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terça-feira 6 de setembro de 2022 às 14:53h

O primeiro país a reconhecer a Independência do Brasil foi também o primeiro a quem declarou guerra

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O primeiro país a reconhecer a Independência do Brasil foi também o país ao qual o Brasil declarou a sua primeira guerra: a Argentina. E tanto o reconhecimento da Independência do Brasil por parte da Argentina, em maio de 1823, quanto a guerra declarada, apenas dois anos e meio depois, em dezembro de 1825, tiveram uma única motivação: o Uruguai.

O reconhecimento da Argentina à Independência do Brasil ficou tão apagado na história que, há 100 anos, quando o Brasil comemorou o seu primeiro centenário como nação independente, o país que ganhou injustamente o mérito de primeiro a reconhecer a Independência do Brasil foram os Estados Unidos.

Um grave erro da historiografia brasileira. A Argentina reconheceu a Independência do Brasil, em maio de 1823, exatamente um ano antes do que os Estados Unidos, em maio de 1824.

Há 200 anos, o território das Províncias Unidas do Sul ou Províncias Unidas do Rio da Prata, hoje Argentina, mal chegava 300 Km ao Sul de Buenos Aires. O país tinha nascido apenas seis anos antes.

Questão Uruguai

O atual Uruguai era chamado por “Banda Oriental” (Faixa Oriental) pelas Províncias Unidas do Sul e por Província Cisplatina, pelo Brasil. Em 1816, o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves ocupou a Província Cisplatina, incorporando o atual Uruguai ao território brasileiro.

Por esse motivo, a Argentina hesitou em reconhecer imediatamente a Independência do Brasil. Se não fosse pela disputa com o Brasil pelo Uruguai, a Argentina deveria ter reconhecido a Independência do Brasil quase imediatamente. Seria uma retribuição natural da iniciativa decidida um ano antes, em agosto de 1821, quando Portugal reconhecera a Independência das Províncias Unidas do Sul.

O Rei D. João VI já tinha voltado para Portugal, mas tinha dado ordens para o reconhecimento tanto da Argentina quanto do Chile, projetando a futura relação do Reino do Brasil com as nações vizinhas que nasciam.

Mas a retribuição argentina não chegou como se esperava.

“Existe uma explicação para que o reconhecimento por parte da Argentina não tenha sido imediato: a Argentina estava no meio de uma guerra civil e as condições internacionais eram muito complexas. Eu acredito que a Argentina consultou com o Foreign Office (Ministério das Relações Exteriores da Inglaterra) para saber se esse reconhecimento, dado o estreito relacionamento da Inglaterra com Portugal, podia gerar algum problema. Recordemos que o aliado da Argentina, até então, era Portugal; não o Brasil”, indica à RFI Diego Guelar, um dos mais destacados diplomatas da Argentina, ex-embaixador nos Estados Unidos, na União Europeia, na China e no Brasil.

O Brasil independente herdou de Portugal uma pequena rede de representantes diplomáticos em Buenos Aires, Paris e Londres.

Aqui em Buenos Aires, o cônsul e agente mercantil era Antonio Manoel Correa da Câmara que tinha acabado de assumir o posto em 1º de agosto de 1822, já não como representante do Reino de Portugal, mas como do Reino do Brasil.

Pouco mais de um mês depois viria o “Grito do Ipiranga” e, na sequência, a aclamação de D. Pedro I como Imperador do Brasil, transformando o Reino em Império.

À época, o “Grito do Ipiranga” não teve a importância que adquiriu ao longo da história. Foi a proclamação de D. Pedro I, em 12 de outubro de 1822, a verdadeira ruptura com Portugal e a razão para o Brasil comunicar à Argentina a adoção de novos símbolos nacionais e a conformação de um novo Império.

Em 7 de novembro de 1822, o cônsul Correa da Câmara comunicou a novidade ao ministro de Governo e das Relações Exteriores de Buenos Aires, Bernardino Rivadavia, mas a comunicação, para frustração do novo Império, não foi acompanhada com um reconhecimento da Independência do Brasil.

“O povo independente do Brasil proclamara o príncipe regente como Imperador Constitucional do Império do Brasil”, escreveu o cônsul.

Hesitação argentina

Das Províncias Unidas do Sul, Buenos Aires era a responsável pelas Relações Exteriores. Rivadavia recusou-se a reconhecer a independência do Império do Brasil e continuou a se referir ao país como “Reino do Brasil”. D. Pedro I foi tratado como “Sua Alteza Real, o príncipe regente” e não como o novo título de ‘Imperador do Brasil”.

O principal motivo para resistência da Argentina era o Uruguai. Rivadavia queria que o Brasil se retirasse da Província Cisplatina e definia a reivindicação como “urgente justiça da restituição da Faixa Oriental”.

Mas tudo mudou, porém, seis meses depois, em maio de 1823. A Argentina tinha adotado uma nova estratégia: o reconhecimento da Independência do Brasil permitiria abrir uma negociação direta com o novo governo brasileiro sobre o Uruguai.

Se não reconhecesse a Independência do Brasil, as negociações teriam de ser com Portugal, uma temida potência à época. E Portugal, teoricamente, não estava mais nem no Brasil nem no Uruguai.

“Nós saíamos da guerra da Independência. Não podíamos entrar numa guerra com Portugal, um país muito importante naquela época”, destaca Diego Guelar.

O primeiro reconhecimento

Em maio de 1823, numa mensagem à Legislatura de Buenos Aires, Bernardino Rivadavia destacou o obtido reconhecimento dos Estados Unidos, no ano anterior, à Independência das Províncias Unidas do Sul e, na sequência, citou que “a emancipação do Brasil completou a independência do nosso continente”.

“O ministro Rivadavia, ao anunciar o reconhecimento dos Estados Unidos, faz um reconhecimento ao Império do Brasil ao dizer que, com a Independência do Brasil e com a proclamação do Império, já não restam colônias na América do Sul. Sobre a forma de governo do Brasil, diz que cada povo deve escolher soberanamente, avalizando a Monarquia brasileira”, detalha à RFI o historiador argentino Roberto Azaretto.

O reconhecimento da Monarquia como sistema de governo também foi importante. Havia certa resistência à presença de alguma monarquia no continente americano. Essa resistência era maior por parte dos Estados Unidos, uma potência então emergente.

“Talvez isso tenha demorado o reconhecimento da Independência do Brasil por parte dos Estados Unidos, os maiores interessados em que não houvesse monarquias por aqui”, acredita Azaretto.

No seu pronunciamento na Legislatura, Rivadavia também anunciou o envio de um representante diplomático de Buenos Aires à capital do Império, o Rio de Janeiro, para “estabelecer relações entre os dois governos”. O presbítero argentino José Valentín Gómez se tornou, assim, o primeiro diplomata estrangeiro no Brasil independente.

A missão de Valentín Gómez era única: abrir negociações para que o Brasil se retirasse do Uruguai.

“A intenção era evitar a guerra”, sublinha Diego Guelar.

A carta que o enviado levou ao Rio de Janeiro era clara no seu enunciado: “a Argentina celebra a Independência do Brasil e quer tratar definitivamente da evacuação da Faixa Oriental”.

Essa carta argentina de 25 de junho de 1823 é a formalização do primeiro reconhecimento da Independência do Brasil por parte de um país.

“O governo de Buenos Aires celebrou com a mais plena satisfação a Independência do Brasil”, diz o ministro Bernardino Rivadavia na carta.

No dia 1º de agosto de 1823, também numa carta ao chanceler brasileiro, o representante argentino já se referia a D. Pedro I como “Sua Majestade Imperial”, abandonando o tratamento anterior de “Sua Alteza Real”.

No dia 5 de agosto, Valentín Gómez se apresentou a José Bonifácio de Andrada e Silva, primeiro chanceler do Império do Brasil. Essa reunião marca o começo formal das relações diplomáticas entre o Império do Brasil e as Províncias Unidas do Sul, agora duas nações independentes.

Seis dias depois, em 11 de agosto, quem recebeu o argentino foi o próprio Imperador.

Missão fracassada

O objetivo da Argentina não foi alcançado. O Brasil não cedeu a Província Cisplatina. D. Pedro estava decidido a ficar com a margem direita do Rio da Prata, devido à importância estratégica e portuária da Colônia do Sacramento e de Montevidéu.

“O que se temia em Buenos Aires, caso houvesse uma vitória categórica do Império, é que D. Pedro I não se conformasse com o Rio Uruguai como limite do Brasil e quisesse chegar até o rio Paraná, tomando parte do território argentino”, aponta Roberto Azaretto.

Durante dois anos e meio, a relação bilateral foi tensa. Em 25 de outubro de 1825, o já denominado Congresso de Buenos Aires proclamou a incorporação do Uruguai ao território das Províncias Unidas do Sul. Essa proclamação foi interpretada pelo Brasil como um passo para a guerra.

Em Buenos Aires, Correa da Câmara havia sido substituído pelo agente político do Império do Brasil, Antonio José Falcão da Frota, que, perante a iminente guerra, retornou ao Rio de Janeiro.

No mês seguinte, em 4 novembro de 1825, o governo de Buenos Aires anunciou o rompimento das relações diplomáticas com o Império do Brasil.

Começo da guerra

Em 10 dezembro de 1825, três anos depois de se tornar independente, o Brasil declarava formalmente a guerra às Províncias Unidas do Sul.

Pelo tratado de Paz e Aliança de 29 de agosto de 1825, com mediação da Inglaterra, Portugal reconheceu a Independência do Brasil, impondo, como condição, uma indenização de dois milhões de libras esterlinas. Esse era o valor da dívida de Portugal com a Inglaterra que passava a ser do Brasil. Portanto, o Brasil nascia endividado e em guerra.

Enquanto a Independência do Brasil foi um acordo familiar entre pai e filho, entre D. João VI e D. Pedro I, num processo em paz, as Independências dos demais países vizinhos foram através de batalhas e guerras.

“O processo brasileiro é diferente, mas o resultado é igual. Nos demais países foi o contrário: conseguiram a Independência mediante guerras e isso os levou a endividarem-se para financiar a guerra. E sempre se endividavam com Londres”, compara Azaretto.

A guerra com a Argentina duraria três anos, até 27 de agosto de 1828 e, do acordo de paz, com a mediação da Inglaterra, nasceria o Uruguai como um estado-tampão.

“Essa aparente contradição entre o reconhecimento da Independência e logo depois o início de uma guerra, na verdade, era a mecânica das potências ocidentais e a regra do jogo entre as novas nações americanas. A intenção era uma negociação, mas a realidade é que tivemos uma guerra. Mas, no final, acabou em negociação com o nascimento do Uruguai como estado independente, como estado-tampão”, explica o embaixador Diego Guelar, também diretor da BRAL Consultores, especializada na assessoria binacional argentino-brasileira.

Também foi devido à guerra com o Brasil que Bernardino Rivadavia se tornou o primeiro presidente da Argentina, em 8 de fevereiro de 1826.

Mudança no rumo da História

As relações entre Brasil e Argentina, por quase dois séculos, foram marcadas por altos e baixos, mas sempre por uma latente hipótese de conflito bélico. Nos anos 1950, os dois países iniciaram uma corrida pela energia atômica com o objetivo de dominar a tecnologia nuclear.

Nos anos 1980, os dois países avançavam para a construção da bomba. Foi quando o então presidente argentino Raúl Alfonsín (1983-1989) tomou a iniciativa de abrir o segredo nuclear argentino ao Brasil e acabar com a hipótese de guerra.

“Existe um fato muito importante e pouco conhecido. Quando Raúl Alfonsín ganhou as eleições para presidente (1983), o almirante Castro Madero, responsável pela Comissão de Energia Atômica, informou ao presidente Alfonsín que a Argentina estava pronta para construir a bomba atômica. Faltava apenas a ordem do presidente para a bomba ficar pronta no prazo de um ano. Inclusive o projeto de construção de um submarino nuclear, depois das Malvinas, tinha sido acelerado. Foi quando Alfonsín tomou a determinação de abrir o segredo nuclear e fechar um acordo com o Brasil. Essa foi a mudança no rumo da história”, revela Roberto Azaretto.

O embaixador Diego Guelar também exalta esse período no qual os presidentes Raúl Alfonsín e José Sarney alteraram o rumo, trocando ogivas pela integração, uma experiência considerada inédita e exemplar no mundo.

“Toda a nossa história é uma história de conflitos e de irmandade ao mesmo tempo. Um relacionamento de amor e ódio permanente. Tivemos momentos muito graves. A bomba argentina foi planejada para ser jogada no Brasil. E o mesmo do lado brasileiro”, recorda.

Nos anos 1990, os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Carlos Menem avançaram com a integração plena. “Até a década de 1990, o Brasil era, claramente, um concorrente comercial, político, militar. Era rival em tudo. O embrião foi plantado por Alfonsín e Sarney nos anos 80. Foi fundacional. Mas a grande ideia da integração vem com Fernando Henrique Cardoso e Carlos Menem. O que se seguiu foi a continuidade”, avalia Guelar.

Para o historiador Roberto Azaretto, fica claro que a única saída possível para Brasil e Argentina ao longo da história, mas também para a história que ainda será escrita, é a integração.

“O Brasil representa o país indispensável com o qual temos de ter políticas comuns de inserção no mundo. Temos de ter bem claro, argentinos e brasileiros, que se queremos ser independentes neste mundo de duas superpotências é fundamental a nossa interdependência”, projeta Azaretto.

Assim, as Independências de Brasil e Argentina há 200 anos tornaram-se Interdependência, 200 anos depois.

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