João*, de cinco anos, acorda rouco todos os dias desde que contraiu covid-19, um mês atrás. Ele não chegou a ser internado, mas desde então tosse sem parar, tem uma coceira irritante e incessante no nariz, passou a salivar muito mais, sente cansaço nos braços e uma dor que vem e vai no pé esquerdo. “É uma montanha-russa. Ele reclama e pergunta quando vai ficar bom”, conta sua mãe, moradora de Duque de Caxias (RJ).
A resposta para essa pergunta, que ela ainda não encontrou, vem sendo buscada por cada vez mais pais, pesquisadores e profissionais de saúde ao redor do mundo, à medida que avança a pandemia de coronavírus. Mas ainda há muitas dúvidas sobre a chamada covid longa em crianças e adolescentes, uma vez que essa faixa etária acabou ficando em segundo plano por ser proporcionalmente menos atingida pela doença, menos ainda com sintomas persistentes.
Dos mais de 370 mil mortos por covid-19 no Brasil, cerca de 2 mil têm menos de nove anos, segundo pesquisadores brasileiros.
E se os sintomas persistentes em adultos foram tema de centenas de estudos, por outro lado há até agora poucos estudos que investigam a covid longa em crianças e adolescentes, incluindo países como Suécia, Itália e Reino Unido.
A maioria dos pacientes dessa faixa etária enfrentou por meses sintomas como insônia, congestão nasal, fadiga, dificuldade de concentração e dores.
Cientistas, profissionais de saúde e líderes de grupo de apoio ouvidos pela reportagem costumam apontar um obstáculo em comum para estudos mais amplos e ações direcionadas: muita gente ainda acredita que menores de idade não são atingidos pela covid-19.
“A maioria das pessoas, inclusive os médicos, preferem dizer que esses sintomas são mais psicológicos e estão relacionados às restrições da pandemia”, diz à BBC News Brasil o pediatra italiano Danilo Buonsenso, da Universidade Agostino Gemelli, que coassinou dezenas de artigos científicos sobre covid em crianças na pandemia.
Para Frances Simpson, professora de psicologia da Universidade de Coventry (Reino Unido) e cofundadora do grupo de apoio Long Covid Kids, que reuniu 2.650 casos até agora, “demorou muito para convencer as pessoas do contrário, de que as crianças podem ser afetadas, e ainda parece haver resistência a isso”. Na opinião dela, as pessoas não querem acreditar que as crianças podem ficar doentes porque isso poderia gerar pânico.
Renato Kfouri, presidente do Departamento Científico de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria, diz à reportagem que as crianças na pandemia não são prioridade “nem para tratamento, nem para avaliação de sequelas, nem para drogas”.
A BBC News Brasil detalha abaixo o que se sabe sobre os sintomas de covid longa que atingem crianças, as diferenças em relação aos adultos, qual é o perfil das crianças e adolescentes mais atingidos e o que tem sido feito até agora em torno do tratamento delas.
Sintomas da covid longa em crianças
A descrição com adultos é conhecida por muitos. A fase aguda da covid passa, mas o paciente enfrenta sintomas novos e antigos por meses (alguns inclusive os sentem mais de um ano depois). Os testes já não detectam a presença do vírus, mas quem é acometido sente como se a doença não tivesse acabado, e sim entrado em uma nova fase.
Em algumas pessoas, a chamada covid longa (ou prolongada, persistente) se revela ainda mais penosa ou debilitante do que a fase aguda, marcada em geral pela falta de ar.
Os cinco sintomas mais comuns da covid longa em centenas de milhares de adultos são fadiga (58%), dor de cabeça (44%), dificuldade de atenção (27%), perda de cabelo (25%) e falta de ar (24%), segundo pesquisadores de universidades dos Estados Unidos, do México e da Suécia que analisaram dezenas de estudos sobre o tema com 48 mil pacientes ao todo.
As causas dessa condição em parte dos pacientes não está clara, e pesquisadores investigam hipóteses como uma resposta inflamatória do corpo a vestígios do coronavírus, por exemplo.
Como dito acima, há muito menos pesquisas, dados e testes de crianças com covid, longa ou não. Segundo Kfouri, da Sociedade Brasileira de Pediatria, isso se deve ao fato de que elas são “pouco infectadas, raramente internam e muito raramente hospitalizam. Quando isso acontece, mais da metade dos casos de formas graves e óbitos são em crianças que já tinham patologias de risco”.
No Brasil, todos os dias cinco crianças de até nove anos morrem em decorrência da covid-19, em média. Ao todo, mais de 2 mil crianças morreram no país, das quais 1,3 mil bebês.
Há algumas diferenças nos sintomas mais apresentados por crianças e adultos. Os mais comuns são febre persistente, dificuldade de respirar, pressão sanguínea baixa, conjuntivite, erupções na pele, com grande prevalência de dores abdominais e alterações gastrointestinais (que ocorrem com bem menos frequência nos adultos).
Kfouri explica que uma das possíveis razões está ligada à quantidade diferente de receptores usados pelo coronavírus para invadir as células humanas em crianças. Há menos nas vias respiratórias dessa faixa etária, mas mais em outros aparelhos, como o urinário e o digestivo, o que explica “esses quadros de dores abdominais, diarreia, sangue na urina”.
No caso da covid longa, os sintomas mais comuns em crianças também não são exatamente os mesmos relatados acima em adultos, segundo o que se sabe até agora a partir de alguns estudos que tentaram mapear essa condição.
Uma pesquisa do hospital da Universidade Agostino Gemelli a partir de entrevistas com 123 jovens de até 18 anos infectados com covid foi publicada recentemente com alguns dos primeiros resultados sobre o tema.
Danilo Buonsenso e outros seis colegas apontam que a maior parte delas (74,4%) apresentou sintomas, poucas (4,7%) foram hospitalizadas e uma pequena quantidade evoluiu para quadros mais graves como síndrome inflamatória multissistêmica (2,3%) e miocardite (1,6%).
Dos efeitos observados, os mais frequentemente relatados dois meses depois tanto em crianças sintomáticas, quanto assintomáticas à época da detecção do vírus no corpo são: insônia (18,6%), sintomas respiratórios, incluindo dor e aperto no peito (14,7%), congestão nasal (12,4%), fadiga (10,8%), dores musculares (10,1%), e dificuldades de concentração (10,1%) e dores nas articulações (6,9%).
Das 30 crianças avaliadas entre 60 e 120 dias após o diagnóstico inicial, 13 tinham pelo menos um sintoma e 7, três ou mais.
Um outro estudo científico de pesquisadores da Itália, da Rússia e do Reino Unido se debruçou sobre 510 casos relatados por pais americanos e britânicos. Entre os sinais mais comuns estavam fadiga e cansaço (87%), dor de cabeça (79%), dor abdominal (76%), dores musculares ou nas articulações (61%), náusea (46%) e diarreia ou vômito (42%).
Por fim, um dos estudos pioneiros do tema foi produzido por um pesquisador do Instituto Karolinska, na Suécia, a partir de casos envolvendo cinco menores de idade.
Nenhum deles chegou a ser hospitalizado na fase aguda da doença. Todos manifestaram fadiga, falta de ar, dor no peito, e a maioria delas reportou dor de cabeça, dificuldade de concentração, tontura, fraqueza muscular e dor de garganta. Nenhuma das crianças havia conseguido retornar completamente às aulas ao longo desses meses.
Em resumo, os estudos acima apontam que a faixa etária mais atingida pela covid longa gira em torno de 10 a 12 anos, os sintomas costumam durar oito meses, 20% melhorou antes de piorar de novo e menos de 5% das crianças acometidas foram hospitalizadas durante a fase aguda da infecção.
Mas como dito antes, os números podem estar distorcidos em razão da quantidade limitada de casos estudados e, por extensão, da impossibilidade de adotar metodologias mais rigorosas.
‘Não se trata só de condições psicossomáticas’
Buonsenso, da Universidade Agostino Gemelli, critica o ceticismo e a falta de interesse de autoridades e pesquisadores no tema.
“A baixa prevalência da covid entre menores de idade pode ser explicada por uma série de questões imunológicas e virais ainda sob estudo. Mas, na minha opinião, há barreiras em aceitar que as crianças possam ter covid longa. A maioria das pessoas, incluindo médicos, prefere afirmar que esses sintomas são mais psicológicos e ligados às restrições (como lockdowns).”
Para a professora Frances Simpson, do grupo Long Covid Kids, “o fato de muitos médicos não poderem ajudar ou não acreditar que a criança está doente aumenta enormemente as dificuldades enfrentadas por esses pais”.
Nisreen Alwan, epidemiologista e professora na Universidade de Southampton (Reino Unido), acredita que a compreensão da covid persistente caminha em ritmo lento porque não é medida ou quantificada adequadamente.
Como ocorre com adultos, a variedade de sintomas e desdobramentos da covid pioram essa mensuração. O que dizer quando se trata de crianças que, a depender da idade, mal conseguem identificar e relatar sintomas? Soma-se a isso a baixa taxa de testes para detectar o vírus em crianças.
Em linhas gerais, elas podem ser assintomáticas (65% delas, segundo pesquisa da Prefeitura de São Paulo) ou apresentar quadros leves de covid-19, ou não. Podem manifestar um quadro típico da doença, se recuperar rapidamente e depois piorar com outros sintomas. Ou mesmo continuar com os mesmos sintomas desde a fase aguda.
Por meio de questionário aplicado aos familiares que integram o grupo “Long Covid Kids”, foram reportados mais de 100 manifestações, como sintomas gastrointestinais (diarreia, dor abdominal, vômito), dor de cabeça, no tórax, fadiga, manifestações dermatológicas, dores nas articulações, dor de garganta e variações de humor.
Kfouri, da Sociedade Brasileira de Pediatria, afirma que esse quadro fica ainda mais complicado ao lembrarmos de outras doenças que acometem crianças.
“É bom lembrar que, na maior parte das vezes, esses quadros na pediatria ficam sem sintomas porque se confundem com outras doenças respiratórias, ou outras viroses das crianças. Corpo mole, mal-estar, enjoo, febre baixa. Então, às vezes em qualquer um desses quadros pode se suspeitar de covid-19 porque os sintomas podem realmente ser muito inespecíficos, muito variados, mais do que nos adultos.”
Possíveis tratamentos
A covid longa não tem um tratamento específico, tanto em crianças quanto em adultos. Como a variedade de manifestações e sintomas é enorme, em geral as condições são tratadas ou acompanhadas por especialistas a partir de abordagens já conhecidas.
Dermatologistas podem avaliar erupções na pele enquanto neurologistas investigam dificuldade de concentração e problemas de memória, por exemplo.
Simpson, do grupo Long Covid Kids e da Universidade de Coventry, recomenda aos pais que busquem grupos de apoio, compartilhem relatos e experiências e encontrem médicos simpáticos à condição de saúde dos pequenos pacientes.
“Muitas dessas crianças não recuperaram a saúde que tinham. Apenas 10%, segundo nosso levantamento. Muitas crianças estão sofrendo física e mentalmente.”
Ela defende que os pais não sobrecarreguem as crianças em busca de uma melhora e que elas devem ser tratadas caso a caso. Algumas delas podem passar a precisar de acompanhamento psicológico, ensino remoto, mudanças na rotina, suporte da escola e auxílio em atividades físicas. Não haverá uma solução única para todas elas, diz Simpson.
Há dados promissores sobre eventuais efeitos positivos da vacinação em adultos diagnosticados com covid longa, mas isso ainda está sob estudo. Vale lembrar que as pesquisas de vacinas para crianças ainda estão na fase de estudos clínicos, e nenhuma delas foi autorizada para uso em larga escala até agora, embora os resultados sejam promissores.
O Sistema de Saúde Britânico (o NHS, parecido com o SUS brasileiro) montou uma rede de mais de 40 clínicas especializadas e multidisciplinares para pacientes que se recuperam da covid longa.
Além das abordagens elencadas acima, o NHS faz outras recomendações, como descansar o corpo e a mente, manter atividades rotineiras em um ritmo mais lento, fazer exercícios de respiração, evitar interrupções no sono e fazer uma alimentação mais saudável.
Como forma de prevenção, a Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda que crianças “com mais de 2 anos usem máscara e mantenham distanciamento”. E a volta às aulas deve ocorrer atendendo aos protocolos de segurança, com higienização das mãos, distanciamento, salas arejadas e mais vazias.
“A única forma de evitar a covid longa é evitar a covid-19”, resume Sammie Mcfarland, cofundadora do grupo Long Covid Kids.