Três vezes presidente da Câmara dos Deputados e presidente da República após um conturbado processo de impeachment presidencial, o segundo em 25 anos no Brasil, Michel Temer acreditava que o presidente Lula da Silva (PT) ia fazer uma espécie de redenção nacional durante seu terceiro mandato, unindo um País que vem sofrendo com um rompimento social desde 2013. Não foi isso o que aconteceu, lamenta o político em entrevista ao O Estado de S. Paulo.
Apesar da decepção, Temer reconhece que a falta de vontade política não ficou apenas na conta do atual detentor da cadeira mais importante do terceiro andar do Palácio do Planalto. “Foi a oposição que radicalizou? Eu não saberia dizer. Mas acho que foi. Faltou vontade política de um lado e do outro”, analisou o ex-presidente na entrevista ao jornal.
Ao longo da conversa, Temer destaca a importância da oposição para o exercício da democracia.
“A oposição existe para ajudar a governar na democracia. Por que ela ajuda a governar? Porque ela critica, observa, contesta, contraria”, diz, lamentando, porém, que o conceito de oposição foi radicalizado: “Aqui no Brasil nós temos a ideia de que cada governo que chega precisa destruir os governos anteriores, tanto que o vocábulo herança maldita se incorporou ao vocabulário político do País”.
O ex-mandatário também defende que é preciso por fim à disputa entre Poderes: “Cada um ficando no seu quadrado ajuda muito o País porque as pessoas têm que ter ciência e consciência da posição que ocupam”.
Veja os principais trechos da entrevista:
O que o senhor está achando desta confusão entre Legislativo, Executivo…?
Não é por culpa nem do presidente da República, nem evidentemente por conta dos presidentes da Câmara e do Senado, o clima que se criou…
Falta um terceiro agente. Não é só um mal-estar entre Executivo e Legislativo, é entre Executivo, Legislativo e Judiciário, mas especificamente o Supremo Tribunal Federal, não?
Tem razão. Mas, para governar, quem manda no País é o Executivo com o Legislativo. O Judiciário só comparece quando provocado e quando provocado ele tem que dar uma decisão. Mas ele não é um agente governativo do País.
Mas quando há uma crise do Executivo com o Legislativo quem manda mais? Quem é que arbitra? O Supremo, que hoje é acusado de ser que manda no País.
É uma acusação inadequada. Por que é que o Supremo se intromete em tudo? Porque a Constituição é muito ampla. Como ela é muito detalhista, muito pormenorizada, todas as questões vão parar no Supremo. O segundo ponto é que a jurisdição é inerte, mas quando ela é provocada, tem que decidir. Ou vão cobrar: “como é que nós provocamos e não decidiram?” Lamento dizer que muitas e muitas vezes a classe política provoca muito o Supremo. Seja do Executivo, seja do Legislativo. O que se pode é criticar uma ou outra decisão do Supremo sob o foco jurisdicional. Era Rui Barbosa quem dizia: “O Supremo tem o direito de errar por último”. Você pode questionar juridicamente a matéria. Agora, dizer que ele se intromete em tudo por conta própria, não acho.
Há um excesso de críticas ao Supremo?
Crítica tem. Não há dúvida. E essa crítica deriva do que se estabeleceu no País em meio a um conflito muito grande entre dois setores, isto todo mundo sabe. É a radicalização. A polarização é sempre uma coisa útil, porque se usa a palavra polarização para o conflito de ideias, de programas, sistemas. Mas o que há no País é radicalização. A radicalização é que opera os conflitos, porque ela é um passo muito além da polarização. E isto toma conta do País. (…) A Constituição não determina essa radicalização de posições. Ela determina um Estado baseado na ideia da paz interna e internacional. Essa é a regra, é o recado político. Quando a Constituição diz que todos são iguais perante a lei, isso não significa que não vai haver divergência. A divergência tipifica a democracia.
A radicalização é puxada pela oposição?
A democracia impõe a divergência. A oposição existe para ajudar a governar na democracia. Por que ela ajuda a governar? Porque ela critica, observa, contesta, contraria. Na Inglaterra, por exemplo, você tem o shadow cabinet, que é um gabinete que se forma (pela oposição) em paralelo ao gabinete da situação para criticar, para ajudar a governar.
No Brasil não é assim, é?
Não. A oposição tem um sentido político, ou seja, se eu perder a eleição o meu dever é destruir aqueles que ganharam. No Brasil nós temos a ideia de que cada governo que chega precisa destruir os anteriores. Tanto que o vocábulo herança maldita se incorporou ao vocabulário político do País. Se você examinar desde o presidente (José) Sarney até hoje, cada presidente no seu momento histórico fez uma coisa útil. Você não pode negar. O que se estabeleceu no País – não de agora, mas lá de trás – foi uma radicalização brutal. Cada governo que chega, quando critica o governo anterior, não está ajudando a harmonia do País. Eu digo sempre: o presidente Lula vive falando do presidente (Jair) Bolsonaro. Ele é quem mais divulga o presidente Bolsonaro. Imagina se eu fosse fazer isso no meu governo, quando as pessoas me criticavam… E eu ficasse: “Mas a ex-presidente, a ex-presidente…” Eu não dizia nada. Eu ia tocando o governo.
O que o senhor acha dessas emendas que estão correndo no Congresso criando a possibilidade de impeachment e também estabelecendo mandato para os ministros do Supremo?
O impeachment já é previsto. Se houver uma representação do Senado, pode haver um processo de impeachment de ministro do Supremo. A questão do mandato é uma coisa antiga. Na Constituinte, eu sugeri uma emenda propondo nove membros para o Supremo, que seria uma corte exclusivamente constitucional. Seriam indicados três pelo Legislativo, três pelo Executivo e três pelo Judiciário, com mandato de 12 anos. Não foi aprovado. Agora se volta a esse tema. Não tenho nenhuma objeção a que se estabeleça uma emenda dessa natureza. Mas eu digo que fala-se isso porque os ministros atuais são responsáveis por esse quadro? Não. É porque o quadro geral político institucional do País está inteiramente radicalizado.
O que se vê é a troca de acusações, brigas…
Cada um ficando no seu quadrado ajuda muito o País, porque as pessoas têm que ter ciência e consciência da posição que ocupam. É claro que eu sempre dou exemplo da minha vida pública. Eu, quando era líder do MDB, defendia os interesses do partido. Quando fui presidente da Câmara, representava todos os membros da Câmara. Quando era presidente da República, era para todos. Vocês se lembram que a oposição política minha era feroz. Havia uma posição institucional para me derrubar do governo. Não conseguiram, eu passei a faixa. Mas houve uma tentativa brutal, sabe por quê? Porque, em certas ocasiões, eu não dava atenção ao que as pessoas diziam, o que significava até às vezes economizar tempo.
Logo no começo do governo Lula, o senhor defendeu que houvesse um movimento de união nacional. Lula assumiu com esse discurso, mas nada aconteceu. O que faltou?
Faltou ação.
Ação do presidente Lula?
Houve um equívoco, uma distância entre a palavra e a ação. Eu achei ele faria uma espécie de governo de redenção nacional. Ele declararia: ‘eu vou pacificar o País’, o que significa que você vai governar para todos os brasileiros. Não significa que não haverá divergência. Acabei de dizer no início da minha fala, você tem que ter oposição, divergência, tem temas que são delicados. Mas existe a figura do presidente da República, e aqui eu faço um pequeno corte: sempre lembro da figura de Juscelino Kubitschek (1902-1976). Foi um presidente que governou o País há mais de 60 anos. Ele era um homem da pacificação.
O que o senhor acha que aconteceu com Lula? Não soube fazer, o PT não deixou, a oposição não deixou, foi a radicalização?
Acho que faltou talvez um pouco de vontade política de um lado e, de outro lado, como o Brasil já estava radicalizado, houve agressão de todos os lados. Teve também aquele 8 de janeiro que foi um desastre, porque era uma invasão de prédios públicos. Atingiu os prédios numa tentativa de eliminar os Poderes, o que é gravíssimo. Qualquer ataque a essas instituições democráticas é proibido pelo texto constitucional. É um atentado à democracia. Não há dúvidas sobre isso.
Quem tem militância hoje? Bolsonaro tem gente na rua. O presidente Lula e o PT não chegaram a colocar 2.000 pessoas no evento do 1o de Maio. O que está acontecendo com essa radicalização ou polarização que um põe gente na rua e o outro não?
Se Bolsonaro coloca tanta gente na rua, não se pode negar prestígio a ele. Agora, não se podem negar as circunstâncias em que Lula foi eleito. Teve a maioria dos votos, embora com pequena diferença. A circunstância de não ter colocado gente na rua não sei se é problema de organização, de simpatia. Colocar gente na rua não ganha eleição. Mas mostra prestígio.
O senhor falou que a situação do País já foi pior e que agora houve uma melhora. Por quê?
Acho que o Haddad (Fernando Haddad, ministro da Fazenda) está fazendo o possível. A economia começa ou tem perspectiva de ir bem. Não vai indo bem ainda. Li um artigo do Armínio Fraga (ex-presidente do Banco Central), dizendo que não é tão bom como diz. Acho que a economia começa a aparentar melhor. É preciso seguir adiante. Por exemplo: qual é a vantagem do teto para os gastos públicos que eu fiz? Você reduz a dívida pública. A ideia é essa. Agora não é mais teto, é arcabouço. Sabe o que é o arcabouço? É o teto readaptado.
Haddad tem certo apoio do sistema financeiro e de boa parte da mídia. O problema dele está dentro do governo: a relação com a Casa Civil e Lula desautorizando. O senhor acha que é possível conviver com essa situação, onde o ministro da Fazenda é desautorizado pelo presidente e pelo próprio partido do governo?
Isso atrapalha. No meu governo, quando havia uma pequena faísca entre um e outro ministro, eu juntava, às vezes, na minha sala só os dois para conversar. Eu não tinha esse problema. Se você disser: “Isso é útil para o governo?”. Eu creio que não é.
Lula foi elogiado a vida inteira por ter uma grande habilidade política para compor. Essa habilidade ainda existe?
Por isso que eu, quando ele assumiu o governo, pensei: “Ele vai dedicar toda a vida dele para tranquilizar o País”. Eu fiquei com isso na cabeça, mas as palavras muitas vezes não corresponderam à ação.
Como o senhor avalia a atuação e as polêmicas em torno do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo?
Alexandre de Moraes é um grande constitucionalista. Eu conheço o Alexandre muito antes de ele ser ministro. E ele fez muito pelo País. Sou obrigado a dizer que, se não fosse a atuação jurídica e corajosa do Alexandre Moraes, talvez não tivesse havido eleições. Ele faz um papel adequado. E é interessante, observando um pouco a distância, que ele agora começa a amenizar algumas situações, você percebe que ele está liberando gente, vai liberando situações, não é? Acho que ele é competente para tanto.
E o que o senhor está achando da mudança do foro?
Na medida em que a jurisprudência é estável, ela também ajuda a estabilizar o País. Você decidir de uma maneira, depois decidir de outra maneira não é bom. É claro que muitas e muitas vezes a jurisprudência também tende ao momento. A pergunta é: o Supremo tem competência para fazer isso? Se tem, não creio que seja um malefício para o País.
Como o senhor viu o papel dos militares no 8 de janeiro? Como avalia a evolução desse ajuste de funções e qual deve ser a reação se houver generais presos?
A hierarquia militar é obediente à Constituição Federal. Eu não tenho dúvidas disso porque eu convivi muito com eles, fosse como o presidente ou vice-presidente da República e até como presidente da Câmara. Há um preconceito contra os militares no Brasil, fruto de 64. Eu nunca tive preconceito. Eu não faço a distinção que as pessoas costumam fazer entre militar e civil porque são brasileiros. Eu não sei se individualmente, a, b, c, d, e, por exemplo, propuseram coisas inadequadas. Mas eles não toparam isso em momento algum. Aliás, convenhamos: golpe no País você só tem se as Forças Armadas quiserem. Como não quiseram, não teve. Dizem que uma parte queria, mas não sei dizer. Talvez algumas pessoas, mas o que vale é a instituição, e na instituição eu nunca vi uma palavra de desapreço pela democracia. Agora, como é que eles vão reagir se houver general preso, confesso a você que eu acho que não será agradável para eles. Mas não creio que isto gere uma espécie de rebelião.
O senhor acha que essa sua declaração vale para Bolsonaro se ele for preso?
Aí eu não sei dizer. Eu não acredito em uma prisão dele, nem acho conveniente criar uma confusão.
Durante seu governo a segurança pública era separada das demais atribuições do Ministério da Justiça. O senhor acha que esse modelo funciona melhor?
Hoje só se fala em segurança. Eu restauraria o Ministério da Segurança. É preciso um organismo nacional que coordene a segurança pública no País, até porque o crime não é apenas estadual. Ele é nem nacional. É transnacional.
O senhor acha que a segurança pública será um tema central na campanha deste ano?
Em certas capitais, não tenho dúvida. Eu acho que nas cidades médias e pequenas, não creio que seja o ponto central. O que não se pode é transformar uma eleição municipal em uma disputa nacional, porque você tem que pensar no munícipe. Porque mais uma vez as pessoas estão saindo do seu quadrado. O que o morador quer? Quer a rua asfaltada, ele quer ter iluminação, quer ter água, quer ter bom transporte.
O senhor tem conversado sobre isso com o prefeito Ricardo Nunes, que disputa a reeleição?
Eu digo: “Você tem que mostrar por que que é bom viver em São Paulo”. É para o munícipe de São Paulo, não de Alagoas, nem do Ceará. Tem que dizer que é bom viver em São Paulo, porque você está fazendo creches. Obras para a população.
O que uma aliança em torno de Nunes significa em termos de apoio futuro para o governador paulista Tarcísio de Freitas? Seria reunir o eleitorado numa bolha pela candidatura dele à Presidência?
É possível. Se houver essa essa conjugação agora ela vai estabelecer uma reunião de forças políticas para a próxima eleição. Quem vai ser o candidato? Não se sabe ainda. O Tarcísio, evidentemente, é um nome muito cogitado. Ele tem classe, sabe o que diz. E ele é muito disciplinado, ele estuda as questões antes de falar. No meu governo ele foi um dos principais responsáveis pelo programa de parceria e investimentos.