A discussão sobre qual será a indicação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao Supremo Tribunal Federal (STF) após a aposentadoria de Rosa Weber, que deixa o cargo no dia 28 de setembro, tem mobilizado setores distintos da esquerda em direções opostas.
Enquanto há grupos que pressionam pela nomeação de uma mulher negra para a vaga, outras correntes defendem que Lula tenha liberdade para escolher fora destes critérios.
Nos EUA, essa questão se apresentou ao presidente Joe Biden no início do segundo ano de mandato. Entre as diversas promessas que ele fez durante sua campanha eleitoral, em 2020, estava a de nomear uma mulher negra para a Suprema Corte, a mais alta instância da Justiça dos Estados Unidos.
Em mais de 230 anos de história, o tribunal estabelecido em 1789 e que teve sua sessão inaugural em 1790 havia tido apenas dois juízes negros, ambos homens: Thurgood Marshall (que serviu de 1967 até 1991) e Clarence Thomas (que ingressou em 1991 e atualmente é o membro mais antigo do tribunal).
Além disso, dos 115 integrantes que haviam passado pelo tribunal ao longo da história, somente cinco eram mulheres.
Em fevereiro de 2022, após o anúncio da aposentadoria do juiz Stephen Breyer e depois de analisar uma lista de candidatas negras, Biden cumpriu sua promessa e indicou a juíza Ketanji Brown Jackson para a vaga.
O nome de Jackson foi confirmado pelo Senado americano em abril do ano passado, com 53 votos a favor e 47 contra, e em 30 de junho de 2022 ela fez história ao se tornar a 116ª integrante da Suprema Corte e a primeira mulher negra a ocupar o cargo.
Pouco mais de um ano após assumir a vaga, Jackson, de 52 anos, já deixou sua marca no tribunal, que segue um calendário que se inicia em outubro e vai até julho do ano seguinte.
Às vésperas da próxima temporada, que começa no mês que vem, analistas fazem um balanço da atuação de Jackson em seu primeiro ano.
Khiara M. Bridges, professora da Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia em Berkeley, observa que, ao ler as opiniões manifestadas por Jackson e ouvir suas perguntas durante as argumentações orais, não percebeu em seu raciocínio jurídico e em sua abordagem para decidir casos aspectos especificamente relacionados ao fato de ser negra ou mulher.
“Certamente me parecem progressistas, mas não conseguiria identificar opiniões de Jackson com base no fato de ser negra ou mulher”, diz Bridges à BBC News Brasil.
“Dito isso, considero extremamente importante que ela esteja na Suprema Corte.”
“Acho que representatividade é importante. Durante toda a história dos Estados Unidos nunca havíamos tido uma mulher negra na Suprema Corte, e o que isso sinalizava era que mulheres negras não eram inteligentes ou qualificadas o suficiente para estarem no tribunal”, observa Bridges.
“Então, acho que é importante simbolicamente, simplesmente para mostrar que não há nada inferior sobre mulheres negras. Elas podem estar – e estão – entre as principais mentes jurídicas”, afirma.
Para o especialista em direito constitucional Kent Greenfield, professor da Faculdade de Direito do Boston College, universidade na cidade de Boston, Jackson “é provavelmente o juiz calouro mais influente e importante na Suprema Corte em décadas”.
“Ela se mostrou muito engajada, muito ativa na argumentação oral e na redação de opiniões. E ela parece ter não apenas um ponto de vista único, um conjunto único de perspectivas, mas também um tipo especial de força que lhe dá confiança para se pronunciar tanto durante seu primeiro ano”, diz Greenfield à BBC News Brasil.
Voz de destaque
Entre os nove integrantes da Corte, Jackson foi a que mais se pronunciou nas argumentações, o que surpreendeu em um ambiente em que os membros recém-chegados costumam ter uma participação inicial mais tímida.
Em um ano em que vários dos casos tocavam em questões raciais, a juíza se firmou com uma voz de destaque, com perguntas incisivas e votos dissidentes por escrito que deixaram claras suas prioridades e, muitas vezes, foram amplamente noticiados pela imprensa americana.
Mesmo quando foi voto vencido, a juíza causou impacto, como na sua defesa de medidas para combater a discriminação racial em vários dos casos analisados, entre eles o que rejeitou o uso de ações afirmativas que incluem a raça dos candidatos como critério de admissão em universidades.
Entre suas frases que ficaram famosas ao explicar o voto contrário à decisão da maioria naquele caso está a de que “considerar a raça irrelevante na lei não significa que ela seja irrelevante na vida”.
Mas não foi apenas nos casos envolvendo questões raciais que a atuação de Jackson chamou a atenção. Seu amplo histórico profissional antes de chegar à Corte inclui experiência como defensora pública, algo inédito entre os membros do tribunal e que, segundo analistas, trouxe uma nova perspectiva para debates envolvendo os direitos dos réus em processos criminais.
A juíza também demonstrou independência e, muitas vezes, busca por consenso. Ela nem sempre votou ao lado das outras duas integrantes da chamada ala liberal (formada por juízes indicados por presidentes democratas), Sonia Sotomayor e Elena Kagan (ambas indicadas por Barack Obama).
Em alguns votos, Jackson chegou a causar surpresa ao se aliar a Neil Gorsuch, indicado por Donald Trump e considerado um dos juízes mais conservadores do tribunal.
“Há muitos egos grandes no tribunal. Para um juiz recém-chegado ser uma figura de influência na Corte, não pode lhe faltar confiança. E isso não falta a ela”, observa Greenfield.
“Ela teve uma carreira muito distinta antes de ingressar no tribunal, foi juíza, tem as mais altas credenciais.”
Defensora pública
Quando o nome de Jackson foi incluído na lista de Biden para uma vaga na Suprema Corte, seus apoiadores ressaltaram que ela era a candidata ideal não apenas por ser uma mulher negra, mas por sua carreira longa e variada, não apenas como juíza federal, mas com outras experiências menos comuns entre os membros do tribunal.
Ela é a primeira integrante da Corte a ter atuado como defensora pública, cargo que ocupou de 2005 a 2007, representando réus pobres que não tinham como pagar um advogado. Segundo analistas, essa experiência está refletida em uma preocupação sobre as maneiras como a lei afeta as pessoas comuns.
Jackson nasceu em Washington e cresceu em Miami. Ao anunciar sua nomeação, a Casa Branca destacou que “seus pais frequentaram escolas primárias segregadas no Sul e, depois, faculdades e universidades historicamente negras” (como são chamadas as instituições de ensino superior estabelecidas para receber estudantes negros antes Lei dos Direitos Civis de 1964, que proibiu a segregação no país).
“Quando a juíza Jackson disse ao seu orientador do ensino médio que queria estudar em Harvard, o orientador disse que ela não deveria ter objetivos ‘tão altos'”, diz o texto de apresentação da Casa Branca.
Jackson não seguiu o conselho e se formou na Faculdade de Direito de Harvard, uma das universidades mais prestigiosas do país, iniciando uma carreira de sucesso.
Jackson atuou durante vários anos em grandes escritórios de advocacia e, entre 1999 e 2000, trabalhou na Suprema Corte, na equipe do juiz Breyer, seu mentor e a quem acabou substituindo.
Quando foi indicada por Biden, ela atuava como juíza do Tribunal de Apelação dos EUA para o Circuito do Distrito de Columbia (onde fica Washington, a capital americana).
Antes disso, foi juíza de um tribunal distrital federal durante oito anos e integrou durante quatro anos a Comissão de Sentenças dos EUA, órgão bipartidário responsável por determinar regras para a aplicação de penas no sistema de justiça criminal do país. Lá, ressalta a Casa Branca, Jackson se dedicou a “reduzir as disparidades nas sentenças e garantir que fossem justas”.
Ao chegar à Suprema Corte, Jackson demonstrou já de início um nível de confiança considerado incomum entre calouros. Analistas lembram que, historicamente, os novos juízes costumam passar seu período inicial tentando se aclimatar, com uma postura mais cautelosa até entenderem melhor o funcionamento do tribunal e se sentirem mais confortáveis.
Mas Jackson não seguiu esse padrão. Desde o primeiro dia na Corte, a juíza fez diversas perguntas, muitas delas, segundo analistas, expondo um conhecimento profundo sobre a História e a Constituição do país e uma capacidade de traduzir o impacto das decisões do tribunal na vida das pessoas, especialmente membros de minorias.
Segundo o site Empirical SCOTUS (referência à sigla pela qual a Suprema Corte é conhecida), editado por especialistas em direito e que reúne análises e dados sobre o tribunal, entre os nove juízes, Jackson foi a que mais falou durante os argumentos orais. Historicamente, ela também foi a juíza caloura que mais se pronunciou durante seu primeiro ano de atuação.
“Em uma época diferente, com mais progressistas na Corte, mais mulheres, se a Corte não fosse tão polarizada, ela talvez pudesse ter optado por adotar um ritmo um pouco mais lento”, observa Greenfield.
“Mas ela sabe que o tribunal está em um momento perigoso em termos de legitimidade, que os progressistas estão em menor número. Ela não pode se dar ao luxo de sentar e (apenas) observar e aprender por alguns anos”, afirma o professor.
Votos dissidentes
Jackson também se destacou por ter redigido votos dissidentes individuais já em seu primeiro ano no tribunal, o que não acontecia com um juiz calouro há mais de 30 anos. Como comparação, a imprensa americana lembrou que o atual presidente da Corte, John Roberts, levou 16 anos para redigir um voto dissidente sozinho.
No caso, a Corte decidiu por oito votos contra um em favor de um empregador que buscava indenização por perdas causadas por uma greve. Jackson foi a única voz contrária e, em seu voto dissidente, escreveu que a decisão poderia causar uma “erosão no direito de fazer greve”.
O estilo de Jackson logo ficou claro também nos argumentos orais. Em seu segundo dia, em um caso sobre mudanças na delimitação das zonas eleitorais do Alabama que poderiam diluir o peso do voto dos eleitores negros, a juíza iniciou uma série de perguntas aos advogados do Estado.
O argumento dos representantes do Alabama era o de que a 14ª e a 15ª emendas à Constituição americana, adotadas em 1868 e 1870, após o fim da Guerra Civil, proibiam negar a alguém igualdade de proteção perante a lei ou direito ao voto por conta de sua raça. Por isso, diziam os advogados, a raça dos eleitores não deveria ser levada em conta ao delimitar as zonas de votação.
Jackson rebateu esse argumento ao lembrar que essas emendas, após a abolição da escravidão no país, tinham como objetivo reparar os danos históricos sofridos por pessoas negras, que haviam tido menos oportunidades e menos direitos que os cidadãos brancos.
Segundo Jackson, as emendas não eram neutras em relação à raça e, ao adotá-las, o governo havia explicitamente considerado a questão racial e buscava corrigir a discriminação do passado. Seus argumentos convenceram a maioria dos juízes, e ela acabou do lado vencedor, com cinco votos contra quatro.
Sua atuação no caso sobre o uso de ações afirmativas em universidades, um dos mais importantes do ano na Corte e no qual foi voto vencido, gerou manchetes nos jornais e ressaltou as diferenças de opinião com Clarence Thomas, o único outro juiz negro na atual composição da Corte.
Thomas favorece uma interpretação da Constituição que não leva a raça em consideração e criticou o que considera a posição de Jackson de que “estamos todos inexoravelmente presos numa sociedade fundamentalmente racista, com o pecado original da escravatura e a subjugação histórica dos negros ainda a determinar as nossas vidas hoje”.
Na fase de argumentos orais, Jackson citou o caso hipotético de dois estudantes, um branco, que poderia mencionar em sua candidatura as gerações anteriores de sua família que haviam estudado na mesma universidade, e um negro, que não poderia usar como critério a ser avaliado o fato de seus antepassados terem sido escravizados e impedidos de frequentar a instituição.
A juíza perguntou se seria justo e legal que o histórico do estudante branco pudesse ser levado em conta, mas não o do candidato negro, já que muitos pontos estariam relacionados a sua raça e a de seus antepassados.
“Eu apreciei tanto a sofisticação de sua análise e o fato de ela ter desafiado a premissa de que a Constituição exige que não se considere a questão racial”, diz Bridges. “Sua posição é a de que a raça (dos candidatos) é importante.”
Alianças
Sua experiência como defensora pública também foi visível em votos e opiniões em diversos casos, especialmente os relacionados à justiça criminal. Com apenas um mês na Corte, ela foi voto contrário na decisão do tribunal de não aceitar um caso relacionado à pena de morte, salientando que era importante porque “a vida do réu está em jogo”.
Em outro caso, relacionado ao direito de um prisioneiro de contestar sua condenação, ela foi voto vencido em uma decisão de seis votos contra três, e escreveu estar “profundamente perturbada” com as implicações constitucionais e a possibilidade de encarceramento de pessoas possivelmente inocentes.
Disse ainda que a maioria no tribunal estava “fechando injustificadamente todos os caminhos para que certos réus garantam uma consideração significativa de suas reivindicações de inocência”.
“O que definitivamente percebi na sua abordagem, tanto nas opiniões quanto nas perguntas durante as argumentações orais, é uma consciência de que o Estado (algumas vezes pode) abusar do seu poder”, diz Bridges.
“Como defensora pública, você representa os indivíduos mais marginalizados, pessoas vulneráveis que estão enfrentando o poder do Estado de negar a liberdade”, ressalta a professora.
Segundo Bridges, essa consciência do grande poder do Estado e do risco de que algumas vezes se torne abusivo aproximou Jackson de juízes como Gorsuch, que é conservador mas também tem uma posição muitas vezes cética em relação ao governo.
Ambos formaram alianças em diferentes casos em que o poder do Estado ameaçava os direitos de indivíduos. “Eles concordam com a necessidade de restringir o poder do governo”, salienta Bridges.
Bridges afirma que alianças entre liberais e conservadores não são inéditas na Corte, mas podem se tornar mais raras devido ao que ela e outros analistas consideram uma extrema politização atual do tribunal.
“Acho que será mais raro ver essas alianças baseadas não em (aspectos) partidários, mas em raciocínio estritamente legal”, afirma.
Greenfield lembra que Jackson e Gorsuch são juízes jovens, que esperam permanecer por décadas no tribunal e sabem que é importante construir boas relações. “Ser capaz de falar com alguém com quem você nem sempre concorda é uma habilidade muito importante na Corte”, salienta.
Limites e influência
Apesar de em várias ocasiões ter demonstrado sua independência e da atenção que muitos de seus votos dissidentes geraram, o site Empirical SCOTUS indica que Jackson concordou com a maioria em 84% das decisões, mais do que Sotomayor e Kagan, as duas outras juízas da ala liberal.
As três juízas estão em posição minoritária, já que a ala conservadora, composta por juízes indicados por presidentes republicanos, conta com seis integrantes, três deles nomeados por Donald Trump. A entrada de Jackson, única indicada até agora por Biden, não mudou a composição ideológica do tribunal, já que Breyer, a quem substituiu, também pertencia à ala liberal.
Não há limite de idade na Suprema Corte dos Estados Unidos, e uma vaga só é aberta quando algum dos juízes morre ou decide por conta própria se aposentar. Diante disso, é difícil saber se ou quando Jackson e seus colegas liberais passarão a integrar o bloco majoritário, o que daria mais impacto às suas posições.
“Acho que Jackson vai passar boa parte de sua carreira escrevendo como (voto) dissidente”, salienta Bridges. Mas a professora ressalta que um juiz nem sempre precisa estar na maioria para influenciar argumentos legais.
“Nós estamos ouvindo, estamos lendo”, ressalta. “Eu estou desenvolvendo seus argumentos em artigos, outras pessoas estão desenvolvendo seus argumentos em cortes inferiores, cortes de apelação, tribunais estaduais. Ela está inspirando muita gente.”