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sexta-feira 4 de outubro de 2024 às 09:50h

Pesquisa inédita mostra distância entre discurso da esquerda e anseios do eleitor

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Desde a redemocratização, nenhuma força política se mostrou tão competitiva e resiliente no Brasil quanto o Partido dos Trabalhadores. Capitaneado por Lula, o PT foi abrindo, janela por janela, sua proeminência no cenário político, firmando-se como a legenda que se construiu do zero e foi capaz de vencer quatro das cinco eleições presidenciais que disputou neste século XXI. Um dos fatores que mais pesou para esse avanço foi a capacidade do presidente, metalúrgico de formação, de compreender os anseios e aspirações das camadas menos favorecidas da população. Uma vez no governo, ele atacou a desigualdade social e promoveu milhões de pessoas que viviam na miséria para a classe C, definida atualmente como as famílias com renda entre 2 600 e 4 700 reais — vultosos 53% do eleitorado. E esta seguiu sendo a receita do partido para, nas eleições de domingo 6, tentar conquistar prefeituras nos 5 568 municípios do país.

arte crise esquerda

Pesquisas e estudos, no entanto, sinalizam uma nova realidade: o mundo girou mais rapidamente do que a capacidade da esquerda de acompanhá-lo e o movimento parece afastar o terceiro governo Lula de seu principal eleitor. Um levantamento do Instituto Locomotiva, realizado com exclusividade para VEJA ouvindo integrantes da classe C em todo o Brasil, mostra que o grupo atravessa uma profunda transformação, na qual ascende a ideia de subir na vida pela via do empreendedorismo, vicejam os valores tradicionais e cresce a preocupação com a expansão da violência (veja os quadros ao longo da reportagem) — tudo má notícia para o PT que, com uma agenda na qual o Estado se faz fortemente presente e abrange pautas identitárias, se desconecta daqueles com quem, sob a perspectiva histórica, sempre tão bem conversou.

É fato que as disputas municipais guardam características próprias, mais relacionadas à vida cotidiana da população, mas o posicionamento da classe C neste pleito será crucial para ditar a correlação das forças políticas daqui por diante. “Dado seu tamanho e importância, esse segmento está no centro da disputa entre esquerda e direita”, explica Renato Meirelles, presidente do Locomotiva. Nesse sentido, apelos para o bolso, como a promessa de churrasco com picanha na mesa e cerveja na geladeira, vastamente repisada por Lula, não exercem o mesmo fascínio de antes. “A crise econômica já dura dez anos e o eleitor passou a dar maior relevância a outras questões”, diz Meirelles.

Valores conservadores, com os quais os representantes dessa fatia menos favorecida já se identificavam, agora pesam mais na hora de escolher o candidato, e a pauta de costumes entrou de vez, e de forma decisiva, no debate. Para a maioria dos entrevistados — 55% — a família tradicional, formada por um casal heterossexual e filhos, precisa ser preservada, em detrimento dos demais arranjos. No que diz respeito à educação da prole, 58% dizem que a religião tem papel relevante, e 57% não querem que seus filhos recebam orientação sexual nas escolas. São preferências que nunca deixaram de circular na classe C — e em todas as outras, diga-se —, mas que não afetavam seu apoio à esquerda, a Lula e a quem ele indicasse.

MERITOCRACIA NA VEIA - Ex-eleitor do PT, Elias da Silva, 52, aposta na livre iniciativa para crescer. “Programa social não pode ser moeda de troca por voto”, diz.
MERITOCRACIA NA VEIA – Ex-eleitor do PT, Elias da Silva, 52, aposta na livre iniciativa para crescer. “Programa social não pode ser moeda de troca por voto”, diz. (Paulo Mumia/VEJA)

No cenário de hoje, isso mudou. “Acho que o governo não deve se meter no terreno dos costumes, no qual existe ampla legislação assegurando direitos dos cidadãos”, pondera o técnico de edificações Marcelo Barros, 43 anos, morador da Zona Norte do Rio de Janeiro, que votou em Lula em 2002 e 2006, mas se desiludiu depois dos escândalos de corrupção (mais uma variável a minar a confiança no PT, sobretudo nas grandes cidades). Nas últimas duas eleições, ele optou por Jair Bolsonaro. “Os petistas fazem qualquer coisa para se manter no poder”, critica.

Mudanças tão acentuadas de posição ideológica estão diretamente relacionadas ao processo de intensa polarização política, no qual as bandeiras conservadoras da direita mobilizam multidões. Essa radicalização é apontada como uma das principais causas da queda da popularidade de Lula em um ano de bons resultados na economia. No segundo trimestre, o PIB cresceu 1,4%, superando as expectativas, o desemprego está em 6,6%, patamar mais baixo da série histórica, e a inflação há quatro meses perde força. Mesmo assim, a aprovação do governo recuou para 32%, praticamente empatada com a desaprovação, de 31%. “As pessoas até sentem a melhora no dia a dia, mas o quadro é de uma divisão muito intensa”, ressalta o senador Humberto Costa (PT-PE), coordenador do grupo de trabalho eleitoral do PT. “Não dá mais para imaginar que o governo vai chegar a 80% de popularidade, como em gestões anteriores.”

A constatação de que os tempos de prestígio recorde ficaram para trás fez com que a meta para esta eleição fosse a de simplesmente melhorar o desempenho de quatro anos atrás, quando os escândalos de corrupção revelados na Operação Lava-Jato impuseram ao PT o pior resultado desde 1996, com a vitória em apenas 182 cidades. Gato escaldado, o partido não quis saber de correr risco agora e, pragmaticamente, abriu mão de candidaturas próprias em favor de aliados mais bem cotados. Alianças com outras forças políticas foram costuradas em metade das capitais, como em Recife, com João Campos (PSB), e Rio de Janeiro, com Eduardo Paes (PSD). Em uma manobra mais arriscada, Lula bancou em São Paulo uma composição com Guilherme Boulos (PSOL), mas também aí a classe C modificada atrapalhou os planos de colar no candidato seu prestígio para empurrá-lo para cima: integrante de movimentos radicais em prol de moradia para sem-teto, Boulos atravessou a campanha contando com apenas pouco mais de 20% dos eleitores que ganham até dois salários mínimos, o que tentou o tempo todo reverter.

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Um dos muros invisíveis que hoje dificulta a influência da esquerda no que já foi o seu pedaço é a avassaladora expansão das igrejas evangélicas, que, a cada dia, adiciona dezessete novos templos em solo nacional. O contingente de fiéis das diferentes denominações já corresponde a quase um terço da população e é formado, em sua imensa maioria, por mulheres negras, com renda de até 3 000 reais. “São pessoas que continuam a depender de serviços públicos e não acham que a vida melhorou suficientemente nos últimos anos”, avalia a cientista social Lívia Reis, do Instituto de Estudos da Religião, que faz pesquisas regulares nesse segmento. A memória de programas sociais de governos petistas que elevaram o padrão de vida e contribuíram para fazer do partido um fenômeno de massas, como o Bolsa Família, não se mostra mais capaz de influenciar a decisão do voto. “Essas iniciativas já foram absorvidas como direitos pela população”, reforça o cientista político Lucio Rennó, da UnB.

Somada à emergência de valores nitidamente conservadores, a preocupação com a segurança expõe o descompasso entre o ideário da esquerda e a classe C. Números do Fórum Brasileiro de Segurança Pública dão conta que nada menos que 23 milhões de brasileiros convivem em seus bairros com a presença de facções criminosas. A pesquisa do Instituto Locomotiva revela que 53% defendem penas mais longas, severas e sem flexibilização para os bandidos. Para 51%, a segurança pública ainda deve priorizar a repressão policial nas áreas mais violentas. “Enquanto a direita se mobiliza em torno do tema, a esquerda tem muita dificuldade de oferecer respostas que não sejam ambivalentes quanto ao enfrentamento ao crime e à legalização das drogas”, esclarece Rennó.

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O atual levantamento mostra que a presença do Estado segue tendo sua importância para a classe C: para 60%, o governo deve regular a economia para reduzir desigualdades. No entanto, a pesquisa identificou uma alteração significativa quanto às relações de trabalho — aí, a opção é pela cartilha liberal. Enquanto o governo trabalha para levar aos motoristas e entregadores de aplicativo a estabilidade do emprego formal, 56% acham que trabalhar por conta própria, em vez de carteira assinada, é a forma mais eficiente de ascensão para os trabalhadores. O técnico de manutenção Elias da Silva, 52 anos, conta que já votou no PT no passado, mas hoje escolhe candidatos conforme suas propostas. “O governo deve dar assistência ao povo, mas isso não pode ser moeda de troca por voto”, acredita.

O sinal de alerta para essas transformações já soou dentro do PT, mas o partido pouco se mexeu para acompanhar os novos tempos. Duas pesquisas qualitativas da Fundação Perseu Abramo, espécie de think tank vinculado ao partido, identificaram a tendência de perda de apoio entre o povão. Em uma delas, tomando como base o desempenho eleitoral em cidades onde a classe C prevalece, Priscila Lapa, cientista política da Federal de Pernambuco, constatou que 70% do segmento votou em Lula no segundo turno de 2006, mas apenas 23% repetiu a escolha no primeiro turno de 2018. “O PT não soube renovar suas bandeiras depois que promoveu a mobilidade social das pessoas que estavam na base da pirâmide”, avalia. Quem orbita o Planalto diz que essa será a prioridade do presidente a partir de agora. O prefeito de Araraquara, Edinho Silva, que deixará o posto em janeiro, já foi escalado por Lula para substituir Gleisi Hoffmann na presidência do partido justamente com a missão de buscar novos rumos em relação a esse eleitorado. “Estamos sem projeto”, reconhece um alto comissário petista.

A ORIGEM - Lula lidera greve no ABC: um político que emergiu da luta sindical
A ORIGEM - Lula lidera greve no ABC: um político que emergiu da luta sindical (Folhapress/.)

Os esforços para mudar a imagem do partido frequentemente são atropelados pelo comportamento do próprio Lula, que quer se manter como único farol dos setores progressistas no horizonte e não admite que nenhum aliado lhe faça sombra. Ao mesmo tempo que dá sinais de cansaço do jogo de conchavos e acertos que ditam o dia a dia do governo, o presidente não poupa de críticas públicas o auxiliar que adquire luz própria e lhe desagrada. Nessa toada, já mandou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, “parar de ler livro” para se dedicar a aprovar projetos no Congresso e, mais recentemente, recomendou que mostre “mais entusiasmo” ao representar o governo.

Figura de destaque da “velha esquerda”, que carrega até hoje manchas de pó da Guerra Fria, Lula mostra dificuldade em se desprender de ranços obsoletos e modernizar ideias ultrapassadas. Essa intransigência desgasta sua popularidade interna e obstrui a renovação da legenda, mas é no plano internacional que o presidente parece mais à vontade para disparar sua metralhadora giratória e exibir sua face mais ideológica. Na reunião da Assembleia Geral da ONU, em setembro, Lula condenou os países ricos na questão climática e a atuação das superpotências na condução dos conflitos no Oriente Médio e na Ucrânia, mas deixou de fora a situação na Venezuela, comandada por Nicolás Maduro, um aliado que atropela a democracia e se mantém no poder, forçando um resultado eleitoral sem provas de ter vencido. “Por que tenho de falar da Venezuela em todo lugar?”, questionou, indignado, durante visita ao México, ao ser confrontado com o lapso de seu pronunciamento.

PROFUNDA DESILUSÃO - Eleitor do PT em 2002 e 2006, Marcelo Barros, 43, decepcionou-se com os casos de corrupção e trocou de lado. “O partido só quer poder.”
PROFUNDA DESILUSÃO – Eleitor do PT em 2002 e 2006, Marcelo Barros, 43 anos, decepcionou-se com os casos de corrupção e trocou de lado. “O partido só quer poder.” (//Arquivo pessoal)

A postura contrasta com a do chileno Gabriel Boric, mais conhecido representante de uma esquerda renovada e inovadora na América Latina, que condena com todas as letras a ditadura de Maduro. “A Venezuela é um marcador de antipetismo, um gatilho da direita, que se organiza sob o sentimento do anticomunismo”, destaca a cientista política Mayra Goulart, da UFRJ. Em 2018, o rapper dos Racionais MC’s, Mano Brown, pesou o clima em um comício feito para dar o derradeiro empurrão ao então candidato à Presidência, Fernando Haddad, ao cutucar o vespeiro da perda de apoio nas periferias das grandes cidades. “Falar bem do PT para a torcida do PT é fácil. Tem uma multidão que não está aqui que precisa ser conquistada”, disse. “Ou a gente vai cair no precipício?” A pergunta de Brown, que conhece bem a realidade do povão, permanece ecoando. Nestas eleições, o futuro da esquerda brasileira está na berlinda e já passou da hora de encarar um bom divã.

Com reportagem de  Ricardo Ferraz, Ludmilla de Lima, Lucas Mathias e Paula Freitas

Publicado na revsta Veja de 4 de outubro de 2024, edição nº 2913

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