Infelizmente, as campanhas presidenciais sempre foram marcadas pela ausência de discussões mais elevadas sobre os grandes problemas do país. Salvo exceções, os concorrentes gastam a maior parte do tempo atacando uns aos outros, num festival recheado de palavras de baixo calão. Sobra ainda espaço para rompantes de demagogia e promessas inexequíveis. A disputa de 2022 repete essa tradição lamentável, dentro de um cenário preocupante. O país acaba de sair da fase mais crítica da maior emergência sanitária da história, a situação econômica é ruim e o mundo atravessa um período de incertezas com a guerra da Ucrânia e uma possibilidade de nova reorganização da cadeia produtiva mundial, com menos dependência de países como a China (algo que pode ser uma oportunidade para o Brasil, mas que nenhum dos postulantes sequer parece alerta para esse cenário).
Se não bastasse, um nível inédito de polarização entre os dois atuais favoritos, que ocupam espectros políticos opostos, elevou muito o nível de ataques. “Fascista, não fez nada pelo povo”, disse recentemente o petista Luiz Inácio Lula da Silva, atual líder nas pesquisas, a respeito do segundo colocado, Jair Bolsonaro. Na campanha pela reeleição, por sua vez, o presidente já tratou o rival como “bandido maior que não tem um dedo na mão”. Os concorrentes que vêm logo abaixo dos dois, o pedetista Ciro Gomes e o tucano João Doria, não ficam muito atrás, com a diferença que vêm batendo duro tanto em Lula quanto em Bolsonaro. “Mesmo princípios inegociáveis como a defesa da democracia estão sendo ignorados. O atual quadro de ataques às instituições afasta investimentos e atravanca o desenvolvimento do país”, afirma Armínio Fraga, empresário, sócio da Gávea Investimentos e ex-presidente do Banco Central. “Está faltando substância para o debate eleitoral. Pelo que se vê dos pronunciamentos, os fatores importantes ocupam pouco ou quase nada dos discursos.”
Um exemplo atual da superficialidade da discussão é a economia, apontada como o principal problema do país por 50% dos brasileiros, segundo pesquisa Genial/Quaest feita nos dias 5 a 8 de maio. A considerar uma declaração recente do líder nas pesquisas Lula à revista americana Time, o debate detalhado sobre essa questão deve ser negligenciado. Ou seja: a questão mais importante do Brasil atual deve simplesmente ser ignorada. “Não discutimos políticas econômicas antes de vencer as eleições. Em vez de perguntar o que eu vou fazer, apenas olhe para o que eu fiz”, disse o petista, esquecendo que o cenário de vinte anos atrás era outro — o país vivia na estabilidade e era beneficiado por ventos a favor que embalavam a economia de todo o planeta.
Nessa seara econômica, antes dominada pelo Posto Ipiranga, Bolsonaro mantém uma postura semelhante, distanciando-se completamente do assunto. Inflação recorde, PIB ridículo, desemprego nas alturas? O presidente age como se nada disso fosse culpa dele ou sua responsabilidade. De cercadinho em cercadinho ocupado por plateias amigas, atua como se fosse um candidato de oposição e sai distribuindo bordoadas ao STF, às urnas eletrônicas, à vacina e a todos os seus inimigos reais e imaginários. Enquanto isso, seu governo, que terceirizou o controle do Orçamento para o Congresso, vai desrespeitando o teto de gastos, acumulando um crescimento pífio na economia e apenas engatinhando na agenda de redução da inchada e custosa máquina pública, aquela que distribui privilégios para várias castas de servidores. Em 2021, a dívida pública chegou a 5,6 trilhões de reais, um aumento de 12% em relação a 2020. Neste ano, a previsão é que o déficit fiscal seja de mais de 67 bilhões de reais — o que é agravado por promessas eleitoreiras de reajustes para o funcionalismo, como as que Bolsonaro vem fazendo a setores como a Polícia Rodoviária Federal. “Os candidatos deveriam indicar quais são as prioridades, onde vão gastar e onde não vão”, afirma o economista Rodrigo Reis Soares, do Insper.
O problema não fica apenas no discurso dos postulantes, mas também nos próprios programas de governo. Sem pormenorizar seus projetos até aqui, a maioria das campanhas argumenta que tem até 15 de agosto para entregar ao TSE sua plataforma por escrito. Desde 2009, a elaboração do documento passou a ser exigida pela Justiça Eleitoral, embora a lei não obrigue o eleito a cumprir o que pôs no papel. Em 2018, por exemplo, o programa apresentado por Bolsonaro, um amontoado de itens por vezes desconexos, prometia de forma genérica “emprego, renda e equilíbrio fiscal, oportunidades e trabalho para todos, sem inflação”. Seu rival no segundo turno, Fernando Haddad (PT), já falava em revogar o teto de gastos e a reforma trabalhista, aprovada em 2017, sem especificar de que forma o faria e o que colocaria no lugar.
Agora, Lula volta a flertar com essas ideias, embora admita não mais revogar a reforma trabalhista, mas revisá-la — novamente, sem especificar em que pontos. As propostas do PT estão sendo feitas por 26 grupos temáticos que abrangem diversas áreas, de mercado de trabalho a minorias, sob coordenação do ex-ministro Aloizio Mercadante. Os economistas Guilherme Mello e Gabriel Galípolo, ex-CEO do Banco Fator, também colaboram. O candidato, porém, quando abre a boca só assusta os eleitores do centro ao mencionar que a classe média não deveria ter dois televisores em casa. Ele próprio, claro, não segue tal conselho. Justiça seja feita, uma das exceções nesse deserto de ideias (embora distribua caneladas também) é o tucano João Doria, candidato que enfrenta enorme resistência dentro do PSDB. A primeira — e muito acertada — medida foi anunciar sua equipe econômica: as economistas Ana Carla Abrão e Zeina Latif, a advogada Vanessa Rahal e o ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles. Eles agora preparam propostas a partir de três eixos (justiça social, proteção ao meio ambiente e democracia e transparência).
Existem muitos desafios para o país nas mais diversas áreas e com perspectivas de solução que variam entre o curto, médio e longo prazos. No campo da educação, que tem escapado totalmente do debate, o Brasil tem gargalos estruturais históricos. Enquanto nos Estados Unidos 70% da população era alfabetizada em 1800, apenas 2% dos brasileiros sabiam ler e escrever. Avançamos, vale ressaltar, nessa área, mas as conquistas recentes ainda são tímidas para as necessidades do mundo atual. “Um adolescente dos anos 1980 tinha, em média, apenas três anos de estudo. Conseguimos colocar os jovens na escola, mas a produtividade de um trabalhador dos anos 1980 é parecida com a de hoje”, afirma Marcelo Neri, diretor da Fundação Getúlio Vargas. Para agravar, a evasão escolar aumentou na pandemia, o que deve fazer com que a escolaridade média do trabalhador brasileiro em breve diminua. Pela segunda vez, o país não deve atingir as metas do Plano Nacional de Educação instituído em 2014 para ser cumprido até 2024. “A meta mais difícil de ser atingida é investir 10% do PIB em educação. Assustadoramente, nenhum dos candidatos fala sobre o Plano”, diz Daniel Cara, da Faculdade de Educação da USP.
Diante do aumento da miséria e dos índices de pessoas que passam fome, outra área que necessita ser revista em um novo governo é a das políticas sociais. O Brasil vinha aprimorando ao longo dos anos os programas de transferência de renda condicionada, como Bolsa Escola e Bolsa Família, de modo a garantir mais recursos para os mais necessitados, mas o Auxílio Brasil, formulado pelo atual governo, deixou de considerar o contexto das famílias. “Uma família mais pobre ou famílias maiores devem receber mais. A gente tem a tecnologia operacional para fazer isso, mas abandonou”, diz Neri. Além dos critérios de distribuição, uma questão importante para esses projetos é determinar as contrapartidas exigidas pelo Estado, defendidas por todos os especialistas, e estabelecer uma porta de saída para as famílias que evoluírem ao longo dos anos. Caso contrário, o programa vira apenas um modo moderno de manipulação eleitoral, estratégia que foi utilizada tanto por Lula, nos anos de Bolsa Família, como por Bolsonaro, que pretende crescer no Nordeste embalado pelo Auxílio Brasil.
Enquanto as acusações e bazófias de parte a parte proliferam, um tema absolutamente ignorado até aqui é qual política teremos em relação ao meio ambiente, tema de grande visibilidade mundial. O Brasil, que antes liderava essas discussões e poderia se beneficiar economicamente neste momento, atraindo vários investimentos estrangeiros, virou um pária internacional. Em relação ao atual governo, é possível imaginar o que será feito caso seja reeleito: continuar a perder as oportunidades que aparecem. Mas seria muito interessante que os presidenciáveis se posicionassem pelo menos sobre três aspectos: a questão indígena, intrinsecamente ligada à ambiental, o combate imediato ao desmatamento e ao garimpo ilegal, com um choque de gestão e de discurso, e a revogação de mais de uma centena de normas que atrapalham tremendamente a chegada desses investimentos. “Desde outubro de 2019 não se cobram multas ambientais no Brasil porque o governo inventou um truque, uma câmara de conciliação de multas ambientais, que simplesmente paralisou tudo”, afirma Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima.
A falta de aprofundamento em discussões cruciais para o futuro de um país parece ter se intensificado com o fenômeno das redes sociais e a cultura do WhatsApp e afins. No exterior, tal dinâmica também ganhou força nos últimos anos. Mesmo a maior democracia do mundo não está imune hoje a algum nível de superficialidade e a propostas demagógicas nas campanhas presidenciais, como o muro que Donald Trump prometeu erguer na fronteira com o México — obra que não terminou. Mas tal pobreza no debate atinge um grau singular no Brasil. Lá fora, na maior parte do tempo, os debates que são assistidos em todo o mundo costumam levar os candidatos a assumir posições firmes sobre temas polêmicos, sobretudo de política externa, e a submeter suas propostas a um amplo escrutínio da sociedade – como ocorreu com Barack Obama e sua reforma do sistema de saúde na campanha pela reeleição, em 2012. Na França, onde os eleitores recebem em casa e nas ruas catálogos com as promessas dos candidatos, Emmanuel Macron e Marine Le Pen travaram recentemente um debate intenso sobre políticas de imigração, um dos temas que mais mobilizam os eleitores. “Por aqui, não vejo propostas sequer para a saúde, uma área fundamental. Os candidatos estão num momento de fazer plano genérico, como ‘reestruturar o SUS’. O que vai ser feito mesmo eles não põem no papel”, diz Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da pasta.
A menos de cinco meses das eleições, uma grande oportunidade para elevar o nível da discussão no Brasil será o início do calendário de debates entre os candidatos. Espera-se que a troca de xingamentos e palavrões dê, finalmente, lugar a uma apresentação de propostas concretas para os grandes e complexos desafios que teremos nos próximos anos. Estão previstos dezenove encontros do tipo somando primeiro e segundo turno, sendo que o primeiro deles ocorrerá em agosto na CNN. Em parceria com O Estado de S. Paulo, SBT e a rádio Novabrasil, VEJA também vai promover encontros tanto nas eleições para presidente como para governadores de alguns estados. Nessas ocasiões, a ideia é confrontar os pretendentes a esses cargos com os reais desafios do país. “Tenho esperança de que, com o passar do tempo, com sabatinas, entrevistas e debates, os aspectos caros ao Brasil ganhem projeção”, diz Armínio Fraga. “Os principais assuntos envolvem pilares fundamentais, passando, por exemplo, pelo fortalecimento dos sistemas institucionais de controle e pelo foco na produtividade da economia, além da criação de uma rede de proteção social robusta”, completa.
Os pontos destacados por Armínio são fundamentais. É preciso mesmo acabar com a nefasta tradição brasileira de campanhas com muitas brigas e poucas ideias. Pesquisas que circulam dentro dos partidos mostram que, tirando radicais de esquerda ou de direita, a maior parte dos eleitores cansou de discussões estéreis sobre ideologia e de propostas estapafúrdias. Os candidatos, porém, continuam acreditando que o posicionamento sobre algo trará ônus ao seu desempenho. “Ele pensa (o candidato) que, ao assumir um compromisso, vai descontentar alguns setores e não contentar praticamente ninguém”, lembra Eduardo Giannetti, que participou de três campanhas elaborando as propostas da ex-presidenciável Marina Silva (Rede). Neste ano, ao que tudo indica, será o contrário. Existe um enorme espaço para quem se mostrar capaz de apresentar soluções viáveis para as graves questões de hoje que afetam diretamente o bolso dos eleitores. Talvez não seja uma eleição de ódio, mas de esperança. Para os candidatos de olho no Palácio do Planalto, convenhamos, não há melhor argumento do que esse para a necessidade urgente de elevar o nível do debate com sugestões racionais, bem planejadas e que façam — objetivo maior — o país crescer e prosperar.
Com reportagem de Victor Irajá
Publicado em VEJA de 25 de maio de 2022, edição nº 2790