Polícia Federal vai ouvir nesta próxima quarta-feira (26) o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) como parte da investigação sobre quem foram os mentores intelectuais das invasões de 8 de janeiro ao Supremo Tribunal Federal, Congresso Nacional e Palácio do Planalto.
O inquérito tramita no STF e o relator, ministro Alexandre de Moraes, havia determinado no dia 14 de abril, que a PF agendasse o depoimento em até dez dias.
Os policiais devem questionar Bolsonaro segundo Nathalia Passarinho, da BBC News, sobre mensagens postadas nas redes sociais em que ele questiona o resultado da eleição e sobre o fato de não ter determinado, quando ainda presidente, a retirada dos acampamentos bolsonaristas em frente aos quartéis.
Mas, para que as investigações resultem numa denúncia contra o ex-presidente, os investigadores terão que encontrar evidências de que os atos de Bolsonaro resultaram nas invasões aos prédios públicos.
Bolsonaro tem negado envolvimento no 8 de janeiro. Enquanto ainda estava nos EUA, disse, sem apresentar provas,
“As manifestações da direita ao longo de 4 anos foram pacíficas e não temos nada a temer. Jamais o nosso pessoal faria o que foi feito agora no dia 8 [de Janeiro]. Cada vez mais nós temos certeza que foram pessoas da esquerda que programaram aquilo tudo”, disse o ex-presidente à emissora NBC.
A BBC News Brasil ouviu criminalistas para entender que crimes podem ser considerados nessa investigação, quais as possibilidades de o inquérito terminar em acusação penal contra o ex-presidente, e que condutas de Bolsonaro que devem ser investigadas.
Os crimes
Segundo os professores de processo penal Juliana Bertholdi e Gustavo Badaró, se os investigadores encontrarem provas do envolvimento de Bolsonaro com os atos de 8/1, ele poderá ser enquadrado em algum (ou alguns) desses três crimes: o do Art. 286 do Código Penal, e os dos artigos 359-L e 359-M, que punem quem atenta contra o Estado Democrático de Direito.
O Art. 286 do Código Penal prevê pena de detenção de três a seis meses ou multa a quem incita publicamente a prática de crime.
Já o Art. 359-L pune com reclusão de 4 a 8 anos quem: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais.”
E o Art. 359-M pune com reclusão de 4 a 12 anos quem: “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. Ou seja, pune quem tenta dar um golpe de Estado.
Até agora, 100 pessoas que participaram dos acampamentos e invasões foram denunciadas. Muitas delas foram enquadradas nos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado, além de associação criminosa armada e danos ao patrimônio público.
“Em relação ao Bolsonaro, obviamente ele não invadiu nenhum estabelecimento, nem permaneceu acampado em nenhum quartel. E não se tem notícia de que ele tenha financiado, num sentido material do termo, as invasões”, diz o professor de Processo Penal da Universidade de São Paulo Gustavo Badaró.
“Mas o que se coloca é se ele, fora da Presidência da República ou no final do mandato, incitou ou instigou a população na prática desses atos.”
Segundo Juliana Bertholdi, professora de Processo Penal da PUC-PR, durante o depoimento, a Polícia Federal vai tentar esclarecer até que ponto as condutas de Bolsonaro e outros integrantes de seu governo contribuíram para as invasões do 8 de janeiro.
“Nós estamos tentando entender como toda essa articulação para os atos do dia 8/1 aconteceu. Existem diferentes formas do articulador participar dessa organização. Ele pode ser um financiador, ele pode ser um mentor intelectual ou alguém que participou desse planejamento”, explica.
“No depoimento, a força policial vai tentar recolher o máximo de informações possíveis sobre aquele fato que aconteceu e, a partir dessas informações, tentar tipificar ou não as condutas. Vai decidir se aquela pessoa deve ser indiciada ou não.”
Condutas de Bolsonaro
Ao pedir que Bolsonaro fosse investigado no inquérito que apura quem foram os autores intelectuais das invasões, a Procuradoria-Geral da República citou uma postagem do ex-presidente nas redes sociais feita no dia 10 de janeiro, dois dias após os atos.
A publicação, que rapidamente viralizou antes de ser apagada da conta de Bolsonaro, diz: “Lula não foi eleito pelo povo. Ele foi escolhido e eleito pelo TSE e o STF”.
Na representação feita ao Supremo, o subprocurador-geral da República, Carlos Frederico Santos, sugere que Bolsonaro fez incitação pública à prática de crimes contra o Estado de Direito ao questionar o resultado eleitoral.
Para ele, ainda que a postagem tenha sido feita após os episódios de violência e vandalismo do dia 8 de janeiro, as condutas do ex-presidente devem ser investigadas no inquérito sobre a autoria intelectual dos ataques.
“Não se nega a existência de conexão probatória entre os fatos contidos na representação e o objeto deste inquérito, mais amplo em extensão. Por tal motivo, justifica-se a apuração global dos atos praticados antes e depois de 8 de janeiro de 2023 pelo representado”, escreveu.
Para o professor da USP Gustavo Badaró, essa postagem tem relevância por ter sido feita pouco após as invasões.
Mas a Polícia Federal deverá avaliar também outras condutas do ex-presidente, como o fato de ele não ter desmobilizado as manifestações de bolsonaristas em frente aos quartéis antes de deixar a Presidência.
“As pessoas protestando pedindo abertamente a prática de um ato ilegal ficaram lá nos acampamentos pelo tempo que quiseram. Foram mobilizadas numa área de segurança que era uma área pertencente ao quartel”, lembra Badaró.
“Acho que o ponto principal da investigação vai ser esse: o fato de Bolsonaro, que é ex-militar, não ter agido para desmobilizar os acampamentos quando era presidente e, portanto, superior hierárquico do ministro da Defesa e de todas as forças.”
Outras condutas que, segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, podem ser investigadas incluem os vários momentos em que Bolsonaro questionou o sistema eleitoral, em postagens, entrevistas e lives e em que defendeu os protestos nos acampamentos, antes da invasão.
Também deve ser levado em consideração pela PF o fato de o governo do ex-presidente ter pressionado para que o Exército pudesse auditar as eleições.
Dificuldade de estabelecer nexo causal
Mas, os criminalistas destacam que não será fácil estabelecer uma relação de causalidade entre as falas e omissões de Bolsonaro e os atos de 8 de janeiro.
Juliana Bertholdi explica que, para o ex-presidente ser enquadrado como mentor intelectual dos crimes de golpe de Estado e atentado violento ao Estado de Direito, é preciso ficar claro que ele tinha a intenção de induzir seus eleitores a invadir os Três Poderes.
“A gente tem que demonstrar que a pessoa tinha a intenção de, com aquele comportamento, atingir aquele resultado danoso. Então, a gente entra num espaço de subjetividade e complexidade bastante significativo”, disse à BBC News Brasil.
Para a criminalista, Bolsonaro foi cauteloso em suas manifestações, conseguindo se comunicar com seus apoiadores mais radicais sem incitá-los de maneira direta a cometer crimes.
“A forma como ele construiu o discurso foi seguramente muito pensada, porque em nenhum momento ele afirma o que ele parece querer afirmar. Ele sempre se utiliza de subterfúgios na hora de fazer as afirmações”, diz.
Gustavo Badaró também destaca que será um desafio estabelecer um nexo causal entre as falas de Bolsonaro e as invasões. Por isso, segundo ele, a PF deverá construir uma narrativa que agregue diferentes condutas e falas como evidência do possível envolvimento do ex-presidente com os atos de 8/1.
“A gente não tem um ato decisivo que a gente possa falar que claramente foi crime. A questão é verificar se, pelo conjunto da obra, os pequenos atos, sinalizações e omissões têm, do ponto de vista jurídico, relevância causal para o 8 de janeiro”.