Diferentemente dos governos Lula 1 e 2, convite ao Brasil é menos reflexo de prestígio e mais uma deferência ao G20, além de tentativa de angariar simpatia do Sul Global à causa ucraniana, avaliam especialistas. Após um hiato de 14 anos, o Brasil retorna neste ano à cúpula do G7, fórum de chefes de Estado que reúne Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e o Canadá, mais a União Europeia (UE).
O grupo, que responde por 45% do PIB mundial, reúne-se neste fim de semana em Hiroshima, no Japão. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, aterrissaram na cidade na quinta-feira (18) junto com uma comitiva de diplomatas.
O Brasil participa pela sétima vez na condição de convidado do evento – todas durante governos Lula, sendo a última em 2009 – ao lado de outros sete países: Austrália, Comores (país que preside a União Africana), Ilhas Cook (presidente do Fórum das Ilhas do Pacífico), Índia, Indonésia, República da Coreia e Vietnã.
A escolha de Hiroshima como sede do encontro não é à toa: o trágico destino da cidade, massacrada pelos Estados Unidos com armas nucleares em 1945, ao final da Segunda Guerra Mundial, reforça a campanha dos japoneses pelo desarmamento nuclear e dialoga com o principal tema do encontro – a invasão da Ucrânia pela Rússia.
O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, também deverá participar do evento.
Risco de frustração
Na abertura da cúpula, EUA e Reino Unido anunciaram novas sanções contra Moscou. A ação, afirmou o G7 num comunicado, é necessária para “elevar os custos [do conflito] para a Rússia e aqueles que apoiam os esforços de guerra do país”.
O tema é delicado para o Brasil, que tem se aferrado à tradição de neutralidade da política externa brasileira ao evitar posicionamentos duros contra o governo de Vladimir Putin.
“Acho que o presidente Lula vai sair um pouco frustrado dessa viagem, porque o foco [do G7] evidentemente está na avaliação das circunstâncias da guerra da Ucrânia e adoção de medidas de contenção da Rússia”, opina Antônio Carlos Lessa, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasilia (UNB) e pesquisador da Universidade de Illinois (EUA).
Guilherme Casarões, professor de Relações Internacionais da FGV-SP, também avalia que “o Brasil tem uma tradição de não apoiar sanções unilaterais, que não sejam aprovadas especificamente pelas Nações Unidas. Isso deve deixar o Brasil numa posição mais difícil”. Na condição de convidado do evento, contudo, o país não tem influência decisiva sobre os rumos das discussões.
Ele explica que o G7, que se notabilizou ao longo de sua existência pelas discussões econômicas a partir da perspectiva de países industrializados, foi adquirindo um caráter mais geopolítico a partir do acirramento da disputa entre EUA e China e da intensificação do conflito entre Rússia e Ucrânia, com a existência de visões distintas sobre a guerra interditando o debate em fóruns internacionais.
“É uma forma de tentar discutir a guerra a partir de uma perspectiva ocidental, que não seja alinhada à Rússia ou à China, e sem embates diretos, como seria no caso da Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte, aliança militar criada no pós-guerra]”, afirma.
Outro ponto, embora menos relevante neste ano, segundo ele, é a resistência do G7 “às mudanças na economia global que a China está tentando impor”, como por exemplo a ameaça à hegemonia do dólar e o fortalecimento de bancos de desenvolvimento alternativos ao Ocidente.
“O G7 hoje é um bloco mais reativo, mais defensivo, na medida em que ele está tentando salvaguardar as regras existentes da economia mundial para resistir a uma mudança, que eu diria inevitável, ainda que de médio prazo, dessas regras a partir dos interesses da China, que se afirma hoje como a segunda economia do mundo.”
Por que o Brasil ficou tantos anos fora do G7?
Se entre 2003 e 2009 a presença brasileira no G7 foi explicada pela boa imagem e crescente protagonismo internacional do país sob os dois primeiros governos Lula, o retorno à cúpula, desta vez, tem um motivo mais singelo, quase protocolar.
Segundo Lessa, o convite ao presidente brasileiro para ir a Hiroshima é muito mais uma deferência ao G20 do que à figura de Lula, já que o Brasil assumirá em dezembro deste ano a presidência do clube que reúne as vinte maiores economias mundiais – tanto que participam dessa cúpula do G7 também Índia, atual presidente do G20, e Indonésia, que presidiu o grupo em 2022.
“Não é um convite especificamente à retomada de uma política externa brasileira ativa. Não foi o Lula nem o Brasil de Lula que foi convidado. No caso dessa cúpula específica, foi por conta dessas circunstâncias e da pretensão do G7 de se aproximar das potências emergentes, de engatar um diálogo mais consistente com as lideranças do Sul Global”, explica.
Já a ausência do Brasil das cúpulas do G7 a partir de 2009 se deu, também, mais por questões de ordem pragmática, devido à importância que o próprio G20 passou a ter ante o G7 após a crise de 2008 e o declínio da hegemonia norteamericana. “Não é questão de o Brasil ter perdido relevância internacional, mas sim de já haver outro fórum, o que tornou a presença do Brasil no G7 supérflua”, argumenta Casarões, da FGV-SP.
Mas a promessa de uma ordem internacional multilateral se esvaiu com a intensificação das tensões geopolíticas, e a isso seguiu-se o esvaziamento do G20. “O grande desafio hoje é que a recuperação do papel do G20 passa também pela pacificação do conflito entre a Rússia e Ucrânia”, constata Casarões.
O que esperar da participação brasileira no G7?
O Brasil participa das três reuniões oficiais da cúpula do G7. Além da Ucrânia e do desarmamento nuclear, serão debatidos ainda temas como a inflação, questões energéticas e climáticas, segurança alimentar, saúde pública e desenvolvimento sustentável, bem como – num recado a Pequim – a abertura e liberdade da região Indo-Pacífica.
Estarão presentes ainda representantes das Nações Unidas (ONU), Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, Agência Internacional de Energia, Organização Mundial de Saúde e Organização Mundial do Comércio.
Além da programação oficial, Lula reuniu-se com o primeiro-ministro da Austrália, Anthony Albanese, e deve se encontrar também com os primeiros-ministros Narendra Modi (Índia) e Fumio Kishida (Japão) e com o presidente Joko Widodo (Indonésia).
Professora do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), Janina Onuki vê a participação no G7 como importante para reabrir o diálogo com as grandes potências, fortalecer a capacidade de liderança regional e internacional do Brasil dentre países emergentes, bem como demonstrar estabilidade política e econômica para atrair investimentos. “É uma sinalização de que o Brasil volta a ser importante no cenário internacional, trazendo a esperança de que possa liderar coalizões em prol dos países médios e pequenos”, avalia.
Casarões, da FGV-SP, pontua que o convite seria um reconhecimento da capacidade brasileira de transitar entre os dois polos antagônicos da ordem mundial, e oferece uma oportunidade a Lula de conversar com mais líderes ocidentais sobre a guerra, além de se reposicionar nas cadeias globais de alimentos e energia.
Já Lessa, da UNB, tem uma visão mais crítica e fala em “ganhos limitados para o Brasil” porque a agenda climática e de promoção do multilateralismo, dois pontos de interesse da política externa brasileira, não devem ter muito espaço no evento.
“As possibilidades de protagonismo são muito diminutas”, afirma. Ele cita as mudanças no cenário internacional, a própria guerra e “agendas onde as posições do Brasil não têm capital político”, como as ambições de intermediar a paz entre Ucrânia e Rússia.
“O presidente Lula tem falado consistentemente disso em vez de reforçar as credenciais nas quais o Brasil pode realmente crescer mais: liderança na agenda climática, defesa da democracia e da ordem liberal internacional, com ênfase numa agenda muito importante da política externa brasileira, que é a democratização e reforma das instâncias internacionais com o fortalecimento do multilateralismo – bandeira que o Japão, a Alemanha e a Índia também defendem. Valorizar esse discurso faria mais sentido para o Brasil do que se engajar em discussões sobre a Rússia.”
Para Lessa, o convite do G7, nesse sentido, é um esforço de cooptação do Sul Global. “E esse esforço só faz sentido se houver à mesa ganhos concretos para esses países. Não é o que nós vemos aqui.”
Visões distintas
Apesar de o governo brasileiro ter condenado a invasão russa em resoluções na ONU, a política externa brasileira também teve gestos que colocaram em dúvida sua tradição de neutralidade, causando mal-estar entre a diplomacia europeia e norte-americana – a começar pelo encontro discreto, sem anúncio prévio à imprensa, entre o assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais, Celso Amorim, e o presidente Vladimir Putin em Moscou no final de março.
Pressionado dos dois lados, o governo brasileiro estaria tomado o cuidado de não melindrar a Rússia, sob o argumento de que isso prejudicaria esforços de negociação de paz. “Toda guerra termina em negociação e conversa. O Brasil tem se reservar para ajudar na hora que for útil ele ser útil”, argumenta Marcos Azambuja, que por muitos anos serviu ao Itamaraty como embaixador e hoje atua como consultor do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).
Casarões, da FGV-SP, explica que esses posicionamentos polêmicos do governo Lula têm raiz numa “visão histórica do PT de condenação ao imperialismo americano”, e na imagem da Rússia como antagonista dessas aspirações norteamericanas a despeito do interesse de outros atores geopolíticos. “Mas o Lula percebeu que essa situação é mais complexa do que simplesmente culpar a Ucrânia”, afirma. “Por mais que ambos os lados possam ter responsabilidade, você não pode igualar essas responsabilidades na medida em que um país flagrantemente violou o direito internacional e invadiu o outro.”
Foi nesse contexto de mal-estar que Lula enviou Amorim à Ucrânia no início de maio, a menos de duas semanas da cúpula do G7.
“A ida a Kiev foi importante para sinalizar que o Brasil está disposto a ter uma postura equilibrada e equidistante entre as duas partes do conflito – mas sempre entendendo que uma foi agredida e a outra agrediu”, ressalta Casarões. “Acho que o Ocidente já percebeu que Lula pode ser um parceiro importante, e que é melhor nesse momento tentar acomodar os interesses brasileiros do que isolar o Brasil e jogá-lo no colo da Rússia.”