A eleição de 2022 será marcada por algumas novidades: horário de Brasília para todo o país no dia da votação, federações partidárias e até mesmo fone de ouvido descartável para deficientes auditivos nas seções. Mas há algo que, segundo especialistas, deve ser de fato o mais marcante do processo: a presença maciça de um agente que pode ser definido como “cidadão marqueteiro”.
“É o sujeito comum que simultaneamente vai à rua com camiseta, que participa de grupos de WhatsApp e que contribui circulando memes sobre um candidato. Trata-se de um militante, organizado, coordenado, mas também espontâneo.
É muito mais difícil impor sanções a esse indivíduo”, alerta Viktor Chagas, professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutor em História, Política e Bens Culturais.
De acordo com Chagas, esse híbrido de eleitor anônimo e superativista digital será o principal agente dos próximos ciclos eleitorais não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro.
A expressão “cidadão marqueteiro” (citizen marketer) foi cunhada por Joel Penney, professor da Escola de Comunicação e Mídia da Montclair State University, de New Jersey, Estados Unidos. Num livro publicado em 2017 e intitulado The Citizen Marketer: Promoting Political Opinion in the Social Media Age (O Cidadão Marqueteiro: Promovendo Opinião Política na Era das Mídias Sociais, em tradução livre, ainda inédito no Brasil), ele descreve casos de indivíduos comuns que, muitas vezes involuntariamente, alcançam por meio das redes sociais um amplo impacto com gestos políticos pouco espetaculares, mas significativos.
Um dos exemplos de cidadã marqueteira citada por Penney é Krystal Lake, afroamericana de 22 anos que, no início de 2016, tornou-se viral nas redes sociais ao usar um boné branco com a inscrição “Os Estados Unidos nunca foram grandes” (America was never great, em inglês).
A mensagem era um contraponto ao slogan do então candidato republicano à presidência dos EUA, Donald Trump, “Faça os Estados Unidos grandes outra vez” (Make America great again). A nova-iorquina foi alvo de manifestações de ódio e de solidariedade nas redes, e o episódio virou notícia no jornal The New York Times.
Para Penney, personalidades poderosas como Trump sempre puderam contar com uma parafernália midiática para se dirigir ao público – jornais, reality shows, publicidade. Fora dos estreitos limites da elite, porém, essas formas de expressão eram inacessíveis – até o aparecimento das redes sociais.
“Em gerações anteriores, esse expressivo agitar de bandeiras e repetição de slogans pode ter sido desprezado como mero blablablá – um curioso espetáculo lateral da democracia popular. Em nossa era contemporânea, porém, ele se tornou virtualmente impossível de ignorar”, escreve Penney em seu livro.
Para Chagas, o grande problema posto pelo aparecimento do cidadão marqueteiro em países como o Brasil, onde a expressão política do indivíduo comum é severamente limitada, é a dificuldade de diferenciar manifestações espontâneas e ações orquestradas.
“Há um limite entre a livre opinião do cidadão comum que faz circular esses conteúdos e as operações coordenadas, que dissimuladamente se apresentam como coletivas quando são, no fundo, patrocinadas estrategicamente por um candidato ou um partido. Essas, sim, precisam ser absolutamente proibidas”, afirma o pesquisador.
A legislação eleitoral brasileira impõe um conjunto de restrições a quem deseja fazer campanha em favor de um candidato ou de um partido. Entre outras disposições, é proibida a divulgação de peças publicitárias com finalidade de carrear votos a aspirantes a cargos eletivos fora do chamado período oficial de campanha previsto no calendário eleitoral definido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Nesses e em outros casos, as penalidades recaem sobre candidatos e partidos, que podem chegar a perder o registro e a elegibilidade, além de arcar com multas pesadas. Se a ameaça de punição inibe os principais beneficiários da chamada campanha antecipada, porém, não tem o mesmo efeito sobre a massa de indivíduos que não precisam de permissão da Justiça Eleitoral para portar um celular ou criar um perfil em rede social.
Em 2022, um dos focos de atenção do TSE será o combate à desinformação – as chamadas fake news, que se tornaram alvo de uma CPI do Senado e de um inquérito no STF. Para o presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, a desinformação nas redes sociais caminha de braço dado com o racismo e outras formas de intolerância.
“Os governos de todos os países devem lutar e fornecer mecanismos de combate a esse discurso de ódio. Além disso, devemos promover a educação digital, principalmente dos jovens, para que essas informações não se disseminem”, afirmou no último dia 7 em encontro internacional online sobre o tema Eleições e a Transformação Digital.
Para o analista sênior de big data Rafa Bandeira, que trabalhou na recente campanha do governador gaúcho Eduardo Leite nas prévias presidenciais do PSDB, o cidadão comum ocupa um novo papel político no Brasil desde, pelo menos, o movimento que desembocou nas manifestações de junho de 2013.
Ilusão de empoderamento
Uma boa parte do trabalho das campanhas atuais, especialmente para mandatos no Executivo, segundo Bandeira, começa na forma do que chama de “prospecção de talentos”: a busca de apoiadores voluntários que façam reverberar a mensagem do candidato. Ele identifica, porém, um limite para esse fenômeno.
“O ativista voluntário sempre acaba, num certo momento, abduzido pelo imenso sistema partidário organizado”, explica. “Nas redes, em razão dos padrões estabelecidos pelos algoritmos, ele acaba procurando nichos identitários onde possa se acomodar e organizar.”
Para Céli Pinto, professora emérita do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a ideia de cidadãos comuns empoderados pelas redes sociais é falsa.
“As redes sociais chegam às pessoas de formas muito distintas conforme sua condição social. O conjunto da população não está empoderado por nenhuma tecnologia”, argumenta. De acordo com a pesquisadora, a maioria dos brasileiros tem mais acesso à informação por meio de programas televisivos como Fantástico, da TV Globo, do que pelas redes sociais. “As pessoas veem muita bobagem nessas redes”, afirma.
De acordo com a pesquisadora, a tecnologia tem papel limitado na dinâmica política do país. Ela discorda, por exemplo, da presunção muito difundida de que Jair Bolsonaro tenha vencido a eleição presidencial de 2018 em razão de uma utilização mais hábil dos meios digitais. “Bolsonaro foi a consequência da desestruturação da política a partir do golpe de 2016 (o impeachment da presidente Dilma Rousseff) e, antes disso, da ruptura do pacto político que permitiu a redemocratização”, afirma.
O fenômeno central do pleito, de acordo com Céli, será uma dupla polarização. “De um lado, parece que Lula será o candidato e estará no segundo turno, salvo se for preso ou morto. De outro, haverá uma guerra de vida ou morte no campo da direita entre Bolsonaro e Moro (o ex-ministro da Justiça Sergio Moro). O tema central da eleição será, porém, inflação, dólar alto e desemprego”, enumera. A professora prevê, no entanto, que as fake news voltarão à cena, assim como ocorreu em 2018.
Para Chagas, os chamados disparos em massa, que teriam sido utilizados em 2018 e estão na mira da Justiça Eleitoral, devem ser coibidos, mas, nesse caso, a fiscalização do poder público é mais fácil. O verdadeiro problema, segundo o professor, é a campanha “dissimulada e opaca” que ocorre abaixo do radar das autoridades no ambiente digital.
“Precisamos observar de que forma a campanha política sai das mãos dos candidatos e do seu entorno político e passa para as mãos do cidadão comum ou daquilo que nós acreditamos ser o cidadão comum”, alerta.