Contaminação da água e do solo com substâncias tóxicas, esvaziamento de lençóis freáticos, bloqueio de sinal de telefone e internet, limitação do território destinado à agricultura familiar e ao plantio de subsistência, êxodo rural, desemprego, redução das florestas e dos biomas nativos, e empobrecimento do solo, que há 50 anos recebe um único tipo de plantio. Esses foram alguns dos prejuízos apresentados por autoridades de seis comunidades quilombolas do sul da Bahia em decorrência da monocultura do eucalipto, tema da audiência pública realizada no último 29 de março no campus Paulo Freire da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), em Teixeira de Freitas (BA).
A realização do evento foi uma iniciativa do procurador da República José Gladston Viana Correia, membro do Ministério Público Federal (MPF) na Bahia (BA) e do defensor público Federal Vladimir Correia, integrante da Defensoria Pública da União (DPU), com o objetivo de mapear os impactos sociais, culturais, econômicos e ambientais da monocultura do eucalipto nos territórios das comunidades quilombolas do extremo sul da Bahia.
A audiência contou com a presença de representantes das comunidades quilombolas de Cândido Mariano, Helvécia, Rio do Sul, do município de Nova Viçosa, de Volta Miúda (Caravelas), Vila Juazeiro (Ibirapuã) e Mota (Itanhém). Estiveram presentes, ainda, representantes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), em Eunápolis, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi), da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), da empresa Suzano Papel e Celulose, além de servidores das prefeituras de Ibirapuã, Caravelas e Ithanhém.
O evento teve início com as apresentações dos integrantes da Comunidade Quilombola de Volta Miúda, Fábio Leocádio e a mestra quilombola Brasília Aleixo, que compuseram a mesa junto com os membros do MPF e da DPU. Em seguida a palavra foi assegurada aos demais representantes quilombolas, que destacaram a importância da reunião para a sobrevivência e resistência das comunidades. Em seguida a palavra foi assegurada aos demais representantes quilombolas, que consideraram a audiência pública importante para buscar a implementação de políticas públicas que garantam seus direitos e viabilizem a sobrevivência das comunidades.
A professora da Comunidade de Helvécia, Jane Santos Krull, ressaltou que o encontro é um ponto de partida significativo no processo de visibilidade quilombola para que as soluções propostas aos transtornos enfrentados por estes povos sejam concretas e efetivas. Em demais discursos realizados pelos representantes das comunidades, foram levantadas questões sobre como o direito de existir e viver, a partir de seu modo de vida, está sendo impedido e por qual razão ainda enfrentam muitos obstáculos, boa parte em decorrência da cultura do eucalipto em terras tradicionais.
A fisioterapeuta da comunidade de Cândido Mariano, Cátia Souza, questionou a efetividade das medidas públicas, que, segundo ela, não tem alcançado as comunidades: “O impacto causado pela monocultura do eucalipto reflete no futuro das famílias quilombolas, que estão lidando com altos índices de desemprego em consequência da redução de seus territórios, que prejudicou as plantações e a execução de atividades relacionadas que garantiam a sua fonte de renda”.
A representante questionou os requisitos exigidos para as escassas oportunidades oferecidas pela empresa às comunidades no processo de produção de eucalipto. “Como podem exigir experiência se não oferecem oportunidade? Não existe uma responsabilidade efetiva por parte da empresa. Na região, houve transformações gigantescas, e o que antes eram produções agrícolas diversificadas hoje se reduziu a cuidar de madeira” (sic), afirmou Cátia.
Após intervalo, os representantes das comunidades quilombolas expuseram mais dificuldades derivadas de 50 anos da monocultura de eucalipto na região. Segundo apresentado:
– As comunidades estão estagnadas, sem área disponível para onde crescerem. A nova geração de descendente dos quilombos tem deixado suas comunidades e ido para centros urbanos por não haver mais terreno para a prática tradicional de agricultura familiar e plantio de subsistência tornando impossível a sobrevivência entre seus pares;
– Os pesticidas utilizados em grande quantidade nas plantações de eucalipto ficam infiltrados no solo e nos rios e chegam a todo o território quilombola, contaminando com substâncias tóxicas a sua produção, os seus alimentos, a sua água, e, consequentemente, a própria comunidade;
– A quantidade de água destinada pelas empresas na monocultura do eucalipto tem reduzido continuamente os níveis de lençóis freáticos (águas subterrâneas) o que provoca escassez de água para as comunidades tradicionais e, ainda, para a manutenção das florestas nativas;
– A altura das árvores de eucalipto e a quantidade delas plantadas nas monoculturas acaba por criar um obstáculo físico às ondas eletromagnéticas transmitidas pelas antenas de celular e de internet. Isso impacta, consequentemente, no direito a comunicação das comunidades tradicionais, que são prejudicadas em seu acesso a tecnologias e ferramentas de comunicação ;
Sobre o último ponto, o senhor Benedito Quintiliano (Comunidade Rio do Sul) destacou que, apesar de a audiência pública ter sido transmitida via YouTube pelo MPF para alcançar o maior público interessado possível, muitos integrantes das comunidades não conseguiram acessar a transmissão ou enviar manifestações por não terem o acesso à internet.
Na parte final da audiência pública, os representantes das comunidades quilombolas apresentaram uma Carta com a compilação de todos os prejuízos causados pela monocultura de eucalipto na região e pela atuação das empresas responsáveis. Logo após, integrantes das comunidades junto à mesa condutora e aos demais órgãos participantes, definiram os encaminhamentos cabíveis.
O assessor técnico da Coordenação de Políticas para Povos Tradicionais da Sepromi, Fábio de Santana, comprometeu-se a levar a situação para conhecimento da secretária Fabya Reis e, ainda, para deliberação na próxima reunião da Comissão Estadual para a Sustentabilidade dos Povos e Comunidades Tradicionais (CESPCT). Segundo ele, a Sepromi vai inicialmente dialogar com as secretarias e órgãos relacionados a demandas apresentadas na Carta e agendar reuniões com as comunidades, a DPU e o MPF para retornar as informações obtidas.
Os representantes da Suzano, Leandro Lima e Whizilene Gonçalves, destacaram que a organização está aberta ao diálogo e disposta a avançar e alcançar os melhores resultados para as partes interessadas. Eles explicaram que há rigor na obediência de normas legislativas, dado que “os licenciamentos são realizados através de pesquisa de campo e mapeamento” nos territórios de sua atuação. Os integrantes da empresa afirmara, ainda, que houve impactos positivos provenientes das ações e programas realizados pela empresa na região.
Em sua fala, o procurador da República José Gladston Viana Correia reafirmou o compromisso do MPF na defesa do direito das Comunidades Tradicionais e destacou a importância de estreitar e desburocratizar a comunicação entre as comunidades e o MP e a DPU.
“Vamos seguir com o processo e em diálogo com a comunidade e com os órgãos relacionados. É necessária também a participação do poder executivo em todo o processo de articulação de melhorias para com as comunidades, por isso considero inadmissível a ausência de um representante dos órgãos de meio ambiente do governo nessa audiência pública”, afirmou o procurador.
O defensor Público Federal Vladimir Correia destacou a importância de integrar membros das universidades nas tratativas das questões quilombolas, iniciativa que já tem apresentado resultados positivos em situações semelhantes. O defensor afirmou que a DPU e o MPF devem seguir cobrando os órgãos relacionados, como o Inema, a Sema e, especialmente, o Incra.
“O Incra tem uma dívida histórica com as comunidades quilombolas; a titulação das terras é a questão central de toda essa situação. Enquanto não for titulada a terra esse processo deve ficar cada vez mais conflituoso”, finalizou o defensor.