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domingo 12 de junho de 2022 às 10:38h

Como vírus podem ser armas poderosas para a cura do câncer

NOTÍCIAS, SAÚDE


Os vírus sempre foram encarados como grandes vilões da saúde — noção que se fortalece ainda mais durante uma pandemia como a que vivemos, em que o causador da covid esteve associado a 20 milhões de mortes até agora.

Mas, dentro da oncologia, especialidade da medicina que lida com o câncer, alguns desses agentes infecciosos passam a ser vistos cada vez mais como aliados: os vírus podem se tornar uma ferramenta valiosa para tratar uma série de tumores, apontam especialistas.

Atualmente, diversos grupos de pesquisa avaliam a possibilidade de usar os chamados vírus oncolíticos como uma maneira de atacar diretamente as células cancerosas ou de incentivar uma resposta mais robusta do sistema imunológico contra essas unidades doentes.

O exemplo mais recente desse empreendimento científico é o CF33-hNIS Vaxinia, uma virusterapia desenvolvida pelo City of Hope, hospital localizado nos Estados Unidos, e pela farmacêutica australiana Imugene.

O produto traz agentes infecciosos da mesma família da varíola que foram modificados em laboratório para atacar especificamente as células tumorais.

Em testes pré-clínicos, feitos com amostras de células e cobaias, essa estratégia foi capaz de reduzir diversos tipos de tumores, como aqueles que aparecem no intestino grosso, nos pulmões, nas mamas, nos ovários e no pâncreas.

Resta saber se esse mesmo efeito acontece em seres humanos. No final de maio, os cientistas começaram os testes clínicos, que envolvem voluntários.

Na primeira fase dos estudos, que envolverá 100 pacientes, a meta é conferir se o produto, injetado diretamente no tumor ou aplicado por meio de infusões na veia, é realmente seguro e não provoca efeitos colaterais.

Os resultados do experimento devem sair em até 24 meses.

“Esperamos aproveitar a promessa da virologia e da imunoterapia para o tratamento de uma ampla variedade de cânceres que são mortais”, antevê o cirurgião oncológico Yuman Fong, um dos criadores da virusterapia no City of Hope, em comunicado à imprensa.

Ação dupla

Para entender como a virusterapia funciona na prática, precisamos antes saber como os vírus atuam na natureza.

Os vírus são patógenos extremamente simples, cuja única função se resume a invadir as células de um ser vivo e “sequestrar” aquele maquinário biológico para criar novas cópias de si mesmo.

Essas novas cópias, por sua vez, vão repetir o processo enquanto durar a infecção.

Nesse rito de invasão, sequestro e replicação, as células afetadas pelos vírus não resistem e morrem.

Ilustração da replicação viral
Depois de invadir a célula (estrutura verde da ilustração), o vírus (em vermelho) se replica e libera milhares cópias de si mesmo – CRÉDITO, SCIENCE PHOTO LIBRARY

A partir da observação desse mecanismo viral, alguns cientistas começaram a especular: será que não é possível utilizar o mesmo princípio para atacar somente as células que formam o tumor?

Essa é a premissa básica da virusterapia: encontrar na natureza, ou desenvolver em laboratório, patógenos que mirem especificamente nas células cancerosas.

E, ao investir nesse tipo de tratamento, é possível obter dois efeitos positivos diferentes.

“O primeiro deles é fazer com que o vírus invada a célula doente e a mate”, explica o imunologista Martin Bonamino, pesquisador do Instituto Nacional de Câncer (Inca).

“O segundo é que alguns desses vírus modificados carregam genes específicos que geram anticorpos e estimulam o sistema imunológico do próprio paciente a reconhecer o tumor e passar a atacá-lo”, complementa o especialista, que também trabalha na Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz).

Essa ação dupla pode ser potencializada ainda mais com o uso de outros remédios em conjunto. Uma possibilidade é combinar os vírus oncolíticos com a imunoterapia, um tipo de tratamento que estimula o sistema imune a identificar e combater o câncer.

Mas como é possível garantir que esses vírus terapêuticos só vão infectar as células tumorais e pouparão as unidades saudáveis do organismo? É aí que entram em cena a biotecnologia e a engenharia genética.

“A ideia é encontrar patógenos que têm uma afinidade com as células cancerosas e atuem especificamente nelas”, contextualiza o oncologista clínico Vladmir Cordeiro de Lima, do A.C. Camargo Cancer Center, em São Paulo.

Décadas de trabalho

A primeira proposta bem-sucedida de virusterapia contra o câncer foi o T-VEC, um remédio aprovado pela agência regulatória dos Estados Unidos em 2015 (ele não está disponível no Brasil até o momento).

Trata-se de um recurso terapêutico indicado para casos de melanoma, um tipo de câncer de pele que costuma ser agressivo.

De lá para cá, vários outros estudos nessa área foram iniciados. Alguns deles, inclusive, estão em andamento no Brasil.

Dois grupos de pesquisa diferentes, um na Universidade de São Paulo (USP) e outro da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por exemplo, estão estudando se o vírus zika pode ser utilizado como tratamento para alguns tipos de câncer que afetam o sistema nervoso central.

A ideia surgiu a partir da observação de que esse patógeno, por trás de um grave problema de saúde pública no país desde 2015, tem uma “preferência” por atacar as células que constituem o cérebro e os nervos — isso, aliás, explica o fato de ele estar por trás da microcefalia nos bebês durante a gestação.

Os primeiros resultados, obtidos em 2018 a partir de experimentos com cobaias, foram encorajadores: o zika de fato reduziu o tamanho dos tumores no sistema nervoso numa parcela significativa dos animais.

Procurada pela BBC News Brasil, a geneticista Mayana Zatz, que lidera as pesquisas com o zika na USP, diz que as investigações sobre o potencial vírus oncolítico seguem em andamento.

“Estamos trabalhando em várias frentes. Buscamos, por exemplo, diferentes estratégias para conseguir um zika modificado em laboratório”, explica.

A ideia é que essas alterações genéticas feitas no vírus “original” permitam intensificar a resposta ao tratamento, para obter resultados ainda superiores.

“Também estamos injetando o vírus ainda não modificado em cães diagnosticados com tumores cerebrais e acompanhando a evolução clínica e neurológica dos casos”, completa a pesquisadora, que coordena o Centro de Estudos em Genoma Humano e Células-Tronco da USP.

Enquanto o conhecimento na área avança aos poucos, Bonamino ressalta a importância da pesquisa científica básica para que inovações como os vírus oncolíticos possam virar realidade.

“Esses tratamentos são resultado de muitos anos de estudo, que permitiram desvendar os mecanismos básicos dos vírus e criar as técnicas de engenharia genética”, aponta.

Cordeiro de Lima, por sua vez, entende que a virusterapia pode se tornar, no futuro, uma ferramenta auxiliar no tratamento de muitos tumores.

“Há um grande potencial para que ela seja combinada e integrada com outras estratégias, como uma maneira de aumentar o espectro de pacientes que se beneficiam de tratamentos contra o câncer”, conclui o médico.

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