De acordo com BBC News Brasil, a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva reforça uma nova “onda rosa” na América Latina, segundo um dos mais respeitados estudiosos da esquerda no continente. Mas desta vez o giro político da região é muito mais moderado que no início dos anos 2000. Na primeira leva, o venezuelano Hugo Chávez deu a tônica. Nesta, os protagonistas são menos radicais: Andrés Manuel López Obrador no México, Alberto Fernández na Argentina, Luis Arce na Bolívia, Gabriel Boric no Chile. O que explica essa mudança?
A BBC News Brasil conversou com Steve Ellner, professor aposentado da Universidade de Oriente da Venezuela e editor-associado da revista acadêmica Latin American Perspectives. Ele é autor de inúmeros livros sobre a esquerda no continente, incluindo Latin America’s Pink Tide (A Onda Rosa na América Latina, 2019) e Latin America’s Radical Left (A Esquerda Radical na América Latina, 2014). Na entrevista, realizada antes do primeiro turno, Ellner afirma que a nova onda rosa é contida por fatores políticos e econômicos.
A seguir, trechos da conversa
BBC News Brasil – Temos visto a ascensão de vários governos de esquerda na América Latina: Argentina, Chile e até na Colômbia. E agora Lula pode vencer no Brasil. O sr. acredita que estamos vendo uma nova onda rosa no continente ou é apenas uma continuação da anterior?
Steve Ellner – É definitivamente uma nova onda. É bem diferente da primeira. A primeira onda foi liderada por [Hugo] Chávez [na Venezuela], que era radical. Então a primeira onda de esquerda foi radical, embora Lula não o fosse, mas havia uma motivação radical por trás dela. Naturalmente, o preço das exportações, o preço das commodities básicas permitiu que os governos da primeira onda tomassem medidas ousadas.
A segunda onda começou no México com [Andrés Manuel] López Obrador e depois com [Alberto] Fernández na Argentina. Fernández é muito mais moderado do que Cristina Kirchner [ex-presidente e atual vice-presidente]. Acho que é significativo que um economista moderado tenha sido eleito na Bolívia [Luis Arce] e que o candidato [derrotado da esquerda] no Equador, Andrés Araus, também fosse um economista moderado. Portanto, esta segunda onda é muito mais moderada. Até Maduro, na Venezuela, moderou seu discurso e está tentando implementar políticas que poderiam ser consideradas neoliberais.
BBC News Brasil – Por que esta segunda onda é mais moderada? O sr. mencionou o preço das commodities, mas será que a direita também está mais articulada agora?
Steve Ellner – Eu acho que esses dois fatores são muito importantes. E o terceiro é a ausência de um Chávez. Mesmo um marxista não pode negar a importância das lideranças. Chávez foi um ator-chave, e sua radicalização teve um efeito de cascata em toda a região. Outro fator foi que a China se tornou uma potência e eles estavam comprando muitas commodities primárias. Agora é bem diferente, com uma situação econômica muito precária tanto no Norte quanto no Sul globais.
A primeira onda foi muito bem sucedida na criação de unidade e na promoção da unidade internacional. A Unasul [União de Nações Sul-Americanas] unificou o continente. Mesmo governos de direita, como o de [Sebastian] Piñera, do Chile, aderiram ao projeto da Celac [Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, fundada em 2010]. Assim, houve uma aproximação entre os esquerdistas, como Chávez e os conservadores. Isso também é bem diferente da situação atual. Você tem uma polarização muito maior, em certo sentido. Como você mencionou, a direita se sente muito mais fortalecida na era Trump e mesmo depois que Trump deixou o cargo, basta olhar os resultados eleitorais na Europa [onde a direita continua obtendo vitórias eleitorais]. A direita é muito poderosa, cresceu muito nos últimos 20 anos, então acho que ajuda a explicar por que a segunda onda rosa é muito mais moderada do que a primeira.
BBC News Brasil – Que papel Lula poderia desempenhar nesta segunda onda?
Steve Ellner – O passado de Lula, penso eu, é muito importante porque ele emergiu de movimentos sociais e muitos movimentos sociais o estão apoiando. Acho que a inspiração dos movimentos sociais é extremamente importante porque, embora na política econômica ele seja moderado, nas políticas sociais não é.
Na política externa, Lula toma posições bastante ousadas às vezes, como quando reconheceu a Palestina como um Estado independente [em dezembro de 2010]. Ele foi muito criticado em Washington por conta disso. E ele enfrentou os Estados Unidos – discretamente – em várias ocasiões. Além disso, impulsionou os BRICS, que representaram uma maior coordenação entre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Penso que, na política externa, Lula vai desempenhar um papel importante, um papel independente. Olhe para López Obrador: ele não é particularmente esquerdista em assuntos internos, mas é um líder no contexto da segunda onda de governos progressistas na região.
BBC News Brasil – O sr. disse que a primeira onda rosa foi muito bem coordenada. A segunda também poderia ser?
Steve Ellner – Acho que isso é definitivamente uma possibilidade. Se Lula vencer, acho que será uma revitalização da unidade latino-americana. López Obrador promoveu a Celac, foi uma iniciativa do México. Se Lula for eleito, acho que a unidade da América Latina será revitalizada, não sei através de que mecanismo particular, se seria o Mercosul ou a Celac ou um novo movimento, uma nova organização, mas acho que sua eleição levará definitivamente a uma maior unidade latino-americana. O grupo de Lima, que foi criado para isolar a Venezuela, foi um fiasco, um completo fiasco. Acho que veremos uma nova aproximação destes diferentes governos e isso fará muito pela integração latino-americana.
BBC News Brasil – O sr. vê a possibilidade de a Venezuela ser reabilitada e reintegrada no continente?
Steve Ellner – Acho que sim. O governo de Fernández na Argentina já tomou uma posição mais centrista em relação à Venezuela. Se Lula for eleito, isso encorajará outros países a tomar uma posição mais favorável, mais amistosa em relação à Venezuela e também em relação a Cuba. Acho provável que isso aconteça.
BBC News Brasil – Eu me pergunto como isto poderia acontecer, porque a Venezuela é muito criticada até mesmo por algumas pessoas da esquerda no Brasil. Em outros países, é a mesma coisa.
Steve Ellner – Isso é verdade, há críticas porque existem diferenças ideológicas. Mas este também foi o caso durante a primeira onda. Chávez teve dificuldades para se tornar membro do Mercosul, por causa da resistência do parlamento do Paraguai e também do Brasil. Mas não foi Lula, foram os partidários da direita no Brasil que colocaram obstáculos para que a Venezuela se tornasse membro pleno do Mercosul. Na primeira onda rosa, houve uma divisão entre os países da ALBA [Alternativa Bolivariana para as Américas] – Nicarágua, Equador, Bolívia e Venezuela – e os governos moderados. E havia críticas de parte a parte, mas isso não representou de fato um obstáculo à integração na América Latina.
BBC News Brasil – Qual será a posição dos Estados Unidos neste novo contexto?
Steve Ellner – Essa é uma boa pergunta, e é difícil de responder, porque a direita aqui nos EUA é extremamente barulhenta. Além disso, a mídia americana, mesmo a mídia liberal, é bastante de direita quando se trata de política externa. Tudo isso será influenciado pelas próximas eleições [para o Congresso em 8 de novembro]. Mas mesmo deixando isso de lado, o Partido Democrata não tem de fato uma ala progressista no que diz respeito à política externa.
Mas eu não gostaria de fazer especulações, porque agora há muitos países da América Latina que se opõem às sanções contra a Venezuela. À medida que o equilíbrio de poder mude na região, algumas pessoas que resistiam a reconhecer o governo venezuelano podem mudar de opinão e moderar os seus pontos de vista. E isso poderia acontecer também no caso dos EUA.
Durante o governo de Trump, falava-se muito de democracia na Venezuela. Sob Biden, a negociação é sobre política econômica. Se Maduro aceitar as políticas neoliberais e abrir as portas para o capital estrangeiro, então poderemos ver o levantamento de algumas das sanções.