Após a série de casos de desvios de recursos do fundão eleitoral em 2018, a fiscalização do uso de um volume ainda maior de verba pública na campanha deste ano preocupa autoridades eleitorais pelo país.
Na eleição municipal de outubro, o fundo eleitoral será de R$ 2 bilhões, ante R$ 1,7 bilhão aplicados dois anos atrás.
Desta vez, porém, os recursos serão injetados em um número muito maior de candidaturas, espalhadas por 5.570 municípios. Se nas eleições estaduais e nacionais de 2018 eram 29 mil candidatos, agora o número de inscritos pode chegar a 500 mil.
As candidaturas ainda terão à disposição verbas públicas do fundo partidário, que soma ao todo mais R$ 1 bilhão.
Episódios como o laranjal do PSL, em que candidaturas laranjas de mulheres de baixa votação receberam vultuosos repasses públicos, despertam o temor de que a prática se dissemine por pequenas localidades, com parca estrutura fiscalizatória do poder público.
No interior dos estados, é comum que um único promotor eleitoral seja o responsável pela fiscalização em um conjunto de municípios.
Uma possível irregularidade é a apropriação ilegal de recursos públicos por meio de contratos fictícios de fornecimento de serviços.
“A prova de prestação de serviços fictícios é bem difícil, pela questão do rastro. Para demonstrar que a prestação de serviço de marketing é fictícia, seria preciso [fiscalizar] na hora em que estiver ocorrendo a fraude”, diz o promotor Rodrigo Zílio, que coordena a área eleitoral na primeira instância no Rio Grande do Sul.
Ele disse que já houve conversas com a PF sobre como atuar para reprimir esse tipo de irregularidade. Um obstáculo é o fato de as prestações serem finalizadas só depois das eleições, o que priva as autoridades de informações que poderiam embasar investigações.
Em Minas, uma alternativa encontrada pela Promotoria Eleitoral é convocar dirigentes partidários para orientar e advertir sobre possíveis sanções relacionadas a desvios de verba.
O promotor Edson Resende de Castro, que coordena a área eleitoral no estado, diz que o plano inclui ainda promover reuniões com candidatas mulheres para “lembrar que os recursos devem ser empregados em suas campanhas e que não devem participar de algo que vá desvirtuar esses valores”.
A atual legislação exige que 30% das candidaturas sejam do sexo feminino e que 30% do fundo eleitoral seja destinado a candidatas mulheres. Esse fundo, custeado pelos cofres públicos, foi criado para financiar campanhas eleitorais após a proibição da doação de empresas, decidida pelo Supremo Tribunal Federal em 2015.
Castro, que lidera um grupo nacional de promotores dessa área, afirma que a ideia é que cada cartório eleitoral tenha um servidor que atue na área de controle e que tenha a atribuição de fazer diligências, como visitas a prestadores de serviço.
Em uma eleição tão capilarizada, as autoridades eleitorais contam com a fiscalização dos próprios políticos para detectar fraudes. Denúncias feitas por adversários dos candidatos costumam formar parte relevante dos casos que chegam para serem averiguados pelo Ministério Público Eleitoral.
“Neste ano a gente deve investir um pouco mais nisso, fazer mais diligências exatamente em razão desse histórico de [irregularidades de] 2018”, diz o promotor de Minas.
O chefe do Ministério Público Eleitoral em São Paulo, procurador Sérgio Medeiros, vê outro entrave na atuação dos órgãos de controle na eleição: o enxugamento dos orçamentos.
“O Ministério Público, Justiça, todos temos que fiscalizar a correta aplicação desses fundos. Temos, sim, que nos adaptar [a essa atribuição]. Mas temos que reconhecer que existe uma grande dificuldade para todos os órgãos públicos decorrente das restrições orçamentárias. Vamos ampliar o número de vagas? Vamos fazer concurso para contratar mais servidores? Não vamos.”
O principal caso de desvio de recursos públicos na campanha de 2018 envolve o atual ministro do Turismo, Marcelo Alvaro Antônio, que naquele ano se elegeu deputado federal pelo PSL de Minas.
Após uma série de reportagens da Folha e uma investigação da Polícia Federal, ele foi denunciado em outubro passado pelo Ministério Público de Minas sob acusação de desviar verbas do fundo eleitoral destinadas a candidaturas femininas.
Quatro candidatas do partido no estado, então comandado por Álvaro Antônio, receberam R$ 279 mil do fundo público, mas tiveram, juntas, apenas 2.000 votos e não apresentaram sinais evidentes de que tenham realizado campanha. Parte desses recursos, à época, foi parar em empresas ligadas a assessores e ex-assessores do gabinete dele na Câmara dos Deputados.
Além do caso do ministro do Turismo, outro alvo de suspeitas sobre a aplicação irregular de recursos públicos foi o deputado federal pernambucano Luciano Bivar, presidente do PSL, partido pelo qual Jair Bolsonaro se elegeu presidente.
Duas funcionárias do PSL, Maria de Lourdes Paixão e Érika Santos, receberam respectivamente R$ 400 mil e R$ 250 mil do PSL. Paixão, que teve apenas 274 votos, informou em sua prestação de contas naquele ano que gastou 95% do dinheiro em uma única gráfica.
A PF fez buscas em endereços de Bivar e na sede do partido no Recife em outubro passado.
Outro caso envolve a suplente de deputada federal Maria Aparecida dos Santos, mãe do fundador do PROS, Eurípedes Macedo Júnior. Ela teve o diploma cassado no Tribunal Regional Eleitoral de Goiás no fim do ano passado após não apresentar documentação comprovando a destinação dos recursos do fundo.
Acusada de pagar despesas até de uma aeronave com esse dinheiro, pela decisão, ela terá que devolver R$ 1,2 milhão.
Em novembro passado, a PF deflagrou operação contra Sonia Alves, uma ex-candidata a deputada estadual do DEM no Acre que recebeu R$ 240 mil do diretório nacional da sigla, mas teve apenas seis votos.
O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) fala que a melhor maneira de coibir esse tipo de desvio das verbas públicas é ampliando o trabalho das áreas de inteligência da Justiça Eleitoral, que incluem a análise das prestações de contas entregues por partidos e candidatos.
Técnicos da corte eleitoral, que organiza as eleições, atuam cruzando as informações das receitas e despesas dos candidatos com bases de dados públicas, em busca de indícios de movimentações atípicas que podem apontar irregularidades.
Assim, essa área técnica, por exemplo, analisa junto a informações da Receita a capacidade de serviço de empresas incluídas na lista de fornecedores, verifica se cabos eleitorais estão em bases de dados de pessoas que morreram e cruza os valores de notas fiscais eletrônicas com despesas com prestadores de serviço.
Outros focos são empresas de dirigentes partidários suspeitas de receber recursos dos candidatos e a checagem da movimentação bancária das candidaturas.
Se houver indícios de irregularidades, os técnicos comunicam as autoridades locais, como o Ministério Público, que podem, por exemplo, abrir investigação e pedir diligências para a polícia.
Eron Pessoa, que é responsável pela assessoria de exame de contas eleitorais e partidárias do TSE, diz que, diante da “magnitude da eleição e os valores envolvidos”, é preciso direcionar a fiscalização por meio do trabalho de inteligência.
“É o maior montante da história das eleições desde a redemocratização do país. Isso acaba gerando um fluxo de documentos e de dados muito grande para a fiscalização da regularidade do gasto. Aumenta na mesma proporção”.