Morto em 2006, ele segue bem visto por mais de um terço dos chilenos – e sua figura reaparece como “imaginação nostálgica” em momentos de crise, como alta da criminalidade ou agitação social.
O caso chileno é singular: o país pôs fim a uma ditadura de 17 anos por meio de um plebiscito. Augusto Pinochet deixou o poder em 1990, mas manteve um lugar-chave na vida política. Não apenas como comandante em chefe do exército e senador, mas como figura e símbolo para setores da direita.
Cinquenta anos após o golpe, e apesar das violações de direitos humanos que deixaram mais de 3 mil mortos e desaparecidos, Pinochet ainda goza de razoável aprovação no Chile: 36% consideram seu golpe militar legítimo, de acordo com uma pesquisa feita pelo CERC-Mori. Apenas em julho deste ano, em uma sessão tensa e com placar de votação apertado, a Câmara dos Deputados aprovou uma moção para que Pinochet não figure mais nos registros da Biblioteca do Congresso como “presidente”.
Guardadas as devidas diferenças, esse cenário contrasta com a situação na Alemanha pós-nazista ou a de algumas ditaduras latino-americanas onde houve maior consenso na rejeição de ditadores, como na Argentina. Mas a história chilena tem paralelos com a brasileira, onde o fim da ditadura também foi parcialmente conduzido pelos militares e sem a responsabilização dos ditadores.
Especialistas consultados pela DW identificam vários fatores que constituíram esse panorama no Chile.
“Na Alemanha ou em outras ditaduras que foram derrotadas militarmente, como na Itália e no Japão, é mais difícil que ressurja um setor da população que a reivindique”, diz o historiador Manuel Gárate. “Na Alemanha, embora ainda houvesse partidários do nazismo, com o passar do tempo houve uma desnazificação e a sociedade fez uma mudança em direção à democracia e à valorização dos direitos humanos”, diz o acadêmico do Instituto de História da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Chile.
Na opinião do cientista político Veit Straßner, “ao contrário da Argentina, onde a ditadura deixou o poder em meio a uma derrota moral, política e econômica, a transição no Chile foi liderada pelos militares com suas próprias regras e eles seguiram nas esferas de poder. Eles deixaram o poder sem perdê-lo.”
Straßner também observa que “a ditadura chilena foi bem-sucedida em mudar as regras do jogo, e a Constituição de 1980 ainda está em vigor. Os militares impuseram uma visão neoliberal e mudaram o país política e economicamente. Eles falharam na distribuição de riqueza, mas em termos macroeconômicos foram mais bem-sucedidos do que em ditaduras de outros países”.
“Na Argentina, a ditadura perdeu uma guerra com a Inglaterra e ficou desacreditada. No Chile, a única coisa que aconteceu foi que ela perdeu um plebiscito, e por uma margem que não era tão alta. Nos últimos 30 anos, quando a questão dos direitos humanos, as contas do Banco Riggs e o enriquecimento ilícito de Pinochet se tornaram conhecidos, ele perdeu força na arena pública, mas muitas pessoas continuaram a apoiá-lo em silêncio”, diz Gárate.
Pinochet morreu sem enfrentar a Justiça
Pinochet perdeu o plebiscito de 1988, mas não foi deslegitimado. Quase metade da população (44%) era a favor de que ele permanecesse no poder por mais oito anos. “Não me surpreende que essa polarização continue até hoje. As famílias transmitem certas narrativas do que aconteceu durante o governo de Allende e o regime militar, que são visões opostas, nas quais não há muito espaço para nuances”, diz Straßner, que fez doutorado em políticas de verdade, justiça e memória.
A socióloga chilena Oriana Bernasconi aponta para a questão judicial: “Apesar de haver mais de 400 julgamentos de figuras de seu entorno, que somam mais de mil anos de sentenças, Pinochet morreu sem enfrentar a Justiça no Chile.”
Na opinião da professora do Departamento de Sociologia e pesquisadora do Centro de Direitos Humanos da Universidade Alberto Hurtado (UAH), “a sociedade também não teve essa instância e o espaço pedagógico para educar as novas gerações, como o Julgamento das Juntas na Argentina. Pinochet não enfrentou os relatos dos crimes nem sua responsabilidade [colocada] por uma sentença. Isso afeta a maneira como processamos sua figura. Se isso tivesse acontecido, seria muito mais difícil que ainda houvesse vozes que o aprovassem”.
Relativização em tempos de crise
O fenômeno é cíclico e também se insere no atual ressurgimento da extrema direita em todo o mundo. Diante de uma crise, como o aumento da criminalidade ou os protestos de massa de 2019 – que ficaram conhecidos como estallido social –, a figura do ditador, que morreu há quase 17 anos, reaparece.
“Muitos disseram que com Pinochet isso não teria acontecido. Em situações de crise, o que aconteceu durante o regime militar é reinterpretado, e grande parte da sociedade chilena está disposta, pelo menos, a relativizar as violações dos direitos humanos”, alerta Straßner. Ganha força o discurso de que essa violações são o custo pago para ter progresso, ou que as vítimas merecem porque “devem ter feito alguma coisa”.
“Busca-se uma figura do passado para marcar uma posição política no presente. As vozes que estavam silentes ganham força e hoje sentem que têm uma justificativa para dizer que Pinochet foi uma figura importante no Estado chileno, ou mesmo um estadista”, diz Gárate.
Soma-se a isso a memória construída pela ditadura, que persiste até hoje, diz Bernasconi: “Foram 17 longos anos em que Pinochet teve todos os aparatos do Estado cooptados para reproduzir incansavelmente sua propaganda, incluindo montagens, discurso golpista e a ideia da guerra contra o câncer marxista”.
O mito Pinochet
“Pinochet em si, como pessoa, não é tão importante, mas sim como um símbolo. Sua figura é simplesmente uma imaginação nostálgica, que para um setor representa a ordem ou a luta contra o crime”, diz Gárate.
“Tem algo simbólico que vai além da pessoa. Representa diferentes visões da economia e da construção de uma sociedade”, concorda Straßner. “Para alguns, ele representa estabilidade econômica e tempos melhores, embora hoje saibamos que os melhores números de crescimento econômico foram nos primeiros anos da transição democrática, quando a Concertación estava no poder”, diz Gárate.
A história também desmistificou a lenda de que ele é o único ditador que deixou o poder democraticamente e que, além disso, não enriqueceu. “Esses dois mitos caíram por terra: sabemos que em alguns momentos ele não quis reconhecer a vitória do NÃO [no plebiscito] e que ele e sua família enriqueceram ilicitamente”, diz o historiador da PUC.
A imagem de Pinochet é incômoda e “está contaminada pela traição a Allende, pela forma como se deu o golpe de Estado, pelas violações dos direitos humanos, pelo exílio, pelos presos desaparecidos e pelo enriquecimento ilícito. Para um setor da sociedade, Pinochet significa ‘ele nos salvou do comunismo’ e ‘ele restaurou a ordem’, mas consideram sua biografia muito difícil de defender”, diz Gárate.
A direita, que colaborou com a ditadura e se beneficiou dela, “continua hesitante em relação a Pinochet e não construiu uma narrativa”, além de resgatar as supostas “partes boas” daquele período, afirma a socióloga da UAH.
“Há um grupo de civis que, em vez de serem leais a Pinochet, são leais às realizações do regime, e por isso estão interessados em preservar a Constituição e a ideia do modelo econômico”, diz Gárate. Nesse contexto, quando ainda existem aqueles que justificam o golpe e as violações dos direitos humanos como um custo aceitável, uma condenação pública unânime de Pinochet ainda parece muito distante.