“Tudo que corre, grita, trabalha, tudo que transporta e carrega é negro”, escreveu, em 1858, o viajante alemão Robert Avé-Lallemant ao chegar em Salvador.
Menos de um ano antes da passagem do viajante pela Bahia, no primeiro dia de junho de 1857, Salvador acordou diferente. A cidade, uma das que mais recebeu pessoas escravizadas durante o período escravocrata brasileiro, amanheceu deserta da sua principal mão de obra: os homens negros.
Sem barulho nas ruas, sem anúncio, sem manifestações públicas. Na ocasião, houve quem não entendesse o que ocorria. No dia seguinte, o Jornal da Bahia relatava o dia em que “os pretos ocultaram-se”.
Não haviam carregadores de cadeiras, ‘meio de transporte’ mais comum na cidade, nem de objetos. Da alfândega nada saiu.
O dia em que Salvador parou é considerado por pesquisadores, como professor e historiador João José dos Reis, como o “primeiro movimento grevista envolvendo todo um setor sensível da classe trabalhadora urbana no Brasil”. O baiano é autor do livro “Ganhadores: A greve negra de 1857 na Bahia” (2019).
Transporte de senhoras e senhores era feito por escravizados ou trabalhadores de ganho nas cadeiras de arruar — Foto: Fotógrafo não identificado/ Acervo Instituto Moreira Salles
A ação de resistência de homens negros – e com papel determinantes das mulheres negras – em meio a um regime escravocrata é página fundamental para se chegar ao momento atual de relações raciais e trabalhistas no Brasil.
🙍🏿♂️Os ganhadores: a classe de trabalhadores formada por mulheres e homens negros usavam a expressão ‘de ganho’ porque quando escravizados, dividiam a remuneração do ganho com seus senhores a uma taxa combinada que deveria ser paga a cada semana. Quando eram libertos ou livres, os ganhadores ficavam com todo valor do seu trabalho. Os ganhadores da Bahia no século 19 eram a grande maioria africanos.
💪🏿Os serviços: os ganhadores prestavam variados tipos de serviço. Da venda de comida aos carregadores de cadeiras, passando por carregadores de cargos e objetos que chegavam da alfândega. Normalmente, as mulheres ganhadeiras faziam trabalhos com alimentação ou lavagem de roupa, entre outros.
🤝🏿A estrutura de trabalho: os ganhadores se reuniam em grupos chamados ‘cantos’. Cada ‘canto’ era uma pequena organização que oferecia serviços como carregadores de objetos e de passageiros nas chamadas cadeiras de arruar, que eram conduzidas por dois ganhadores. Normalmente, canto podia ter de 4 a 8 homens.
🚫O endurecimento da lei: desde as primeiras revoltas do século 19, especialmente a dos Malês, em 1835, havia um movimento forte de criminalização da pobreza e do surgimento de mecanismos de vigilância em Salvador e nos seus arredores.
⚠️Os motivos da greve: o maior controle policial e o aumento de impostos foram os principais motivos que levam à greve negra de 1857. A Câmara Municipal de Salvador decidiu por em prática uma lei que obrigava os carregadores a usarem uma placa pendurada no pescoço para identificação, e o pagamento de impostos. O primeiro dia de paralisação era o também o dia que entrava em vigor a nova lei.
📜O que dizia a nova lei: com a nova medida o custo da taxa para um trabalhador de ganho era de 2 mil réis de matrícula, e 3 mil réis pela placa com o número da matrícula com uso obrigatório no pescoço. As taxas deveriam ser pagas pelos próprios negros. Com a quantia, na época, era possível comprar 15 quilos de carne. A lei valeria apenas aos ganhadores, e não para as mulheres ganhadeiras. É importante destacar que os donos das pessoas escravizadas foram contrários à lei por questões econômicas, já que teriam os ganhos reduzidos.
✋🏿Parou tudo: o movimento grevista começou no dia 1º de junho e durou cerca uma semana. A ação foi organizada alarde pelos trabalhadores dos ‘cantos’. O lugar onde ‘tudo que corre, grita, trabalha, transporta e carrega” era negro deixava de funcionar justamente pela falta deste povo.
✊🏿A primeira conquista: Já no segundo dia de paralisação, em meio ao caos que a cidade já vivia, o governo decidiu suspender a cobrança da taxa. Ainda assim, os trabalhadores mantiveram o movimento.
🫵🏼Obrigados a irem às ruas: No terceiro dia de greve, os escravizados começaram a ser registrados à força pelos seus senhores. No entanto, os negros que eram obrigados a irem para as ruas ouviam cantos humilhantes e até sofriam violência. Alguns piquetes foram feitos para impedir o trabalho de quem era obrigado.
👵🏿✊🏿O papel das mulheres: as mulheres seguiam livres para trabalhar pela cidade, carregando informações. Durante a greve o papel das mulheres, as ganhadeiras, foi muito importante já que elas sustentam os ganhadores durante o período. Elas dominavam o comércio de alimentos.
Vendedoras de Angu: ganhadoras vendiam alimento — Foto: Jean Baptiste Debret/Slavery Images via BBC
🔊A revolta das elites: no quinto dia de greve, o Jornal da Bahia chegou nas ruas com manchete que diz que a Bahia estaria sendo “governada por africanos”, em uma crítica ao movimento e ao poder público.
🍽️Os impactos: A greve teve impacto direto no dia a dia da cidade, especialmente no abastecimento. Como este passava pelo porto, a região foi o local mais representativo do movimento grevista.
🤝🏾As conquistas: Com a greve o imposto foi temporariamente suspenso. Além disso, a obrigatoriedade dos libertos apresentarem fiança foi extinta. A declaração de ‘nada consta’ emitida por uma autoridade policial seguiu em vigor. Já chapa de identificação também ficou, mas invés de ser paga, passou a ser gratuita. Elas caíram em desuso com o passar do tempo, mas logo após o período da greve, sua ausência gerou prisões e espancamentos.
📖História nos livros: a obra mais completa sobre o movimento é o “Ganhadores: A greve negra de 1857 na Bahia”. Livro de 2019, do professor e historiador baiano João José dos Reis.
🎬Memória nas telas: atualmente os cineastas baianos Luana Rocha e Victor Uchôa preparam uma produção seriada, que entre outros temas de resistência negra, retrata a greve negra de 1857.