada de intersexo, o que faz com que a mulher possa apresentar características típicas dos homens, incluindo a forma como respondem à testosterona. Contudo, elas as boxeadoras não confirmaram que teriam esta condição.
Em nota publicada na última quarta-feira, a IBA apenas informou que não aplicou testes de testosterona nas atletas, mas sim um “teste separado e reconhecido”, cujos detalhes são confidenciais. A associação também alega que a lutadora taiwanesa não recorreu da decisão. Já Khelif teria tentado recorrer de sua desqualificação, mas abandonou a queixa na sequência.
Como o COI respondeu à IBA?
O COI enfatizou que o caso não se trata de atletas transgêneros e procurou minar a credibilidade do que chamou de testes “arbitrários” da IBA, sugerindo até mesmo que eles tinham algo a ver com “não gostar dos resultados que haviam acontecido” no Mundial de Boxe de 2023, aparentemente referindo-se à luta de Khelif contra a russa Amineva.
O diretor de comunicação do COI, Mark Adams, explicou que o COI decidiu ignorar porque, segundo ele, “os testes não são legítimos”. “Não temos conhecimento de quais foram os testes, eles foram montados da noite para o dia”, disse.
Na quinta-feira, Adams já havia dito que “o teste de testosterona não é um teste perfeito.” “Muitas mulheres podem ter testosterona em níveis masculinos e ainda ser mulheres, e competir como mulheres”, afirmou.
Para aumentar a confusão, porém, o COI escreveu em um portal que Khelif tinha “níveis elevados de testosterona”. Essa informação foi posteriormente excluída, mas o COI reconheceu que ela havia sido tomada como um “fato”. O Comitê também precisou emitir uma nota de correção, por ter inicialmente afirmado que este não seria um caso de atleta intersexo, alterando a versão posteriormente para “atleta transgênero”.
Embora ainda não esteja claro qual é exatamente a condição médica das atletas, a autora do livro Sporting Gender, Joanna Harper, disse que as duas “provavelmente” têm uma diferença de desenvolvimento sexual (DDS) e podem apresentar características típicas dos homens.
Por que elas podem competir na categoria feminina?
O COI diz que a competição de boxe em Paris está sendo conduzida exatamente sob as mesmas regras que as do Rio e de Tóquio, onde o sexo listado no passaporte da atleta é o critério principal.
Perguntado pela DW se o COI, sabendo da situação com os testes de gênero, poderia ter evitado que o furor ocorresse antes das Olimpíadas, Adams disse que uma pergunta diferente precisava ser feita.
“Esses atletas são mulheres? A resposta é sim, de acordo com a elegibilidade, de acordo com seus passaportes, de acordo com seu histórico”, disse ele.
Essas observações foram repetidas pelo presidente do COI, Thomas Bach, no último sábado.
“Nunca houve qualquer dúvida sobre o fato de elas serem mulheres. Alguns querem se apropriar da definição de quem é uma mulher. Não participaremos de uma guerra cultural com motivação política”, completou
No entanto, para a autora Joanna Harper, a política do COI não leva em conta a questão “significativa” da segurança.
“Não está claro com os atletas com DDS o quanto são mais fortes em uma base de peso”, disse ela. “E no mundo do boxe, a questão da segurança se resume à força peso por peso, porque você está juntando pessoas do mesmo tamanho. Eu diria que, se elas não tiveram supressão de testosterona, eu ficaria preocupada.”
O que acontecerá em seguida?
No curto prazo, as duas boxeadoras continuarão em suas respectivas categorias na competição. “Não se pode simplesmente sair desqualificando alguém e estabelecer as regras depois”, acrescentou Christian Klaue, outro porta-voz do COI, na sexta-feira.
A longo prazo, o COI pode rever sua política geral de elegibilidade de gênero, embora Harper reconheça que “não há uma solução única que deixe todos felizes”.
Boris van der Vorst, presidente da Associação Mundial de Boxe (WBA), outra federação que está se posicionando para assumir a função de órgão global do esporte, disse à Associated Press que sua organização sempre colocaria “a segurança dos atletas em primeiro lugar” quando se tratasse de desenvolver políticas, mas acrescentou que “quando as pessoas são elegíveis para competir, temos que respeitá-las”.
Enquanto isso, os críticos da participação de Khelif e Lin na categoria feminina pediram que as boxeadoras fossem submetidas a testes de gênero, uma prática que foi interrompida nas Olimpíadas antes dos Jogos de Sydney em 2000.
Minky Worden, da Human Rights Watch, apoia o COI nessa questão. “Os chamados ‘testes de gênero’ de mulheres atletas e atletas olímpicas não são científicos, são degradantes, desacreditados, abusivos e nunca acontecem com homens”, disse ela.