E uma cela na França: a incrível história do criador do Telegram e como seu caso encarna dilemas da liberdade de expressão na era digital
“Ele fez uma besteira”. Assim uma fonte da polícia francesa resumiu o erro de Pavel Durov, o criador e único dono do Telegram, o aplicativo de mensagens que tem hoje mais de 900 milhões de usuários, de inteligência legendária e a experiência única de ter enfrentado o regime de Vladimir Putin e depois corrido mundo com sua turma de quinze gênios de computação em busca de um lugar para instalar seu negócio.
Segundo Vilma Gryzinski, da Veja, é realmente espantoso que ele tenha pousado na França, onde tinha um mandado de prisão por muitos dos piores crimes do mundo, todos associados ao fato de seu aplicativo não ter expurgado mensagens referentes a tráfico de drogas e de pessoas, fraude, crime organizado, glorificação do terrorismo e pornografia usando crianças.
Numa entrevista dada em abril a Tucker Carlson, ele havia comentado justamente que, entre outras precauções, não viajava a “países estranhos”, onde poderia ser preso. Exemplificou com Rússia e China.
Seria impossível não saber do mandado da justiça francesa, por isso soa mais estranho ainda que tenha pousado no aeroporto de Le Bourget num jatinho Legacy 600 da Embraer – provavelmente não seu, porque ele não quer ter propriedades, como mansões, aviões e outros brinquedos dos muito ricos, que consumam seu tempo.
Jejum intermitente
Pavel Durov conseguiu a cidadania francesa, somados aos passaportes que tem da ilha caribenha de São Cristóvão e Nevis e de Dubai, onde finalmente se instalou. Na entrevista a Carlson, uma fonte de informações preciosa, visto que ele raramente fala, Durov contou que tentou se instalar na Alemanha, mas não poderia contratar os integrantes da sua equipe antes de publicar anúncios procurando engenheiros de computação e esperar seis meses para ver se profissionais de qualquer país da União Europeia não se candidatavam.
Nos Estados Unidos, ele virou alvo das atenções dos serviços de inteligência. Um deles tentou cooptar um de seus engenheiros. Todos queriam, claro, uma “backdoor”, a porta dos fundos que permite quebrar a criptografia das mensagens e dar acesso a uma fonte de valor incalculável de informações. Foi a quebra desse sigilo que permitiu acesso às mensagens entre o senador Sergio Moro e o ex-deputado Deltan Dallagnol na época da Lava-Jato.
Sem contar as suspeitas permanentes de que ele mantenha algum tipo de vínculo com o regime russo, embora tenha saído do país depois de se recusar a descriptografar mensagens da Ucrânia e da oposição russa no aplicativo que acabou obrigado a ceder, o VKontakt, chamado de Facebook russo.
As suspeitas aumentaram depois que personalidades do mundo oficial russo se alinharam para criticar a prisão dele na França, vindo do Azerbaijão (onde corre que teria tentado, sem conseguir, uma reunião com Vladimir Putin).
Desde que saiu da Rússia, em 2014, sua fortuna subiu para 15,5 bilhões de dólares e sua imagem mudou mais ainda: o corpo de fisiculturista foi conseguido com malhação e um regime alimentar estrito, sem carne, açúcar ou álcool, além de períodos de jejum intermitente, tendo chegado a passar seis dias apenas tomando água. Durov, de apenas 39 anos, também exibe uma cabeleira associada a apliques e sinais de várias intervenções estéticas no rosto. Ele já disse que deve ser pai de mais de cem filhos, tendo começado a doar esperma a pedido de um amigo que não tinha condições de gerar uma criança com a mulher e prosseguido na prática.
Alvos de direita
A prisão de Durov fez a esquerda de vários países do mundo sonhar com um destino semelhante para Elon Musk, que mudou as regras da própria comunicação do mundo digital ao comprar o Twitter, rebatizá-lo de X e deixar de excluir ou censurar manifestações da direita, sejam elas mais extremas ou simplesmente incômodas para os poderes constituídos.
Musk e Durov, em menor escala, encarnam questões fundamentais criadas pelo mundo digital, extravasando amplamente as regras estabelecidas ao longo de séculos, desde que Gutenberg inventou os tipos móveis, em 1454. Por esse consenso, os meios de comunicação deveriam ter ampla liberdade de expressão e publicação e os possíveis abusos cometidos seriam enquadrados pelos devidos controles em matéria de calúnia, injúria e difamação.
Era o tempo em que um jornal, revista ou canal de televisão publicava uma notícia, um envolvido se sentia ofendido, entrava na justiça e meses ou anos depois perdia ou ganhava uma retratação.
Quando bilhões, literalmente, de pessoas entraram no jogo, as regras do velho mundo ficaram obsoletas e diversos defensores da jequice e do controle do estado sobre tudo acharam que tinham que “dobrar” esse mundo novo na base da caneta.
Note-se que os principais alvos das canetadas costumam ser, hoje, de direita, mas todas as regras discutidas deveriam levar em conta que precisam valer também no caso de que os censurados ou punidos fossem de esquerda. É, obviamente, um dos fundamentos da democracia e do estado de direito.
Bandido ou mocinho?
O Telegram é muito usado por cidadãos comuns e blogueiros hipernacionalistas russos e, simultaneamente, por muitos ucranianos (os militares preferem o Signal, que acham mais difícil de espionar).
Mas, de forma geral, a prisão de Durov foi comemorada por blogueiros ucranianos como uma derrota dos inimigos. Dos dois lados da guerra, o aplicativo é não só uma fonte fundamental de notícias: frequentemente, a própria guerra é travada através de mensagens do Telegram, um dos desdobramentos mais surpreendentes da era das mensagens instantâneas.
Em 2019, o Telegram baniu canais ligados ao Estado Islâmico e em 2021, grupos de supremacistas brancos nos Estados Unidos.
Mas o aplicativo se tornou um “canal do Hamas” depois do 7 de Outubro – e soldados israelenses fizerem um “contra-ataque”, com suas próprias informações, logo censuradas.
Pavel Durov é um bandido ou um mocinho? Colabora com o regime que o levou a deixar a Rússia ou é um exemplo de resistência? É um canal neutro, como se proclama, ou dá abrigo a criminosos e terroristas? Ou uma mistura das duas coisas?
Creme do creme
Criado na Itália, onde o pai, um filólogo especialista em literatura da Roma antiga, havia ido dar aulas.
Durov faz o tipo bom moço, “casado” com o aplicativo ao qual se dedica integralmente e que comanda com apenas trinta engenheiros, tendo substituído qualquer tipo de recrutamento profissional por concursos que divulga no Telegram e que vão ficando progressivamente mais difíceis, até deixar só o creme do creme. Essa estrutura extremamente reduzida só é possível porque ele mantém o controle de tudo e não abre o capital. Torna-se, assim, altamente perigosa com ele preso.
O que existe por trás da fachada de inteligência e autodisciplina quase sobre-humanas e será possível saber mais sobre Durov depois do inexplicável descuido que o levou a ser preso na França?
Emmanuel Macron considerou o caso suficientemente importante para dizer que tudo será tratado pela justiça, de acordo com as regras do estado de direito – uma redundância num país como a França, mas talvez necessária diante da importância dos assuntos envolvidos.
Stand de tiro
Na Spectator, Owen Matthews levantou mais duas perguntas fundamentais.
“As autoridades francesas acreditam que pedófilos, fascistas e islamistas irão de alguma forma deixar de se comunicar, ou até deixar de existir, se o fundador do Telegram for colocado na cadeia?”.
“Numa sociedade livre, qual é a relação adequada entre autoridades e o discurso na internet e quem é responsável por policiá-lo?”.
Da resposta a essas indagações fundamentais para todos nós, por envolver aspectos complexos da liberdade de expressão, depende a nossa própria existência como cidadãos livres.
Ah, sim, e não se sabe o que aconteceu com a linda russa de 24 anos que acompanhava Durov, Yulia Vavilova, que também mora em Dubai e tem um canal de criptomoedas em árabe. Foram mostrados juntos pela última vez num stand de tiro no Azerbaijão.