Ainda em meio aos desdobramentos políticos do quebra-quebra golpista de 8 de janeiro, em grande parte insuflado e organizado via redes sociais e aplicativos de mensagens, veio de um dos prédios invadidos e depredados pela horda de vândalos um passo importante para, enfim, colocar alguma ordem no caótico ambiente da internet no Brasil. Após quase três anos dormitando nas gavetas da Câmara, o projeto de lei 2 630/2020, que ficou conhecido comoPL das Fake News, ressuscitou. Ele foi puxado pelas mãos do governo Lula, mas sobretudo de Arthur Lira (PP-AL), o presidente da Casa, que decidiu colocar em votação o pedido de urgência para a tramitação da proposta, em meio ao choro e ranger de dentes que tomou conta de parte do Parlamento. A medida foi aprovada por um placar apertado (238 votos a 192), o que mostra o grau de divergência em torno da questão — em boa parte, ideológica — e o desafio que a proposta ainda terá de vencer no Congresso. O texto final será apreciado na próxima terça (2), informa , , na reportagem da Veja.
O burburinho é até compreensível por se tratar de um tema complexo e cuja regulação demanda cuidados importantes. Mas ter havido algum avanço nessa direção é um bom sinal, sobretudo na esteira de acontecimentos inaceitáveis, como ataques à democracia, desinformação eleitoral, propagação de conteúdos falsos, ataques a escolas e avanço dos discursos de ódio. E foi essa espiral, alavancada pela mudança de governo, que transformou o clima na Câmara, onde a urgência ao mesmo projeto foi rejeitada em 2022.
A via-crúcis do PL das Fake News começou na outra Casa do Congresso no já longínquo 2020. Apresentado pelo senador Alessandro Vieira (PSDB-SE) em maio daquele ano, ele foi aprovado dois meses depois, mas debaixo de muito barulho. O relatório final, feito por Ângelo Coronel (PSD-BA), passou por 44 votos a 32 — apenas na semana anterior à votação, três versões do documento foram apresentadas. Na Câmara, o projeto foi distribuído à relatoria do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), defensor de mudanças no texto aprovado no Senado — se elas ocorrerem, o que é muito provável, a proposta terá de ser submetida novamente aos senadores.
Em meio ao governo Jair Bolsonaro, contrário à regulação, o projeto encontrou obstáculos para avançar. O quadro mudou sob Lula, que já nas primeiras horas após a baderna golpista anunciava o aumento da pressão sobre as companhias de tecnologia como Google, Twitter, TikTok, Meta (Facebook, WhatsApp e Instagram) e Telegram, entre outras, que mobilizam milhões na internet. “Mudou o viés do governo. Temos também um novo parâmetro, a Lei de Serviços Digitais (Digital Services Act) da União Europeia, além de acontecimentos como o 8 de Janeiro e a onda de violência nas escolas, que estimulam medidas para um ambiente mais saudável na internet”, diz Silva. Também contribuíram os apoios do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral. Na última terça, enquanto o debate fervilhava, o ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE, foi ao Congresso entregar sugestões ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), como propostas para responsabilizar provedores de redes sociais que não retirarem imediatamente do ar conteúdos e contas que divulguem conteúdo falso sobre eleição, que incitem a violência contra o Estado para impedir “o exercício dos poderes constitucionais” ou contenham discursos de ódio ou promoção de racismo, homofobia e nazismo.
Apesar de tanto apoio de peso, a resistência na Câmara foi suficiente para produzir muito barulho durante a semana. O relatório final de Orlando Silva foi anunciado para segunda-feira, depois mudou para terça, ficou para quarta e só foi apresentado na quinta. Quando a urgência foi aprovada, ninguém sabia cravar o que teria de fato no projeto, cuja votação está prevista para terça. A coisa só avançou porque Arthur Lira fez aquilo que mais sabe: conduzir o processo de votação para conseguir o que pretende. Há um ano, na gestão Bolsonaro, de quem era aliado, Lira colheu uma de suas raras derrotas ao tentar colocar o tema em votação. Na ocasião, apesar do placar favorável (249 a 207), não conseguiu, por oito votos, a maioria absoluta que previa o regime de “urgência urgentíssima” que ele havia tentado — e que permitiria votar o projeto na mesma sessão. Agora, mudou de estratégia. Invocou o regime de “urgência”, que exige maioria simples e permite a votação na sessão seguinte, e venceu.
O resultado enterrou a pretensão de parte da oposição de ver o tema discutido por mais tempo em uma comissão especial. “Essa matéria tem de ser votada, doa a quem doer. Pontos podem ser discutidos desde que não comprometam a ideia central, de punir quem se vale da rede de fake news”, diz José Guimarães (PT-CE), líder do governo. Negociações sobre o texto seguirão até a votação. Em uma reunião de líderes na terça 25, ficaram claros alguns pontos que serão “cavalos de batalha” da oposição. Um deles é a criação de uma “entidade autônoma de supervisão”, uma proposta defendida pelo governo e que prevê um órgão para regulamentar a lei, fiscalizar a sua observância, instaurar processos administrativos e aplicar sanções. “Isso é uma temeridade, seja nesse governo ou em um de extrema direita”, diz o deputado Mendonça Filho (União-PE), autor de um texto alternativo ao de Orlando Silva. “Deve haver uma agência reguladora para um meio tão impactante quanto o digital, com isenção, assim como há agências de telefonia, energia, água, cinema. Uma lei sem fiscalização não funciona”, pondera o deputado Felipe Carreras (PSB-PE), líder do maior bloco da Câmara, com 173 deputados, e aliado muito próximo a Lira.
Outro ponto crítico é o chamado “dever de cuidado”, por meio do qual os provedores devem atuar, quando notificados, a respeito de conteúdos potencialmente ilegais. Na ótica da oposição, o dispositivo levaria à censura prévia. “Todo mundo sente que é razoável uma regulamentação, uma moderação, mas esse texto apresentado não será aprovado”, diz o presidente da Frente Parlamentar Digital, Lafayette de Andrada (Republicanos-MG). A controversa tese da oposição de que a luta pela liberdade de expressão é o carro-chefe do discurso oposicionista. Em razão disso, a discussão virou também uma guerra ideológica, como ocorreu com a CPMI das Fake News. Instalada em 2019, a comissão provocou muito barulho e virou palco de guerra para — e contra — o emergente bolsonarismo, mas suspendeu os debates em 2020, pela pandemia, e terminou de forma melancólica, sem ter conseguido ao menos votar seu relatório.
Mesmo com toda a gritaria que desperta na Câmara, o PL das Fake News é elogiado por especialistas. “A lei é boa, rigorosa, não impede a liberdade de pensamento. Mas defendo a realização de mais audiências com os representantes das redes para saber se eles têm condições de se adequar às leis”, afirma Clever Vasconcelos, promotor de Justiça e professor de direito constitucional e eleitoral do Ibmec/SP. Já a diretora do instituto InternetLab, Fernanda Martins, vê a questão da imunidade parlamentar estendida para os perfis dos políticos na internet como um ponto fora da curva. “Imagine o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) fazendo outra performance transfóbica, desta vez nas redes sociais. Esse conteúdo não será retirado do ar por causa da imunidade parlamentar, mas o que acontecerá com quem não tiver imunidade e compartilhar esses conteúdos? Estaremos em um campo minado”, questiona.
As big techs, claro, não estão assistindo de camarote ao debate. Contrárias desde o início ao projeto, elas têm externado isso de forma pública, nos bastidores e por meio de emissários travestidos de entidades representativas. O Google voltou à carga recentemente com uma campanha publicitária contra a proposta. Segundo a companhia, “uma legislação apressada pode piorar o funcionamento da internet, cercear direitos fundamentais, favorecer determinados grupos ou setores da economia e criar mecanismos que coloquem em risco discursos legítimos e a liberdade de expressão”. Na terça, em almoço com a Frente Parlamentar de Empreendedorismo, o diretor de políticas públicas do TikTok, Fernando Gallo, foi direto. “Com muita humildade, queremos pedir que as senhoras e os senhores parlamentares rejeitem a urgência desse PL e apoiem a criação de uma comissão especial destinada a debater o tema”, disse. Até o polêmico empresário Elon Musk (veja a reportagem na pág. 58), dono do Twitter, entrou na discussão, colocando um ponto de exclamação em comentário de Nikolas Ferreira, segundo o qual o Brasil está prestes a expulsar as plataformas de mídia social do país com o PL das Fake News. Somente Musk seria capaz de curtir tamanho exagero.
A pretexto de defender a liberdade da expressão, o que o discurso das big techs evita debater é a responsabilidade delas na proliferação e na incitação a crimes. Tais companhias possuem um modelo de negócios que lucra veiculando os conteúdos e têm mecanismos capazes de impulsionar a distribuição deles, potencializando esses ganhos. Mesmo assim, não querem arcar com os custos de publicar discursos de ódio ou fake news, argumentando que apenas distribuem o conteúdo. Pelo mesmo raciocínio tortuoso, traficantes poderiam argumentar a mesma coisa. Além disso, o Brasil não é o primeiro nem será o último país a regular e estabelecer regras mínimas para suas redes sociais. Nações como Índia e Estados Unidos também debatem o assunto.
Por aqui, os pilares do projeto que irá a votação foram baseados em dois arcabouços legais europeus. Um é o da Alemanha, um dos primeiros países a legislar sobre o tema, em 2017. Chamada de Network Enforcement Act (NetzDG), a lei prevê, entre outras medidas, que as plataformas sejam ágeis ao receber uma queixa de conteúdo proibido. A elas também são imputadas obrigações de transparência, como a geração de relatórios. “Essa lei criou um procedimento simplificado extrajudicial, que gera conhecimento para o juiz decidir”, afirma Ricardo Campos, diretor do Legal Grounds Institute. A legislação alemã influenciou o Digital Services Act, em vigor na União Europeia desde novembro. “Se as empresas podem seguir as regras lá, podem seguir aqui também”, diz João Brant, secretário de Políticas Digitais da gestão Lula.
A necessidade de novas regras no Brasil já se faz sentir há tempos. Sem um ordenamento legal capaz de criar as regras de convivência e governança para as redes sociais e seus usuários, a regulação vinha ocorrendo, de certa forma, pelo Judiciário. O TSE promoveu intervenções bastante significativas na eleição de 2022 — embora não tenha conseguido debelar o uso de fake news, a situação foi bem melhor que a de 2018. Também contribuiu o STF, onde tramitam dois inquéritos comandados pelo ministro Alexandre de Moraes, sobre fake news e atuação de milícias digitais. Na quarta, a Justiça do Espírito Santo mandou suspender e multou o aplicativo Telegram por não fornecer dados relativos a grupos nazistas que se reúnem na plataforma.
A pregação de que criar regras ameaça a liberdade de expressão não é o único argumento questionável das companhias. Também não faz sentido os pedidos por mais tempo para discussão, uma vez que o projeto tramita desde 2020 no Congresso e as companhias, transnacionais que são, já travam esse debate há muito tempo em outros países. Os acontecimentos recentes tornam mais urgente ainda priorizar a questão. “Passamos por problemas nas eleições, houve o 8 de Janeiro, ataques e ameaças nas escolas. Se não trabalharmos alguma forma de supervisão, vai haver novas crises”, alerta Estela Aranha, coordenadora da área de direitos digitais do Ministério da Justiça. Ou seja, o debate não é simples, mas precisa ser feito. Chegou a hora de impor limites e não dá mais para adiar uma discussão tão essencial nos dias atuais.
Publicado na revista Veja de 3 de maio de 2023, edição nº 2839