O processo rumo a uma nova Constituição no Chile inicia sua fase final diante de uma nova perspectiva de fracasso. Esta é a segunda tentativa após a crise social de 2019 de se chegar a um acordo sobre um texto que substitua o atual, que foi promulgado em 1980, durante a ditadura militar do general Augusto Pinochet, e que consagrou um modelo econômico e social neoliberal.
A primeira proposta, de orientação progressista de esquerda, elaborada por uma convenção eleita, foi rejeitada por 62% dos eleitores no plebiscito de setembro de 2022.
Para este segundo processo foi escolhida uma comissão de especialistas representando todo o espectro político. Eles redigiram um anteprojeto marcado pela moderação e por acordos políticos transversais, abarcando todo o espectro político, resultando num texto de amplo consenso.
Esse texto foi então passado a um Conselho Constitucional de membros eleitos pela população, no qual o Partido Republicano, da direita radical chilena, tinha maioria e até mesmo poder de veto.
Nesse cenário surgiu o paradoxo de que aqueles que queriam abertamente manter a Constituição de Pinochet acabaram por redigir a nova.
Um conselheiro da direita radical até mesmo destacou que, em caso de uma nova rejeição, isso não seria grave porque aí a Constituição de 1980 continuaria em vigor.
Embora a Constituição de Pinochet tenha passado por diversas reformas que eliminaram os seus aspectos mais autoritários, a maioria dos chilenos a vê como a Constituição de um regime que matou, torturou e fez desaparecer milhares de pessoas.
Proposta alterada pela direita radical
A direita radical impôs quase 400 emendas ao anteprojeto dos especialistas, fazendo alterações profundas, embora mantendo cerca de metade das propostas originais.
Em sua tramitação final no Conselho, a proposta foi aprovada no dia 30 de outubro, em votação dividida: 33 votos a favor, todos da direita, e 17 contra, todos da esquerda.
No próximo dia 17 de dezembro, os cidadãos terão a última palavra num novo plebiscito de participação obrigatória. Pesquisas indicam que também esta segunda proposta deverá ser rejeitada, e novamente por ampla maioria.
“Estamos num cenário bastante inédito no constitucionalismo mundial, de dois processos consecutivos em que poderá haver uma rejeição, segundo as pesquisas”, comenta o jurista Javier Couso, da Universidade Diego Portales e da Universidade de Utrecht, na Holanda.
Artigos polêmicos
Assim como o processo anterior, dominado pela esquerda, o atual, dominado pela direita radical, está longe de ser consensual, o que impede um amplo apoio entre a população.
Uma das principais novidades é a que consagra o Chile como um “Estado de direito social e democrático”, uma das aspirações históricas da esquerda chilena.
Para a esquerda, esse conceito seria a garantia de que o Estado geraria mecanismos de solidariedade para com as pessoas menos favorecidas, ao mesmo tempo em que diminuiria o papel do setor privado na prestação de direitos sociais, como saúde, educação e aposentadorias.
O conceito continua no texto aprovado, mas a esquerda o considera esvaziado por causa de artigos que perpetuam o atual Estado subsidiário, como os que blindam constitucionalmente o sistema privado de saúde ou o criticado modelo de aposentadorias de capitalização individual.
Outro artigo muito controverso é o que garante “o direito à vida de quem está para nascer” – o que a esquerda teme que colida com a aplicação da lei que permite o aborto em três situações.
O texto final também prevê a expulsão imediata dos imigrantes não autorizados, “com pleno respeito pela dignidade humana, pelos direitos e garantias fundamentais e pelas obrigações internacionais adquiridas pelo Estado do Chile”.
Outro ponto polêmico é a isenção fiscal para a primeira habitação, o que beneficia pessoas com rendimentos mais elevados.
O projeto ainda propõe que pessoas condenadas à prisão possam solicitar prisão domiciliar em casos comprovados de doença terminal, o que pode beneficiar 134 militares do regime ditatorial condenados por violações dos direitos humanos e que hoje estão presos.
No início da proposta constitucional, em seu artigo 5º, o texto estabelece o reconhecimento dos povos indígenas como parte da nação do Chile, que é “única e indivisível”.
Um advogado mapuche foi o único representante dos povos originários no Conselho Constitucional, de 51 membros. A baixa representativa se reflete no texto, que menciona os indígenas em apenas três ocasiões.
A proposta ainda eleva a maioria necessária para fazer reformas constitucionais para três quintos, o que dificulta que um Congresso fragmentado como o chileno faça modificações.
Processo desfigurado
Mesmo assim, o jurista Couso lista, entre os pontos positivos do projeto, o reconhecimento dos povos indígenas, a consagração do Estado social de Direito e algumas melhorias no sistema político.
No geral, porém, ele lamenta que o processo constituinte tenha sido desfigurado. “Quando se entra nas letras miúdas, as normas regulatórias tornam-se extremamente contrárias ao Estado social. Por exemplo, a possibilidade de solidariedade em matéria de aposentadorias e segurança social é apagada diante do direito de propriedade.”
Ele avalia que “foi feita uma tentativa de quadratura do círculo: respeitar as bases do Estado social de Direito e ao mesmo tempo aprofundar o Estado neoliberal, o que vai gerar muita judicialização para resolver essa contradição”.
Em termos de valores, a direita impôs um viés religioso cristão ao estabelecer a proteção de “quem está por nascer”, o que poderia pôr em risco a legislação atual, que permite o aborto em três situações, afirma Couso.
Esses são apenas alguns dos questionamentos de representantes de vários setores políticos e acadêmicos, incluindo os que rejeitaram o projeto anterior, e que apelam ao voto contrário por considerarem que a proposta se inclina para a direita.
Ao contrário do anteprojeto dos especialistas, o texto final do Conselho “infelizmente não atingiu o mesmo nível de consenso. Instalou-se uma lógica de confronto, que impediu um texto mais consensual”, comenta Sebastián Soto, professor de Direito da Universidade Católica e vice-presidente da comissão de especialistas.
Texto “é o possível hoje”
Uma das críticas mais comuns é a extensão do projeto. Com 19 mil palavras a mais que a Constituição atual, a nova carta magna seria uma das dez mais longas do mundo.
Na opinião de Couso, isso é um sintoma de que se trata de um texto de forte viés programático partidário, o que pode inviabilizar a implementação de políticas públicas, pois elas poderiam ser declaradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional. “A ideia de que políticas públicas podem ser feitas contra uma Constituição que proíbe coisas progressistas é francamente uma ilusão”, diz Couso.
Soto também tece críticas. “Nem todos são artigos que eu subscreveria, critiquei vários deles. Não gosto da extensão e do detalhismo de algumas das suas disposições, mas o considero um texto adequado e correto, que reúne duas tradições, a do Estado social de Direito e a melhor versão do Estado subsidiário, que não são incompatíveis.”
Na opinião do professor de Direito da Universidade Católica, “os processos do constitucionalismo são do possível, não do ótimo. E o que é possível hoje é um texto como o proposto. No geral é superior ao texto atual, e na minha opinião deveria ser aprovado para virar a página constitucional e começar a resolver nossos outros problemas”.
Já Couso considera que se trata de “um retrocesso gigantesco em relação ao acordo transversal elaborado pelos especialistas, que não foi apenas um pacto, mas uma Constituição mais curta e sóbria”. O atual projeto tem um tom conservador e aprofunda os elementos neoliberais da Constituição de 1980, diz.
“Se aprovado, prevejo muita frustração e divisão, porque não é um texto que apele a todos os setores. Virar a página é uma opinião muito prática para quem quer aprovar esta proposta porque gosta dela”, afirma.
Em caso de nova rejeição, o presidente Gabriel Boric praticamente descartou que possa haver um terceiro processo constituinte durante o seu mandato.