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quarta-feira 19 de abril de 2023 às 08:29h

Ileísmo: a antiga técnica usada por alguns políticos que nos ensina a pensar de forma mais sábia

CURIOSIDADES, NOTÍCIAS


Como alguém que escreve sobre psicologia, já me deparei com centenas de estratégias baseadas em evidências para pensar melhor. Poucas se mostraram tão úteis para mim quanto o ileísmo.

De forma simplificada, o ileísmo é a prática de falar sobre si mesmo na terceira pessoa, em vez da primeira. É um recurso retórico frequentemente usado por políticos para tentar dar às suas palavras um ar de objetividade.

Em seu relato da Guerra da Gália, por exemplo, o imperador Júlio César escreveu “César vingou o povo” em vez de “Eu vinguei o povo”.

A pequena mudança linguística parece colocada de modo a fazer com que a declaração se aproxime mais com um fato histórico, registrado por um observador imparcial.

Para o ouvido moderno, o ileísmo pode soar um pouco bobo ou pomposo – a ponto de ridicularizarmos celebridades que optam por falar de si na terceira pessoa.

Pesquisas recentes na área de psicologia apontam, contudo, que ele pode trazer benefícios cognitivos concretos. Se estamos tentando tomar uma decisão difícil, falar de nós mesmos na terceira pessoa pode ajudar a neutralizar as emoções que podem desviar nosso pensamento, permitindo-nos encontrar uma solução mais sábia para o nosso problema.

Paradoxo de Salomão

Para compreendermos esses benefícios, devemos primeiro examinar as maneiras pelas quais os cientistas medem o grau de sabedoria do raciocínio.

Igor Grossmann, da Universidade de Waterloo, no Canadá, foi um dos pioneiros do estudo científico sobre a sabedoria. Grossmann baseou-se no trabalho de numerosos filósofos para catalogar uma série de “componentes metacognitivos” – humildade intelectual, reconhecimento dos pontos de vista dos outros e busca por resolução, por exemplo – que são comumente considerados essenciais para uma tomada de decisão sensata.

Representação do paradoxo de Salomão em manuscrito alemão do século 15

Representação do paradoxo de Salomão em manuscrito alemão do século 15 CRÉDITO,GETTY IMAGES

Em um de seus primeiros estudos, o pesquisador pediu aos participantes que pensassem em voz alta sobre vários dilemas mundanos enquanto psicólogos independentes avaliavam suas respostas a partir desses critérios.

Grossmann percebeu que esses testes de “raciocínio sábio” eram melhores do que os testes de QI para prever a satisfação geral das pessoas com a vida e a qualidade de seus relacionamentos. Uma observação que indicava que a pesquisa estava capturando algo único sobre as habilidades de raciocínio humano.

Os estudos posteriores de Grossmann revelaram que o nível de sabedoria do raciocínio das pessoas pode depender do contexto. Mais particularmente, ele descobriu que as pontuações que ele atribuía ao raciocínio sábio tendiam a ser muito mais altas ao considerar as situações das pessoas sobre terceiros do que em relação a seus próprios dilemas pessoais. O cientista chamou esse fenômeno de “paradoxo de Salomão”, em referência ao famoso rei bíblico por aconselhar os outros com sabedoria, enquanto tomava uma série de decisões pessoais desastrosas que acabaram deixando seu reino no caos.

O problema parece ser que, ao fazermos escolhas pessoais, ficamos muito imersos em nossas emoções, que obscurecem nosso pensamento e nos impedem de colocar nossos problemas em perspectiva.

Se recebi feedback negativo de um colega, por exemplo, meu sentimento de constrangimento pode me levar a ficar excessivamente na defensiva. Isso poderia me induzir a descartar os conselhos que ele me deu sem mesmo avaliar se poderiam me ser úteis a longo prazo.

Como ser mais sábio

O ileísmo poderia ajudar a resolver o paradoxo de Salomão?

A ideia faz sentido intuitivamente: ao mudarmos a chave para a terceira pessoa, nossas descrições dos problemas começarão a soar como se estivéssemos falando de outra pessoa, e não de nós mesmos. Essa sensação de distanciamento nos permitiria analisar a situação em perspectiva mais ampla, em vez de ficarmos presos em nossos próprios sentimentos.

E foi exatamente isso que Grossmann descobriu em um estudo com Ethan Kross na Universidade de Michigan. Eles observaram que as pessoas que empregam o ileísmo para falar sobre seus problemas mostraram maior humildade intelectual, capacidade de reconhecer a perspectiva dos outros e disposição para chegar a um acordo – aumentando suas pontuações gerais de raciocínio sábio.

Os estudos mais recentes apontam que o uso regular do ileísmo pode trazer benefícios duradouros ao nosso pensamento.

Em um experimento feito com Abigail Sholer, Anna Dorfman e outros pesquisadores, Grossmann pediu aos participantes que mantivessem durante um mês um diário no qual descrevessem situações que estavam vivenciando no momento.

Metade do grupo foi instruído a escrever em terceira pessoa, enquanto a outra metade foi instruída a escrever na primeira pessoa. O raciocínio dos participantes foi avaliado no início e no final dos testes. Como esperado, os pesquisadores descobriram que, ao longo do processo, os participantes que foram encorajados a usar o ileísmo em seus diários viram um aumento em suas pontuações de raciocínio sábio.

Ao nos estimular a colocar nossos problemas em perspectiva, o uso do ileísmo também pode nos ajudar a chegar a respostas mais equilibradas para as tensões diárias. As pessoas que completaram o diário na terceira pessoa relataram emoções mais positivas após eventos desafiadores, em vez de se concentrarem apenas em sentimentos como tristeza, frustração ou desapontamento.

Com base nessas descobertas, hoje aplico o ileísmo a todas as decisões, pequenas e grandes. Quer esteja enfrentando provações no trabalho, conflito com meus amigos ou com familiares, descubro que alguns momentos contemplando meus problemas a partir de uma perspectiva em terceira pessoa me ajudam a ver o problema com mais clareza.

Por David Robson – Escritor de ciência e autor de The Expectation Effect: How Your Mindset Can Transform Your Life (“O Efeito da Expectativa: Como sua Mentalidade Pode Transformar sua Vida”, em tradução literal), publicado pela Canongate (Reino Unido) e Henry Holt (EUA).

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