A apenas 12 dias do prazo atualmente previsto para a saída do Reino Unido da União Europeia, 31 de outubro, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson, um ardente eurocético, apontou uma arma para a cabeça dos parlamentares — e perdeu .
Johnson, que chegou ao poder no final de julho, eleito por seus pares do Partido Conservador com a promessa de promover um Brexit a qualquer custo, foi mais uma vez derrotado em uma queda de braço com o Legislativo. Numa votação que aconteceria quase às cegas, ele não conseguiu impor o acordo de transição de última hora que assinou com seus pares do bloco europeu na última quinta-feira.
Diante da falta de um estudo oficial sobre o impacto econômico do pacto, e da desconfiança de que Johnson e seus aliados poderiam retirar o Reino Unido da União Europeia sem que o documento estivesse regulamentado em leis — na prática promovendo uma saída sem acordo, de consequências imprevisíveis —, uma aliança de conservadores dissidentes e trabalhistas preferiu adiar a decisão. Agora, cobram a apresentação pelo governo, na terça-feira, de um pacote de regulamentação.
Em tese, a postergação da votação deveria levar Johnson a pedir aos europeus mais um adiamento, para 31 de janeiro, da data do Brexit — seria o terceiro de uma saída originalmente prevista para 31 de março. Na prática, os próximos passos do processo são incertos, já que Johnson resiste fortemente a isso, ao mesmo tempo em que a incapacidade do Legislativo britânico de chegar a um consenso sobre os termos do rompimento com a União Europeia reacende o debate sobre um novo referendo popular, como pedem os milhares de manifestantes que saíram às ruas de Londres neste sábado.
A derrota de Johnson é mais uma de uma série na estratégia que escolheu de se impor ao Parlamento pela força. O político que no referendo de 2016 apoiou entusiasticamente a campanha do Leave — prometendo a volta do Reino Unido às glórias do Império Britânico e ignorando a questão irlandesa que viria a ser um dos principais empecilhos à implementação do divórcio —, mostrou-se arrogante ao assumir a cadeira de primeiro-ministro depois de contribuir para a queda da correligionária Theresa May.
Primeiro, Johnson quis impor um Brexit sem acordo, impedindo os deputados de discutir a questão. Sua tentativa de suspender o Parlamento por cinco semanas naufragou, barrada pela Justiça e por uma mobilização parlamentar que logrou ao menos adiar, com uma lei, a consumação de um divórcio abrupto . Pressionado, Johnson teve que negociar um pacto com a UE, e nele fez concessões que dissera que jamais faria.
O acordo negociado por Johnson é considerado, por diferentes motivos à esquerda e à direita, pior do que aquele alcançado por May e que foi rejeitado três vezes pelos parlamentares.
De um lado, apesar das promessas dos conservadores nacionalistas de que a Irlanda do Norte jamais seria escanteada do Reino Unido, na prática a província, que manterá as normas e tarifas comerciais do bloco europeu, ficará separada do resto do país por barreiras comerciais no Mar da Irlanda. A proposta que Johnson aceitou é a mesma que May havia rejeitado em fevereiro de 2018, dizendo que isso “jamais poderia ser aceitável para qualquer primeiro-ministro britânico”.
De outro, o acordo feito por Johnson descartou a manutenção do alinhamento britânico com as normas de proteção social, trabalhistas e ambientais da Europa, em nome do sonho da criação de uma desregulada “Cingapura no Tâmisa”, como definiu Lionel Laurent, colunista da agência Bloomberg. No futuro, no entanto, o Reino Unido terá que negociar um novo acordo de comércio com a UE, e para isso será necessário algum grau de convergência nessas áreas.
Do ponto de vista da economia do Reino Unido, o acordo de Johnson também é pior do que o de May. Um estudo independente feito por um grupo de estudos coordenado pela London School of Economics mostra que ele resultará em uma queda de 7% na renda per capita dos britânicos em 10 anos. Economistas ouvidos pela Bloomberg avaliaram que a perspectiva de crescimento anual da economia britânica seria de menos de 1,5%, contra 1,7% no caso do acordo de transição de May e 1,9% caso o Reino Unido continuasse na UE.
Caso consiga concretizar a saída — o que ainda é um desfecho provável — , Johnson aposta suas fichas em um acordo de livre comércio com os Estados Unidos. Donald Trump, porém, não é o líder mais propício para fazer tratados do tipo “ganha-ganha” com outros países, ainda que Londres seja historicamente o mais fiel aliado de Washington. Como disse o diplomata francês Gérard Araud, ex-embaixador do seu país nos EUA, em entrevista recente ao jornal O Globo, “quando o Reino Unido negociar um acordo de livre comércio com os EUA, haverá sangue britânico nos muros”.