Ministério da Justiça dá autonomia para estados escolherem entre três tipos de acionamento, mas lista 16 situações que deverão ser filmadas. Diretrizes surgem após SP favorecer que conteúdo fosse selecionado por PMs.Dias depois de o governo de São Paulo lançar o edital de licitação para a compra de 12 mil novas câmeras corporais portáteis para a Polícia Militar do estado, o Ministério da Justiça divulgou nesta terça-feira (28/05) diretrizes para uso desses equipamentos por agentes de segurança pública em todo o país.
Um dos pontos centrais da discussão é o modo de acionamento da câmera, e o governo federal deixou essa decisão a cargo dos estados que quiserem adotar o uso do equipamento. O documento estabelece três possibilidades:
- Gravação ininterrupta durante todo o turno do policial;
- Acionamento remoto, feito por meio do sistema, após decisão da autoridade competente;
- Acionamento manual pelo próprio policial.
O Ministério da Justiça definiu 16 situações que deverão ser filmadas, independentemente do protocolo de acionamento da câmera adotado. Entre elas, estão: atendimento de ocorrências; buscas pessoais; controle de distúrbios, interdições ou reintegrações de posse; cumprimentos de mandados judiciais; escoltas de presos; intervenções e resoluções de crises, motins e rebeliões no sistema prisional; patrulhamento preventivo e ostensivo ou ações que possam resultar em prisões, atos de violência, lesões corporais ou mortes.
Os estados não são obrigados a seguir as diretrizes, mas os que o fizerem terão acesso a recursos federais, como forma de incentivo.
O documento diz que “o repasse de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública e do Fundo Penitenciário Nacional para a implementação ou a ampliação de projetos de câmeras corporais para os órgãos de segurança pública está condicionado à observância das diretrizes estabelecidas”.
Os estados deverão definir as punições para os policiais que não acionarem as câmeras corretamente.
Ao anunciar as diretrizes, o Ministério da Justiça também destacou que as as câmeras corporais reduzem o uso de força e as reclamações de conduta do policial e a subnotificação de casos de violência doméstica
Maioria dos estados que adotam câmera usam gravação ininterrupta
A portaria destaca como preferencial o modelo de filmagem contínua, em que não cabe ao policial a decisão e a ação de ligar a câmera. Esse protocolo é seguido por 8 dos 10 estados do país que adotam câmeras corporais nos uniformes de policiais militares, de acordo com levantamento do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP).
São Paulo, Bahia, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro e Roraima adotam o modelo de filmagem contínua. Em Santa Catarina e no Rio Grande do Norte, a câmera é acionada apenas durante as ocorrências. No Ceará e Espírito Santo as câmeras são usadas apenas pela Polícia Penal, e não pela PM.
Com a publicação de edital para a compra de novas câmeras, feita na semana passada, o governo de São Paulo orientou uma mudança na forma de acionamento desses equipamentos. Deixará de ser contínuo e autônomo e passará a ser feito de forma intencional e manual pelo policial. Ou seja, os policiais poderão escolher o que desejam ou não filmar.
Está sendo proposto também novas funcionalidades nas câmeras da polícia paulista, como leitor de placa de carro, processamento de imagens para identificar objetos e reconhecimento facial.
Entidades dedicadas ao tema da segurança pública criticaram a mudança em São Paulo e apontaram que grande parte do sucesso da política de câmeras corporais se deve ao modelo de gravação ininterrupta.
Desde a implantação dos equipamentos no estado, em 2020, houve uma redução significativa do uso da força por policiais militares. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública identificou queda de 62,7% na letalidade policial entre 2019 e 2022, com maior ênfase nas regiões onde as câmeras foram usadas.
Especialistas apontam que esse modelo favorece a transparência, protege o policial de falsas denúncias, produz provas para o sistema de Justiça e reduz os níveis de uso da força letal.
“É muito raro você ver políticas públicas que tão rápido dão resultados tão fortes, e isso é muito atribuído à gravação ininterrupta”, afirma Daniel Edler, pesquisador do NEV-USP.
Segundo ele, a mudança proposta pelo governo de Tarcísio de Freitas transforma a câmera corporal mais em uma produtora de evidências para ajudar na condenação do que para a transparência do policial.
Impactos na redução do uso da força policial
As diretrizes divulgadas hoje foram debatidas por meses com representantes das secretarias de segurança estaduais e da sociedade civil. Uma consulta pública foi realizada, onde policiais e entidades do setor puderam dar contribuições.
A decisão de dar opções de acionamento das câmeras foi uma forma de conciliar as recomendações de especialistas com o incômodo de parte dos policiais em relação à violação de intimidade que a gravação contínua pode representar, como em momentos de pausa e idas ao banheiro.
Segundo Edler, contudo, há evidências de que o uso de gravação ininterrupta representa impacto maior na redução do uso indevido da força.
Ele cita um estudo conduzido pela universidade americana Stanford, com 470 policiais militares do Rio de Janeiro que atuavam na Rocinha entre 2015 e 2016. De acordo com a pesquisa, em sete de cada dez ocorrências, os policiais desobedeceram o protocolo da câmera corporal.
“O argumento de que a gente garante que eles vão gravar porque o protocolo de operação vai ser esse, e se não gravarem vão sofrer penas, não faz sentido. A evidência mostra que se você não tem uma automatização da gravação, o policial não grava todas as suas interações com a população”, afirma Edler.